O médico anestesista e intensivista de 38 anos contou como uma lesão o afastou do desporto e o levou para a medicina, área pela qual se apaixonou, e como uma viagem a Moçambique lhe deu a “sensação que seria obrigatório usar os saberes onde mais são precisos”, começando aí um trajeto de nove anos de missões humanitárias por zonas de conflitos mundiais.

Foi na antiga colónia portuguesa que abriu “os olhos para o que se passava no terreno” e conheceu algumas pessoas dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). Percebendo que os seus “sonhos passavam por aí”, pouco depois juntava-se à organização e estreava-se na primeira missão humanitária, no Congo, em 2009.

Esteve no Congo, Afeganistão, Síria... Médico português lança livro sobre missões em zonas de conflito
Esteve no Congo, Afeganistão, Síria... Médico português lança livro sobre missões em zonas de conflito créditos: DR

Depois dessa missão surgiu a necessidade da escrita, não só por vontade de dizer às pessoas o que se passava ali, mas porque durante uma viagem de dois meses pelo continente africano leu, numa revista turística, que “houve uma guerra [no Congo]”, mas que já tinha acabado.

“Quando vi aquilo comecei a chorar. Uma publicação tão fidedigna, lida em todos os países, e escrevem uma coisa destas, quando tinha acabado de sair de lá e tinha visto o sofrimento de tanta gente, as consequências do conflito em milhões de pessoas. Aquilo foi uma estaca que entrou no meu coração. Como é possível ser esta a opinião que passa para o mundo?”, questionou.

Revolta com o consumismo

Depois de seis meses em África, quando regressa ao seu dia a dia sente “uma certa revolta com o consumismo e a superficialidade”, algo que tentou combater por sentir que não tem “direito de fazer julgamentos morais ou críticas invasivas em relação ao que as pessoas fazem”.

“É difícil sair desse prisma, de ser convicto nos ideais, sem atacar o estilo de vida das outras pessoas que são diferentes. Entrar num ‘shopping’ e ver pessoas a entrar em lojas de marca, quando passei tanto tempo a ver crianças com a mesma ‘t-shirt’ todos os dias e a gola a passar o umbigo. Ver tanta pobreza e sofrimento e sentir que estamos preocupados em comprar o último modelo de um telemóvel. É difícil sentirmo-nos bem com este desequilíbrio e injustiças”, admitiu.

A apresentação de “O mundo precisa de saber”, marcada para a Faculdade Medicina do Porto, inclui também o lançamento do livro “1001 cartas de Mossul”, uma resposta dos iraquianos à sua obra “1001 cartas para Mossul”, lançada em 2017.

A ideia desta “carta” surgiu como “uma espécie de epifania” quando soube da possibilidade de ir para o antigo bastião do Estado Islâmico no norte do Iraque, tendo ficado emocionado quando leu os “relatos das passagens de médicos pelo local” e achou ser “o momento de pôr em prática algo" que diz sentir. “Eu levo na minha mochila muito mais que os meus conhecimentos, levo todas as pessoas que acreditam naquilo que eu faço e nos ideais humanitários que eu acredito. Compilar este livro era uma forma de materializar este sentimento. Há muita gente que acredita que este é o caminho, o da mistura de povos, pacificação, enviar cuidados de saúde em vez de enviar mais bombas e, por isso, comecei a desenvolver a ideia”, explicou.

Não podendo levar comida, medicamentos ou roupa, Gustavo optou por levar as palavras, transportando consigo algo que ajudasse as pessoas a sentirem que “fazem parte de um mundo humanitário inatingível à maioria” e que tivesse “um impacto positivo na população do norte do Iraque que estava e está a sofrer o inimaginável”.

Neste momento, o médico anestesista está a escrever o segundo livro original, que vai relatar duas passagens pela República Centro Africana, a missão em Mossul e um regresso ao Congo, de onde chegou há cerca de um mês.

No próximo mês parte para o Burundi e tem também agendadas missões no Iémen, em fevereiro, e em abril segue para a Faixa de Gaza.

