Zé, fala-nos da tua família mais recuada...
José Raposo: Por fotografia, conheço os bisavós pateros, mas da minha mãe já nem isso, nem sequer havia registos fotográficos.
De que zona eram?
J.R.: Da parte do meu pai, são de Ponte Evel, Cartaxo, Ribatejo; da parte da minha mãe, Lisboa, da Penha de França.
Então e de avós o que é que sabes?
J.R.: Conheci os pais do meu pai e os pais da minha mãe, só que de início estive afastado deles porque nasci em Angola. O meu pai e a minha mãe foram para Angola, tiveram-me lá a mim e ao meu irmão e nós só viemos para cá quando eu tinha 13 e o meu irmão tinha 9 anos. Mas durante esse período todo vim cá várias vezes, de três em três anos, nas chamadas férias grandes. Os meus pais vinham cá à metrópole e portanto acompanhei-os desde miúdo, mas à distância.
Então não foram próximos...?
J.R.: Não, não. A minha infância passei-a em Angola, no mato, na Lunda. O meu pai trabalhava lá, e depois estivemos em Luanda também 5 anos. África tem aquele cheiro característico, aquela luminosidade, é um campo muito diferente do de Portugal. É mesmo mato, o Norte de Angola. O meu pai era contabilista e fazia os pagamentos aos trabalhadores da empresa de diamantes, portanto ia às várias sanzalas de jipe e eu ia com ele muitas vezes. São estas as minhas memórias de pequenino, memórias da selva, dos animais, é giro.
E a tua mãe era doméstica?
J.R.: Sim, claro! Era doméstica, mas antes de ir para Angola trabalhou na «Singer». Depois casou com o meu pai por procuração aos 22 anos. Conheceram-se cá, num bailarico em Ponte Evel, a terra do meu pai. A minha mãe foi lá, ele catrapiscou-a, dançaram e depois casaram por procuração poque ele foi primeiro para Angola. Mas até casar trabalhou na “Singer”, com os pais do Fernando Mendes, eram colegas. Eu e o Mendes mais tarde viemos a encontrar-nos no teatro, e fizemos uma grande amizade, mas sem sabermos desse antecedente dos nossos pais.
Há memórias sensoriais ligadas à tua infância, os cheiros, os sabores...
J.R.: Tem muito a ver com África, nós ficamos com tudo isso muito enraizado cá dentro, os sabores das frutas, a comida...por acaso, um dos meus filhos vai para a zona onde eu nasci, trabalhar num filme do Ivo Ferreira sobre a Guerra Colonial. Disse que ia ver se conseguia ir à minha terra, ao Dundo.
Mas pensando ainda nesses avós com quem não tiveste tanta convivência, ainda assim e apesar dessa distância, sentes que te transmitiram alguma coisa?
J.R.: Sim, porque quando eu vim com 12 ou 13 anos e passei cerca de dois anos só com os meus avós maternos aqui em Lisboa. Os meus pais ficaram lá, e foi um período de adaptação meu a uma realidade diferente que era a Metrópole. De qualquer maneira, acho sempre que nessa idade da adolescência nós adaptamo-nos a qualquer realidade, mas era de facto muito diferente o modo de vida e a maneira de ser das pessoas de lá comparadas com as de cá. Tive esse período de choque e de adaptação, ainda por cima sem os meus pais, que eles ainda lá ficaram alguns anos... Só não foi complicado porque esses meus avós, pais da minha mãe, receberam-me lindamente, eram pessoas extraordinárias.
Como é que se chamavam?
J.R.: O meu avô Sá e a minha avó Pilar.
E os outros avós, como é que se chamavam?
J.R.: Eram o Rogério e a Emília.
Esses não conheceste tão bem...?
