HealthNews (HN)- Nasceu no Zimbabué, onde permaneceu até aos 18 anos, e viveu também em Portugal e Inglaterra. Consegue identificar na sua carreira marcas dos lugares por onde passou?
Miguel Sousa Neves (MSN)- Sim. Eu diria que de África o que me fica na memória é a vivência, como criança e adolescente, dos momentos mais felizes da vida, em que o mundo está ali para ser vivido. Por outro lado, mais tarde, a ideia de que há um mundo que vive bem e outro, completamente diferente, onde a grande maioria vive com muitas dificuldades. Na Inglaterra, o frio no clima e nas pessoas incomodou um pouco no início, mas o reconhecimento isento das nossas capacidades de trabalho e vontade de aprender foi muito gratificante.
Em Portugal, na altura com 18 anos e no início dos meus estudos em medicina, o mais agradável foi a sensação de amizade e fácil convívio entre as pessoas, mas uma aparente desorganização nas instituições pareceu-me um aspeto muito negativo.
HN- Porquê medicina, oftalmologia e, mais tarde, gestão?
MSN- Tive várias mudanças bruscas e inesperadas na minha vida por acontecimentos políticos. Estudei em escolas inglesas, numa colónia britânica, e também em escolas portuguesas, em Moçambique. Depois do 25 de abril, os meus pais tiveram de se ir mudando, de um país para outro, e eu tive de me adaptar às circunstâncias e de me agarrar às disciplinas que eram mais fáceis para mim: a matemática e a biologia. Daí a seguir medicina foi um passo, mas sem fortes convicções. A partir do momento em que comecei a entrar nesta área, passei a gostar e, de facto, sinto-me um privilegiado por poder exercer e ajudar pessoas nas suas fragilidades.
Fui para África trabalhar como interno geral. Tinha ficado colocado no Hospital de São João, mas pedi para fazer o internato geral num país africano. Em Portugal, estava muito envolvido na associação de estudantes e não sabia se iria conseguir ser médico, ou se seguiria uma carreira política. Fui para África trabalhar e, ao fim de um ano e tal, um colega meu que também estava lá disse-me que ia para Inglaterra, que as oportunidades de aprendizagem eram muito maiores. Na altura era importante escolher uma área. Eu tinha feito o internato em África, e trabalhava-se muito. Muitas vezes a minha família tinha de me ir ver ao hospital ao fim de semana, porque eu nem sempre conseguia ir a casa. Via os colegas oftalmologistas, que aparentemente não pareciam ter tanto trabalho, e decidi passar um tempo nesta área de especialização, para depois decidir com calma o meu caminho. Percebi aos poucos que a oftalmologia contemplava muitas facetas diferentes e cirurgia microscópica e decidi que esse seria mesmo o meu futuro.
A gestão veio mais tarde. Eu vivia em Inglaterra quando fui convidado a criar um serviço de oftalmologia no que era então o maior hospital privado português – a Clipóvoa, agora Hospital da Luz Póvoa do Varzim. Sem noções de gestão e sendo um jovem especialista, “peguei” na equipa e fui a Inglaterra copiar o serviço onde trabalhava.
Pediram-me depois para abrir um serviço de oftalmologia num hospital do setor social, e fi-lo já com alguma experiência adquirida. Dez anos mais tarde, deixo a Clipóvoa e inicio um percurso autónomo.
A clínica começou a crescer e percebi que necessitava de me munir de algumas ferramentas de gestão para que as coisas não implodissem de um momento para o outro. Resolvi fazer uma pós-graduação em Direção de Unidades de Saúde do ISCTE-IUL. Gostei da área, achei divertido, diferente, e senti que ia aprender muito. Ajudar-me-ia como gestor de uma clínica e no meu relacionamento com os pacientes. Depois, completei com sucesso o mestrado em Gestão de Serviços de Saúde, também no ISCTE. Na altura, colegas incentivaram-me a criar uma associação para discutir a gestão de saúde. Criei com colegas a Sociedade Portuguesa de Gestão de Saúde. Mais tarde, criei também uma revista científica, a Revista Portuguesa de Gestão & Saúde, da qual sou diretor desde então. Por fim, convidaram-me também para dar aulas no ISCTE, na área de governança clínica.
HN- Qual é o perfil de um bom gestor?
MSN- Há um artigo de 2021 de Baker e Gooal onde se assume que a qualidade de um hospital se baseava na produção e na moral dos colaboradores, isto é, na maneira como as coisas eram feitas. Eles investigaram quais eram os gestores que aumentariam a moral. Para tal, endereçaram um questionário a 3.000 médicos da Dinamarca, da Austrália e da Suíça, para saber quem é que eles achavam que seriam os melhores líderes para uma unidade hospitalar. A grande maioria disse que os profissionais de saúde se sentem muito melhor no trabalho quando são liderados por especialistas clínicos de excelência e com aptidão para a gestão.
