Então vamos falar sobre os teus pais, Zé. Como é que viste a transição neles, de pais para avós?
José Raposo: Na relação com os netos foram mais próximos, mais disponíveis do que connosco, mas eu acho que isso acontece com toda a gente.
Se bem que a tua mãe ao ser doméstica estaria mais disponível do que se estivesse a trabalhar fora de casa, não?
J.R.: É verdade, e a outra avó materna também tinha essa disponibilidade, até porque os pais da João estavam mais próximos.
Geograficamente?
Maria João: Sim, mas trabalhavam de noite, tinham uma discoteca. Ficavam mais com os pais do Zé, sobretudo com o Miguel mais do que o Ricardo. No período da amamentação eu levava-os para todo o lado, e era tipo estafeta: às vezes estava a dar de mamar no guarda-roupa, que era onde ficava o Ricardo, o mais novo, e quando estava quase a «deixa» para eu entrar, voava pela escadaria abaixo três andares! Chegava a entregá-lo à primeira pessoa que saísse de cena e quando eu voltava a sair ia perguntar pelo Ricardo. Ou então ele acordava lá em cima e chorava, e mesmo sem o ouvir no palco as minhas maminhas começavam a deitar leite. Era duro!
J.R.: Nós começámos do zero, como muita gente, e zero significa andarmos com a alcofa atrás para todo o lado: nos transportes, teatros, discotecas, não temos problema nenhum em assumir isso. Ficámos na casa que era dos meus pais, eles foram para o Cartaxo e nós ficámos na Cruz de Pau.
M.J.A.: Quando fomos trabalhar para o Porto, íamos trabalhar para casas de alternadeiras e o Miguel ficava no camarim com elas.
J.R.: Há pessoas que ficam chocadas, mas eu quero lá saber! A realidade foi o que foi, trataram realmente muito bem os nossos filhos e a nós. Nós fizemos shows em casas noturnas de alterne, uma meia-hora de sketches de revistas com uma fadista pelo meio. O bebé ficava na alcofa à nossa espera, e elas durante esse show tratavam-no lindamente. Mandavam calar os clientes de uma forma que muitos espectadores não o fazem, não é como alguns que se põem a telefonar ou adormecem... Se fosse preciso diziam uns palavrões para os pôr na ordem. Foram dos melhores públicos que nós tivemos, faço sempre questão de dizer isto das alternadeiras.
M.J.A.: Atenção que nós tínhamos uma ama que ficava com o Miguel, mas às vezes saíamos do teatro, estávamos cheios de saudades e passávamos e levavamo-lo para uma bôite que era o «Calor da Noite», e outras.
J.R.: Foi no «Calor da Noite» que o Miguel aprendeu a dormir no meio das alternadeiras!
M.J.A.: Eles sempre vieram para o teatro connosco, o Ricardo e o Miguel. Quando os avós não podiam ficar com eles, iam para onde nós íamos: para a televisão, para o teatro...
J.R.: As pessoas têm um pudor não sei de quê! Se somos actores, a nossa vida é esta e os nossos filhos pertencem à nossa vida. Sei que somos suspeitos, mas se tu perguntares a qualquer colega que os conhece dizem-te que são dois miúdos fabulosos, dois seres humanos extraordinários. Para nós é um orgulho e ainda por cima saíram dois atores com talento.
O facto de virem convosco para o teatro acaba por entrar no ADN?
J.R.: Claro que teve alguma influência, mas podiam ter esse desejo e depois não terem o talento.
M.J.A.: E só canta bem quem nasce com boa voz, eles têm esse dom.
E os teus pais, Maria João, como é que foram como avós?
M.J.A.: Foi uma loucura! Eles quase quiseram sobrepôr-se aos pais, porque nós fomos pais muito novos, eu com 21 e o Zé com 22, e então queriam dar muitos conselhos e quase impor as regras deles dizendo “Vocês estão a fazer mal, porque no meu tempo…” Houve ali uma fricçãozinha porque nós queríamos seguir à risca o que a pediatra dizia e eles diziam que ela era doida e que não sabia. Mas sempre por amor, obviamente. Se eu tivesse de ir trabalhar mas achasse melhor não levar os miúdos, lá vinham eles disparados para ficar com eles.