Mais apoios

Gustavo Carona afirma ser necessário as pessoas perceberem que apoiar monetariamente “as organizações competentes é a melhor forma de ajudar”, considerando que o voluntariado é uma “mentira”.  “A ajuda humanitária precisa de pessoas profissionais. O voluntariado é muito importante por proximidade, nos equilíbrios sociais duma cidade, em que uma pessoa ajuda quem está ao lado. Este tipo de ajuda [humanitária] tem de ser dada por profissionais senão não fazem as coisas bem feitas. Por isso é preciso muito dinheiro, compromisso e experiência. As pessoas têm a ideia de que vão para África com as mãos no ar, salvar o mundo numa semana ou duas e isto não existe”, afirmou.

Admitiu estar a ser “incisivo” na crítica ao voluntariado para explicar o seu ponto de vista sobre o apoio que defende ser necessário dar em zonas de grande conflito, designadamente a organizações não governamentais, como os Médicos Sem Fronteiras, instituição com a qual fez quase todas as missões em que participou.

“[As pessoas] não dão dinheiro porque não sabem o que [as organizações] fazem com ele. Não podemos viver neste clima de suspeição, são organizações muito sérias que fazem auditorias com as maiores empresas do mundo. Há de sempre haver casos, erros estratégicos, investimentos feitos que correram mal, roubos que ocorreram no local ou situações fora do controlo, mas são organizações sérias e que em circunstância alguma funcionam sem a dádiva de quantias monetárias, quer individuais, quer de empresas ou governos”, explicou.

Para Gustavo, “mandar roupa ou comida é [apenas] uma agulhinha naquilo que é preciso ser feito”. O médico estreou-se em missões humanitárias em 2009, na República Democrática do Congo, depois seguiu para o Paquistão, um país “muito heterogéneo”, onde enfrentou o “contexto mais duro e intenso em termos sociológicos e clínicos, fruto da ignorância”.

Exemplificou com a história de uma mulher grávida que morreu, juntamente com o filho, porque o homem que a acompanhava não deu autorização para uma fazer uma cesariana.

Nestas missões, os médicos estrangeiros têm um conjunto de regras às quais se têm que adaptar, sendo que as médicas estrangeiras, por exemplo, “não podem falar alto, fumar, correr, têm de estar de cara tapada e não podem olhar um homem nos olhos”.

“Enquanto estrangeiros, ainda que estejamos ali para salvar a vida daquela população, estamos a ser observados, avaliados e aceites ou não a todo o minuto. Isto faz com que o ar fique mais pesado para se respirar. Sabemos que rapidamente poderemos por todo o projeto em risco, o que significa muitas vidas. É nessa medida que digo que [o Paquistão] foi o mais difícil”, contou.

Salvar a vida ao inimigo

Na Síria, Gustavo chegou a falar indiretamente, através de um tradutor, com doentes que pertenciam à Al-Qaeda e confessou ser “estranho estar a salvar a vida a alguém que tem uma má índole” ou que, em circunstâncias diferentes, lhe quisesse fazer mal.

“Como médico sou uma máquina, não tenho sentimentos, não faço julgamentos, atuo. Como pessoa tenho reflexões. Estas pessoas vão ficar a pensar que houve ocidentais que lhes salvaram a vida e tenho a certeza de que isto tem um impacto no resto da vida deles. Acho que este é segredo da ajuda humanitária como solução para os problemas, esta interação com as pessoas, porque no fundo somos todos iguais. O facto de estarmos tão distantes um dos outros é que nos faz criar alguma crispação”, considerou.

O médico revelou que gere o medo com o “estar lá e perceber que não é o bicho de sete cabeças que pode parecer” e que, ainda assim, os medos que tem “são superados pelas motivações”, porque a vontade de ajudar “consegue eliminar os medos”.

“Pode parecer utópico, mas trabalho a minha cabeça no sentido da minha vida não valer mais que a dos outros. Se eu tenho a capacidade de salvar vidas não posso achar que só porque corro algum risco vou deixar de o fazer, quando a minha presença lá tem um impacto direto em tantas vidas e indireto em muitas mais”, sublinhou.

Até quando vai continuar a participar em missões não sabe, mas assegurou que “a vontade de desistir não existe” e que é “impossível deixar de querer ter um papel ativo, seja de que forma for”, mantendo a esperança de não perder o “idealismo e a vontade" em contribuir para "um mundo melhor”. “O meu propósito é fazer parte da paz”, concluiu.