Na minha opinião, um bom gestor na área da saúde tem que ter experiência clínica. Não tem de ser médico – pode ser um enfermeiro ou outro profissional de saúde –, mas é muito importante sentir a saúde. A maneira como olhamos a saúde é muito diferente de outras áreas empresariais.
Por outro lado, o gestor deve ter formação em gestão e capacidade de colaborar, com visão, integridade e humildade.
HN- Portugal tem bons gestores de saúde?
MSN- Portugal tem de tudo. Temos bons e maus gestores. Se nós pensarmos que os hospitais são estruturas com muitas variáveis e externalidades, uma enorme complexidade de informação e de tecnologia de ponta, onde estamos a decidir a todo o momento a vida e a morte das pessoas, percebemos facilmente porque é que temos que escolher sempre os melhores. O problema que se põe é que nas unidades públicas as escolhas poderão não ser ditadas unicamente pelas capacidades e envolver outras razões, menos aceitáveis, como a filiação partidária ou as ligações ao poder. Há uma série de incómodos que podem fazer parte da escolha dos líderes. Isto acontece também noutras áreas em Portugal.
É importante pensarmos nisto a sério. Prevê-se que haja um aumento de cerca de 30% nos próximos dez anos da necessidade de gestores de saúde. É muito importante que estes gestores sejam muito capacitados. Mas diria que estamos a caminhar para aí. Penso que esta nova direção executiva do Serviço Nacional de Saúde, liderada por uma pessoa de qualidade ímpar, poderá eventualmente pôr as coisas a funcionar um pouco melhor.
HN- Sendo assim, vê a criação do diretor executivo como algo positivo.
MSN- Sempre vi. Eu sempre achei que se devia separar a gestão profissional das sensibilidades políticas. Não vou dizer que estamos a copiar os britânicos, porque eles têm muitas falhas, mas o que acontece no Reino Unido é que há a parte executiva, que responde perante o parlamento e faz uma gestão profissional, e a área do ministério, a política, que decide o caminho em termos gerais. Em Portugal, era muito importante que se separasse, porque havia muita mistura. O ministro chegava a ter um poder supremo sobre uma pequena unidade de saúde no “fim do mundo”. Era muito importante que se conseguisse reservar ao Ministério da Saúde a condução política e que o mandato da direção executiva fosse maior do que o mandato dos governos, pois poderia permitir maior autonomia e espaço temporal para ir reajustando o SNS. Os hospitais muitas vezes não têm autonomia porque as pessoas poderão não ser as mais competentes. Há um certo receio de que essa autonomia possa ser mal utilizada. Se nós temos agora uma direção executiva profissionalizada, com pessoas capazes, poderemos aos poucos ir melhorando a área da gestão da saúde, deixando que, depois, os políticos decidam os caminhos mais amplos.
Sou completamente a favor, sim.
HN- Atualmente, enquanto médico e gestor, quais são as suas prioridades?
MSN- A saúde, no fundo, é a nossa caminhada desde o momento em que nascemos até ao momento em que morremos. Quanto melhor for a maneira como vivemos, com menos problemas de saúde, com uma vida mais saudável, mais facilitado será o percurso, para o indivíduo e para a sociedade. Por isso é que é preciso investir imenso na prevenção, na promoção de bons hábitos de saúde. Há um passo interessante: pela primeira vez, há uma Secretaria de Estado da Saúde primariamente dedicada à promoção da saúde. É um bom indício de que se começa a pensar cada vez mais na prevenção. É óbvio que isto não traz votos a curto prazo. É um trabalho mais escondido, mas essencial. Temos de promover a prevenção, a literacia nas comunidades e de investir no envelhecimento ativo e saudável.
Somos dos países mais envelhecidos do mundo, com a expetativa de termos um terço da população acima dos 65 anos daqui a 20 anos. Temos que reconverter energias e promover um envelhecimento diferente, para que possamos utilizar esse grupo da população de forma positiva e não ser mais um peso, um encargo para todos os outros. Recordemo-nos que, em Portugal, vivemos tanto como nos países nórdicos, mas vivemos muito pior nos últimos anos da nossa vida, com mais comorbilidades, com mais problemas.
Em termos muito práticos, temos também que maximizar a operacionalidade dos cuidados primários de saúde, que são os pontos de entrada na saúde. Se conseguirmos tornar as unidades primárias de saúde ainda mais eficientes, iremos aliviar um pouco o peso dos hospitais, onde as coisas se complicam, onde as coisas são caras, onde há pessoas que morrem – 11% das mortes das pessoas que estão nos hospitais devem-se a doenças que se apanham nessas mesmas instituições.
É importante, assim, prevenir e promover a literacia, investir no envelhecimento e maximizar a operacionalidade deste “gatekeeper” que são as unidades primárias de saúde.
HN- Como foi ser reconhecido pela Ordem dos Médicos?
MSN- Foi totalmente inesperado, mas claro que fiquei muito feliz, e espero poder continuar a contribuir para que as pessoas possam manter e melhorar a sua saúde.
Entrevista de Rita Antunes
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