E gostavam?
M.J.A.: Sim, adoravam os avós!
J.R.: Nós fomos viver para o Cartaxo quando eles ainda eram pequeninos acima de tudo por causa deles, para crescerem na Natureza. Fizeram a primária e a secundária lá e ainda hoje dizem que foi muito bom para eles. Tiveram contacto com coisas que não teriam tido se tivessem ficado na cidade apenas. Ali, tinham acesso ao campo e à cidade.
Houve muita diferença entre o primeiro e o segundo?
M.J.A.:Sim, o segundo teve muito mais facilidades. Já tínhamos carro, já não andávamos de transportes, já não andávamos a fechar o carrinho de bebé para pô nas chapeleiras das camionetas, já foi diferente. Quando nasceu o mais novo já conseguíamos pagar a empregadas para ficarem em casa, apesar do Miguel também ter tido algumas mas com dificuldade porque todas queriam folgar ao sábado....
E o relacionamento deles como irmãos, dão-se bem?
M.J.A.: Fabuloso!
J.R.: Aquilo é uma relação de pai-filho, é impressionante!
M.J.A.: Eles têm quase 7 anos de diferença, e inicialmente o Miguel fazia muitas queixinhas do irmão, mas depois chega aquela altura em que estão juntos em tudo. Ambos são atores, também têm bandas, tocam, compõem e no dia em que decidiram sair de casa – nessa altura eu e o Zé já estávamos separados, foram viver os dois juntos com as respetivas namoradas. Antes disso, quando o Ricardo foi para Londres com 17 anos, o Miguel não queria. Dizia: “Vocês são loucos, não o deixem ir porque Londres não é Lisboa e eu não estou lá para o defender”.
E são completamente autónomos?
J.R.: Sim, sim!
Vocês nunca vão lá a casa levar umas comidas?
M.J.A.: Claro que vou, mas porque eu quero, eles não pedem nada.
J.R.: A João é a mãe-galinha fantástica! Os miúdos têm uma sorte!
M.J.A.: Às vezes trato da roupa, ou levo uns tupperwares já com comida, estou sempre a perguntar: “Precisam de alguma coisa?” , mas eles dizem sempre “Não, não está tudo bem!” Ainda assim levo sempre qualquer coisa. É porque eu sei o que é que foram os meus vinte e tal anos. Eu às vezes precisava e dizia que não, e os meus pais fizeram o mesmo comigo. Limito-me a reproduzir com os meus filhos o que os meus pais já fizeram.
Estão com muita vontade de ser avós? (Na altura da entrevista, a notícia ainda não tinha sido revelada...)
M.J.A.: Eu, muita!
J.R.: Então não! Claro que sim!
E acham que estão próximos de o ser?
M.J.A.: Sim, mais um ano ou dois. A Rita e o Ricardo (que é o mais novo) casaram há dois anos e disseram «dentro de 3 anos vocês vão ser avós». Entretanto a Rita está no primeiro ano do Conservatório, e talvez daqui por 3 anos haja novidades. O Miguel sempre disse que não queria ter filhos porque este mundo era horrível, mas já está a mudar de ideias. Os amigos dele estão todos a ter filhos e ele diz: “sabes que agora já me apetece ter filhos? Os meus amigos começam todos a casar e a ter filhos e já me apetece.”
Vocês querem acrescentar alguma coisa acerca do papel dos vossos pais em relação aos vossos filhos?
M.J.A.: Os meus pais sempre foram muito conservadores, muito conservadores mesmo. Quando eu decidi ser actriz claro que perguntaram como é que eu ia viver, dar de comer aos meus filhos... Depois isso foi ultrapassado e agora são os pais mais babados do mundo, o meu pai tem de dizer a toda a gente quem é a filha e quem são os netos. Sempre fizeram tudo por mim, mas pelos netos eles vão até à Lua! São muito mais permissivos e os netos conseguiram tirar-lhes alguns preconceitos e pudores da cabeça. Eles têm mudado muito ao longo da vida e os netos foram fundamentais para essa mudança.
