Foi em 1931 que Aldous Huxley, um escritor britânico que posteriormente veio a ser considerado um dos baluartes do pensamento moderno, escreveu o seu Admirável Mundo Novo. O livro era um fantástico exercício futurista, passado em Londres no ano de 2540 e constituía essencialmente aquilo a que o seu autor se referia como «utopia negativa», ou seja, era uma espécie de sátira pessimista sobre o futuro, com especial ênfase em aspetos como a reprodução humana e o condicionamento psicológico e biológico da nossa espécie.
Do livro constavam passagens como esta: «As batas dos trabalhadores eram brancas e as mãos, enluvadas em borracha, pálidas, de aspecto asséptico. Um tapete rolante continuava a sua marcha enchendo o ar com o matraquilhar macio das suas engrenagens. Sobre ele milhares de provetas geometricamente alinhadas deixavam entrever um líquido quente e gelatinoso onde nadavam embriões humanos. Os transportadores continuavam a sua marcha lenta com o seu carregamento de homens e mulheres do futuro.».
A reprodução in vitro era de facto uma velha ambição da humanidade e a angústia perante o desconhecido fazia com que este cenário fosse encarado como algo de temível, longínquo, apenas alcançável por uma entidade superior e necessariamente má, tão fortes seriam os poderes na sua posse. No entanto, a realidade ultrapassou a ficção e, 562 anos mais cedo do que Huxley previu (mas infelizmente 15 anos após a sua morte), foi mesmo possível concretizar o que até então parecia impossível: contra tudo e contra todos, perante o ceticismo geral e os medos de muitos, em Inglaterra, em 1978, Patrick Steptoe e Robert Edwards conseguiram o nascimento de uma criança após a realização de um tratamento de fecundação in vitro.
Foi uma pedrada no charco, conseguida após anos de trabalho duma pequena equipa subfinanciada e quase solitária, criticada por muitos e completamente fora do star system dos investigadores da época.
Eram tempos em que tudo faltava: quando Edwards e Steptoe começaram a trabalhar nas suas tentativas de desenvolver a fecundação in vitro não existiam medicamentos adequados ao processo de estimulação ovárica, não se conhecia completamente o efeito de alguns dos poucos fármacos que existiam à época, não existiam cateteres apropriados para transferir embriões, os métodos analíticos necessários para aferir a concentração urinária ou sérica das várias hormonas envolvidas no processo de ovulação eram quase inexistentes, os meios de cultura e as condições laboratoriais eram absolutamente primários e nem sequer existiam testes de gravidez que permitissem conhecer imediatamente o resultado dos tratamentos!
Como também estávamos numa época em que as ecografias obstétricas ou não existiam ou estavam ainda a dar os primeiros passos, ninguém sabia verdadeiramente o que é que se estava a passar no útero de Lesley Brown, a primeira mãe de uma criança nascida por fecundação in vitro. Havia o receio de se estarem a criar monstros ou crianças com anomalias graves e, como se poderá pensar, o conservadorismo religioso encarava esta situação com o maior ceticismo.
A própria Universidade de Cambridge, a que Edwards e Steptoe estavam ligados, não encarava esta linha de investigação com bons olhos e por isso deslocalizou-os para Oldham, o que seria mais ou menos equivalente ao que sucederia se uma grande descoberta da Universidade de Coimbra fosse na realidade obtida em Condeixa.
Louise Brown, a menina que a 25 de Julho de 1978 se tornou na primeira criança a nível mundial nascida após a realização de um tratamento de fecundação in vitro, foi concebida após um tratamento em ciclo natural (isto é, sem estimulação ovárica), do qual resultou um único óvulo, que foi inseminado e transferido para o útero de Lesley Brown, uma inglesa de 30 anos com ambas as trompas obstruídas e uma história de mais de 9 anos de infertilidade.
Quatro anos mais tarde, Lesley deu à luz uma segunda criança, Natalie Brown, na sequência de novo tratamento de fecundação in vitro. Em 1999, Natalie tornou-se na primeira criança nascida após fecundação in vitro a ser, ela própria, mãe de uma criança: aos 17 anos Natalie foi mãe de Casey, uma menina nascida após conceção natural. Era a prova que faltava e o fim do estigma para muitas outras crianças nascidas pelo mesmo método.
Robert Edwards, agraciado com o Prémio Nobel da Medicina em 2010 devido a esta fantástica descoberta (Steptoe faleceu em 1988), era um homem absolutamente brilhante, um embriologista visionário que teve a capacidade de persistir na luta pelas suas ideias e a lutar, de um modo perseverante, contra as sucessivas adversidades que enfrentou. Este processo teve tudo para correr mal – e de facto foram necessários mais de 10 anos de investigação para que fosse possível o nascimento de Louise.
No entanto, Edwards e Steptoe, com uma ética científica imbatível e uma capacidade de ousar, com pouco paralelismo a nível mundial, lutaram sempre pelas ideias em que acreditavam e hoje o mundo seria um lugar completamente diferente se eles tivessem desistido. Depois de 1978 tudo mudou: os nascimentos de crianças após fecundação in vitro multiplicaram-se e espalharam-se por todo o mundo. Hoje em dia são mais de 5 milhões as crianças nascidas na sequência destes tratamentos!
Robert Edwards e Patrick Steptoe ficarão na história como duas das pessoas que mais alegria trouxeram ao mundo em que vivemos. A humanidade deve-lhes muito, não só pelo valor da sua descoberta, mas sobretudo pelo capital de esperança que trouxeram a tantas pessoas. A infertilidade afeta 1 em cada 10 casais e, para eles, esta descoberta é uma verdadeira razão para viver.
Robert Edwards faleceu na semana passada. No entanto, o seu legado ficará connosco para sempre. Poucos cientistas fizeram tanto bem a tanta gente!
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