Em 1979, quando iniciei a prática clínica, existiam cerca de 20 mil médicos registados na Ordem dos Médicos, embora o número de profissionais em exercício fosse menor. Atualmente, são mais de 70 mil. E as mulheres são, desde 2005, a maioria dos médicos em Portugal. São o presente e o futuro da Medicina no nosso país.
O maior número de médicos em exercício permite um trabalho em conjunto mais intenso, com as vantagens de estarmos acompanhados nas dúvidas, nas decisões, nos conhecimentos e na partilha do trabalho. A formação clínica é feita em conjunto. Todos aprendemos com todos. Aumentou o número de pessoas em cada serviço, melhorando o funcionamento dos serviços e a sua prestação aos doentes.
Em 40 anos modificou-se também o contexto global em que se exerce Medicina, como se conclui do conjunto de testemunhos de três dezenas de colegas que estão no livro, Ser Médico em Portugal, que coordenei com Germano de Sousa e Álvaro Carvalho (Âncora Editora).
Hoje, os consultórios privados são residuais e os hospitais privados têm todas as valências médicas e cirúrgicas. E, alguns, começam a ter também capacidade de formação médica, que está perigosamente comprometida nas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Ao número crescente de médicos que atingem a idade da reforma nos próximos dez anos (cerca de 4.500) junta-se a saída de especialistas do SNS para os hospitais privados. São fundamentais para a formação médica dos colegas mais novos, pelo que, se a par da sua saída, aumentar o número de internos nos serviços, teremos jovens médicos impossibilitados de completarem a sua formação, de forma capaz.
É imperativo salvaguardar que o SNS não perca os médicos com mais experiência, para não perder o seu valor de universalidade.
A ausência de carreiras médicas no setor privado e a sua débil aplicação no SNS é mais um fator de insegurança, que retira aos médicos o conforto e a confiança tão necessários à sua prática profissional, no respeito pelo mérito e pelos princípios hipocráticos.
Há, em Portugal, muita ideologia acerca do que deve ser a prática da Medicina, nomeadamente pública, e pouca capacidade de criar compromissos a longo prazo, além dos ciclos governativos, que garantam a prossecução de políticas capazes de originar efeitos concretos e inovadores.
Nomeadamente na gestão de recursos humanos e no seu planeamento, que estão claramente em falência, e que contribuem para um crescente sentimento de desconfiança da população.
Nos Cuidados de Saúde Primários, os centros de saúde tornaram-se essencialmente centros de doença. Urge a sua reformulação para que sejam também centros de bem-estar para os utentes e para os profissionais.
Também os concursos para recrutamento precisam de um novo olhar. Porque é que, nomeadamente nas especialidades e nas regiões mais problemáticas, estes concursos não estão sempre abertos? Assim, um interno, acabando hoje a sua formação, podia concorrer amanhã aos serviços públicos e, provavelmente, mais médicos optariam por entrar no SNS.
Esta modalidade permitiria também colmatar o preenchimento de vagas dos especialistas em falta, ao invés de se aguardar por procedimentos complexos que abrem duas vezes por ano e não têm prazo de conclusão.
Há imensos pequenos poderes na engrenagem que podem ser contrariados com uma nova visão do que se quer hoje para a profissão médica e para os cuidados prestados aos doentes.
Nestes mais de 40 anos, a função social e ética da Medicina manteve-se. Mas perpetuar estruturas inalteráveis não é garante de que nos próximos anos se cumpra aquilo que nós, médicos, desejamos, para a nossa profissão e para a qualidade da assistência médica que devemos exigir para Portugal.
*Excerto adaptado do livro Ser Médico em Portugal, lançado dia 7 na Ordem dos Médicos, no Porto
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