Por falar em ser conservador, na novela a Maria João fazia o papel de uma mãe de um rapaz homossexual e com uma abertura muito grande a essa diferença. Se algum dos vossos filhos tivesse sido homossexual, como é que iam reagir?
J.R.: À partida, isso tem a ver com a formação das pessoas, mas nunca se sabe bem qual será a reação. Da forma como eu amo os meus filhos…
M.J.A.: Não ia mudar nada!
J.R.: Não ia mudar nada.
Às vezes os avós muitas vezes estão mais disponíveis para compreender do que os próprios pais.
M.J.A.: Eu penso que neste caso seria capaz de haver ali um baque. Os pais projectam sobretudo ser avós e não é que seja impeditivo, podem ser avós não-biológicos... Acho que o importante mesmo é a integridade das pessoas, a honestidade, a generosidade e a forma como estão na vida, isso é o fundamental.
J.R.: Acho que os nossos pais teriam uma atitude mais conservadora em relação a uma situação dessas…
M.J.A.: Mas depois iriam ultrapassar!
J.R.: Por causa da tal formação deles conservadora, católica, etc, mas como têm uma relação muito forte com os miúdos, seria ultrapassado. Aliás, o nosso foi o primeiro divórcio da família.
M.J.A.: Ficaram cheios de pena!
Foi difícil de gerir?
M.J.A.: Foi!
J.R.: Sim, claro! Claro que sim, é sempre.
M.J.A.: É sempre!
J.R.: Uma separação depois de vinte e dois anos de vida...
E é uma família com ligações fortes?
M.J.A.: Sim!
J.R.: Sim, aliás continua, essas ligações mantêm-se: da minha mãe com os pais dela, eu e ela...
M.J.A.: A mãe dele ás vezes também vai passar temporadas a casa dos meus pais que vivem em Benavente. Têm 72 anos e continuam a trabalhar a terra, fazem agricultura, levam tudo para nós comermos: os ovinhos, o tomatinhos, a batatinha e eu sempre a ralhar com eles. Às vezes eu não trago nada para casa porque eles já não podem, já não têm saúde. Uma coisa é fazer uma jardinagem, ter uns vasinhos com plantas, outra coisa é trabalhar ali no duro, a apanhar batatas, a semear, a fazer regas.
Eles são pais para ligar todos os dias ou a filha é que liga todos os dias aos pais?
M.J.A.: Todos os dias eu ligo aos meus pais.
J.R.: Já eu não posso dizer o mesmo. Se não é a minha mãe a ligar, esquece. Mas eu tenho uma relação com o telefone de ódio.
M.J.A.: Sempre liguei todos os dias aos meus pais, sempre. Se eu não ligar, por algum motivo, ligam eles. Agora desde que sou mãe e que os meus filhos saíram de casa eu ainda percebo mais isso. Ligo todos os dias para os meus filhos e o Miguel, o mais velho, de vez em quando liga, mas o Ricardo é raro ligar, só quando precisa de alguma coisa. Eu ralho com ele e digo-lhe: “Isso é muito feio, o que tu fazes. Acho que criei um filho interessante e não interesseiro” e ele responde “Ó mãe, mas se tu me ligas todos os dias eu já não preciso de te ligar”.
J.R.: É obvio, tem toda a razão.
M.J.A.: Às vezes faço a experiência de não ligar.
E o que é que acontece?
M.J.A.: E eles ligam, claro.
E consegues?
M.J.A.: Consigo! aguentar, agora vou estar uns dias sem ligar ao segundo dia ligam eles, porque estranham.
J.R.: Quem perde com isto sou eu porque eles não me ligam a mim, não porque eu não faço essa exigência digamos assim.
M.J.A.: Eu não faço exigência nenhuma!
J.R.: Fazes naturalmente. Se tu, ao segundo dia, dizes “Epá, não me ligaste”, obviamente que eles se sentem tristes.
M.J.A.: Mas agora o Miguel foi para uma residência artística para Montemor com uns colegas e eu disse: «quando chegares lá, diz só que chegaram e está tudo bem» e ele disse. Não tenho falado com ele porque eu sei que ele está com colegas, está em trabalho, mas quando chegar de lá ligo-lhe.