J.R.: Nesses dois anos em que eu vivi em casa destes meus avós, íamos várias vezes também a Ponte Evel visitá-los. Mais tarde, quando casei com a João, fomos viver para a zona do Cartaxo e tivemos uma relação mais ou menos próxima com esses meus avós. O meu avô Rogério era sapateiro e músico na banda, um saxofonista extraordinário. A minha avó Emília era muito querida! Tive uns avós muito campestres e uns avós citadinos, completamente diferentes. O avô Sá, de Lisboa, era caixeiro-viajante e ainda no outro dia estive em Évora e vieram logo essas recordações à cabeça. O meu avô ficava na Pousada dos Lóios, ao pé do dito Templo de Diana - como eram as empresas que pagavam, ele ficava em sítios maravilhosos. Andei com esse avô por esse Portugal fora, e se calhar começou aí o meu fascínio pelas tournées, que adoro! Chamávamos-lhe o avô “palhaço” porque era muito divertido. Com a família imediata era um homem austero - tinha sido militar de Cavalaria durante muitos anos, em Setúbal. Mas com os netos, era um avô que gostava de fazer brincadeiras, levar-nos a passear, e era um óptimo avô. Esses meus avós de Lisboa tinham outro hábito: as voltinhas saloias ao fim-de-semana! Adoravam ir a Mafra, à Ericeira, a Caneças, íamos almoçar lá, tomar café a Palmela, adoravam ir a Cascais também…
E os teus pais, que curiosidades nos contas?
J.R.: A minha mãe foi uma nadadora fantástica, ganhou uma medalha de travessia do Sado. Nunca mais nadou , mas ganhou lá uma medalha e tudo. Diz que ainda quer ir a Setúbal para ver se têm a medalha porque perdeu a dela em Angola. Eles gostavam muito de Setúbal e íamos lá às vezes comer uma caldeiradazinha, era uma das viagens que os meus avós faziam.
Que idade é que ela tem?
J.R. Fez agora 80 anos. O meu pai já faleceu há 3 anos.
E como foi o regresso deles a Portugal?
J.R.: Fizeram parte daquela leva de retornados. Eu ia para o Ciclo Preparatório, portanto quiseram salvaguardar isso, mas o meu irmão, que era mais novo, ainda ficou com eles e veio depois em ‘76/77. Fomos viver para a margem Sul, era mais barato. O meu pai foi daqueles que veio sem nada, com uma mão à frente e outra atrás. Foi recomeçar tudo.
E esse recomeçar como foi?
J.R.: Foi complicado. Ele exerceu sempre a profissão de contabilista, e foi trabalhar numa firma no Seixal. De 1980 a 83 foi como cooperante para Angola e voltou sempre com aquelas saudades que qualquer pessoa que passou por lá sente. Quando nós fomos viver para o Cartaxo, o meu pai e a minha mãe também voltaram às raízes e foram viver para a casa dos meus avós. Foi aí que ele viveu até ao fim da vida dele, e a minha mãe ainda lá vive.
Foi a casa onde ele nasceu?
J.R.: Foi a casa onde ele nasceu, em Ponte Evel. Casa que eu frequento muitas vezes, por causa da minha mãe. A minha mãe é muito activa, agora até está no Norte, em casa de um amigo nosso que é ali para os lados de Cabeceiras de Basto. Todos os dias me diz o que comeu: “Hoje foi uma galinha à cabidela, hoje foi coelho”, só para fazer inveja! Fazem caminhadas de quilómetros todos os dias para ir ao café. Ela está muito bem, está há uns meses com uma senhora da idade dela, e estão divertidíssimas. É muito melhor do que estar ou num lar ou numa casa onde não está ninguém, que seria o caso porque eu estou todo o dia fora, e a Sara também. Com o nosso trabalho, é complicado fazer companhia. Os pais da João ainda se têm um ao outro, a minha mãe estaria sozinha e por isso fico contente que esteja distraída e bem acompanhada.
Na segunda parte da entrevista fique a saber como foram os pais de José Raposo enquanto avós. Em breve!
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