“É um livro sobre o bem e o mal, mas que recusa o maniqueísmo. Penso que as pessoas na realidade não são boas ou más, há umas piores, outras melhores, mas nenhum de nós envolvido em determinada situação sabe como iria reagir”, disse a escritora, de passagem por Portugal, em entrevista à agência Lusa.

A protagonista desta história é Carla, uma mulher de 38 anos, mãe de três filhos, que, após se separar de Vito, o marido violento que durante os 20 anos de casados a espancou incessantemente, vive permanentemente atormentada com medo de que ele a mate, e aos filhos.

A questão que se põe é “o que se faz quando se é condenado à morte? Como reagir?”.

“Uma história negra”, primeiro livro da escritora italiana Antonella Lattanzi publicado em Portugal
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Depois de várias queixas na polícia que não serviram de nada, Carla acaba por se revoltar contra o seu agressor e é presa e julgada por isso.

Num momento em que se fala tanto de violência sobre as mulheres, Antonella Lattanzi quis “fugir um bocado da retórica de que todas as mulheres são boas e que todos os homens são ruins”.

“Se etiquetamos todos os homens como monstros e todas as mulheres como santas, não estamos a falar da realidade”, afirma a escritora, que, para este livro – que lhe demorou seis anos –, estudou casos, falou com várias mulheres vítimas de violência, homens abusadores, assistiu a julgamentos.

Antonella Lattanzi estuda para entrar nos mundos sobre os quais quer falar. Para o seu primeiro romance, esteve cinco anos nas ruas, passando-se por dependente de heroína, “porque queria contar a história de dois heroinómanos”.

“Para este romance, encontrei mulheres vitimas de violência, falei com homens maltratantes, para tentar perceber o seu processo mental, a sua motivação, para tentar compreender o que se passa na cabeça de alguém que a certa altura começa a considerar uma pessoa um objeto de sua propriedade, porque não se pode chamar amor àquilo que te transforma num objeto de outro”.

Na história que Antonella conta, “Carla confrontou-se com esta dupla possibilidade: conservar uma situação que a levaria à morte ou reagir a essa situação, reagir ao seu modo". "Naturalmente na cena em que é presa, como efeito ‘Doppler’, mudou a vida de todos em relação com ela. A partir de um momento negro, muda a vida de todas as pessoas, de maneira colateral”.

À escritora interessava-lhe, por um lado, escrever uma história que pode acontecer a qualquer pessoa e, por outro, criar uma personagem que, “no início, era boa, na segunda parte era má e que, na terceira parte, fosse o leitor a decidir se era boa ou má”.

“A literatura é como a vida, as personagens dos livros são como as pessoas, ninguém me diz se alguém é bom ou mau, devo descobrir eu. O leitor deve fazer o exame e fazer um julgamento de acordo com os seus ideais”.

Ou seja, o escritor faz as perguntas, não deve dar as respostas.

“Penso que a função da literatura não é doutrinar o leitor, um romance não é uma parábola, não escrevo um romance para sustentar uma tese, escrevo um romance porque quero contar uma história, faço as perguntas. As minhas próprias respostas mudam ao longo de toda a minha vida”.

Vito, por sua vez, tal como tantos outros homens violentos na vida real, só o é com a mulher, justificando o seu comportamento com o facto de a amar.

Isto tem implicações na forma como os outros o veem, incluindo, principalmente, os próprios filhos, que se confrontam com uma dupla identidade: um potencial assassino da mãe, que a violentou durante vários anos, mas também um pai amoroso que nunca fez mal aos filhos, uma pessoa estimada no trabalho e amada pela sua família.

“Para mim era muito interessante pensar nos filhos”, diz Antonella, que conheceu casos de jovens que conseguiram sair da espiral de violência familiar e seguir uma vida normal e outros que não conseguiram escapar e criaram esquemas mentais para justificar o comportamento do pai ou simplesmente obliterá-lo, substituindo-o apenas pelas memórias boas.

Em “Uma história negra” os filhos mais velhos, Nicola e Rosa, desenvolvem um relacionamento que é como um relacionamento entre um marido e uma mulher, porque crescem sozinhos, a certo ponto têm de cuidar da irmã mais nova, e são deixados sozinhos a tentar entender o que estava a suceder.

Esta é uma das consequências de a mãe ser presa e levanta a questão da dualidade existente em homicídios destes: a morte do marido agressor e a morte do pai dos filhos.

É aqui que a questão da legítima defesa se assume como central no romance e, mais uma vez, a autora coloca as questões em cima da mesa: “O que é a legitima defesa? E quando? A verdade processual é diferente da verdade humana”.

E se o tribunal faz o seu caminho, a justiça popular também e, por vezes, assume tanta ou mais importância.

“Nos grandes processos, cria-se imediatamente um júri popular que rapidamente te cataloga como vítima ou como carrasco, ao ponto de etiquetas como ‘femme fatale’ e 'mãe coragem' decidirem imediatamente se és vítima ou carrasco”.

“Com uma pessoa como Carla, que mudava tanto de personalidade, a justiça popular pode transformar o verdadeiro em falso e o falso em verdadeiro”, acrescenta.

Classificada entre os melhores novos autores italianos, Antonella Lattanzi, que já foi finalista do prestigiado Prémio Strega, tem um estilo narrativo cinematográfico, o que contribui para que este romance vá ser adaptado ao cinema.

Mas sobretudo, a autora tem esperança de que algumas pessoas possam encontrar a sua resposta dentro desta história, porque acredita que “há uma possibilidade de salvação sempre, mesmo no momento mais negro, é possível pôr um fim ao sofrimento”.

“A cultura em que a mulher cresceu ensina-lhe que deve sofrer para alcançar a felicidade, mas eu penso que perante o sofrimento, devemos combatê-lo e vencê-lo”.

Há uma frase que perpassa todo o romance e que poderia resumi-lo. Marca o início da terceira parte do livro e é do escritor italiano Cesare Pavese: “Mas a grande, terrível verdade é esta: sofrer não adianta nada”.