Bom, e os velhos em Portugal?
J.R.: Estão muito mal tratados.
E mal tratados por quem?
M.J.A.: Pelos filhos e pelo Estado!
J.R.: Pela falta de direitos que têm!
M.J.A.: Pelo Estado acima de tudo. Claro que há muitos filhos que pegam nos pais e vão entregá-los ao hospital e nem sequer os vão visitar, deixam-nos lá para morrer ou largam-nos nos Lares de Terceira Idade.
J.R.: Sim, mas os governantes têm muita culpa em tudo isto, neste momento.
M.J.A.: Há os laços emocionais e depois há as obrigações do Estado - são coisas distintas.
J.R.: Mas em relação à nossa área, acho que os nossos colegas são muito mal tratados. Felizmente, temos a Casa do Artista que é de facto um local fantástico, mas que já não chega para todas as necessidades. Para já, a Casa do Artista não pode pôr as pessoas a trabalhar, é só um lar e o actor só deixa de trabalhar quando morre. Ora bem, uma profissão em que a pessoa trabalha até fim da vida e tem de o fazer porque não tem uma série de direitos que outros têm... Neste país somos tratados como uns sem profissão, umas pessoas muito estranhas. Depois as novelas cada vez têm menos velhos, os velhos não existem nestes núcleos e no teatro também não, portanto é uma marginalização pura.
Mas vocês acham que houve essa degradação não só das condições de vida dos velhos, mas também uma alteração de valores no próprio país e na maneira como as pessoas olham para os que estão cá há mais tempo?
J.R.: Sim, sim!
M.J.A.: Com toda a certeza!
Porque é que esta camada da população na vossa opinião passou a ser tão ostracizada, tão negligenciada, o que é que aconteceu?
M.J.A.: Eu acho que a começa pelo Estado, pelo Governo...parece que estão doidos para que os velhos morram, porque são menos pensões para pagar. Mas depois começou a haver também alguma falta de respeito por parte das pessoas comuns - não somos todos iguais e há filhos que respeitam imenso e ajudam e estão ali presentes na vida dos pais ainda que não possam estar a tempo inteiro, e fazem um esforço para visitar os pais todos os dias - mas eu conheço muitos idosos que estão completamente ao abandono.
J.R.: Eu acho que é uma questão de educação acima de tudo.
Educação daquela que se recebe na escola?
J.R.: Principalmente a educação da família.
M.J.A.: Eu acho que tem a ver com esta sociedade de consumo, as pessoas tornaram-se egoístas, só olham para elas, não querem ter trabalho.
Mas por outro lado nós também não conseguimos fazer com os nossos pais aquilo que vocês conseguiram fazer com os vossos filhos, ou seja, nem sempre é fácil trazermos os nossos pais, no vosso caso para o teatro.
J.R.: Sim, mas todos nós temos um papel a cumprir. É uma questão de perda de valores, é uma questão geracional. Toda esta era da tecnologia individualizou-nos muito tudo, as pessoas são muito egoístas. A geração dos vinte e tal por aí fora estão cada vez mais mal habituados, os pais porque têm uma vida hoje em dia mais corrida e complicada dão-lhes os telemóveis para despachar, eles ficam ali entretidos. A vida é muito mais preenchida de trabalho, não de valores. Não estou a culpá-los, eles já nasceram dentro deste sistema, mas acho que é sempre possível voltar a repor um bocadinho os valores que nos assistiam enquanto família.
M.J.A.: Não tem sido agradável para mim, desde Agosto do ano passado até agora, ter andado no intervalo das gravações da novela com o meu pai e com a minha mãe e com o meu filho em médicos e consultas a fazer despiste disto e daquilo. Fiz questão de os acompanhar até porque, infelizmente, tenho a certeza que o facto de ser eu e ser mais nova ajudou a agilizar o processo, mas longe de mim ter uma manhã livre e ficar a dormir em vez de acompanhar os meus pais, tem sido um esforço enorme, mas é por amor e eles merecem.
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