O próximo inverno tem de ser preparado e planeado com rigor. Não podemos dar-nos ao luxo de ter disrupções tanto na atividade hospitalar, como nas vigilâncias de saúde efetuadas nos cuidados de saúde primários.
A vacinação contra a gripe e reforço contra a Covid-19 avança com bom ritmo. No grupo com mais de 80 anos, cerca de metade da população já se encontra imunizada, o número de internamentos encontra-se em valores historicamente baixos, e talvez aquele que será o último valor de Rt com algum grau de fiabilidade, aponta para um valor inferior a 1. Ou seja, entramos na segunda quinzena de outubro com a Covid-19 controlada.
No entanto, há legítimas dúvidas que assim permaneça nos próximos meses. Mesmo ignorando os piores dos sete cenários traçados pelo European Center for Disease Control, em que a evolução viral tornaria o Sar-CoV-2 imune à proteção conferida tanto pelas vacinas como a imunidade adquirida, a forma como comunicamos o risco com a população e o sentido dos incentivos, condicionam a nossa capacidade de resposta.
É natural e desejável, que não haja um foco diário nos números de novos casos. São poucos os indivíduos que não contactaram com o vírus, ao fim de quase três anos de pandemia, pelo que a gravidade da doença tende a decair. O número de novos casos, de forma isolada, diz-nos pouco sobre o impacto da doença no ecossistema de saúde. Mas também não é desejável cair no extremo oposto, onde os dados são simplesmente ignorados. E neste capítulo, Portugal caminha em contraciclo, nós deixamos cair os últimos vestígios de um aparato de saúde pública na entrada do período de maior transmissão, outros países, como a Alemanha, voltam a introduzir algumas medidas, como a utilização de máscaras nos transportes públicos.
Desaparecem totalmente os incentivos à testagem. O processo torna-se mais difícil e burocrático. O cidadão doente com Covid-19, mesmo fazendo um teste em casa ou farmácia, terá de se dirigir ao centro de saúde para solicitar uma baixa médica, que não será paga nos primeiros três dias de doença. Além de perdermos uma oportunidade para reformar todo este processo arcaico de baixas médicas, que não só suspeita dos trabalhadores como lhes dá os incentivos para trabalhar doentes, criando assim, novas cadeias de transmissão, foram criadas as condições para na prática, só sabermos dos casos graves. Não haverá forma de saber o real número da transmissão comunitária da doença, nem conhecer em tempo real a sua evolução. Apenas serão testados, ou quem está gravemente doente e necessite de internamento, ou cidadãos conscientes e com recursos financeiros para o fazer.
Esta realidade tenderá a agravar as desigualdades em saúde. Se apenas cidadãos com maiores recursos têm a possibilidade de se testar e permanecer em casa em caso de doença, o resultado natural será maior carga de doença nas comunidades com menores recursos financeiros. Todas as políticas devem ser avaliadas pelo seu impacto na equidade. E esta opção, claramente que reprova nesta análise. É inaceitável empurrar os mais desfavorecidos para os braços da Covid-19. Temos de efetuar um esforço coletivo para nivelar a saúde por cima, concedendo as mesmas oportunidades a todos os indivíduos.
Todos estamos desejosos de virar a página da pandemia. Mas o novo normal não pode ser simplesmente viver na felicidade da ignorância. Temos a obrigação de proteger os mais vulneráveis e manter uma vigilância epidemiológica adequada. O critério economicista, não deve prevalecer perante as necessidades de uma adequada monitorização da evolução viral.
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