A dispepsia, muitas vezes referida como “indigestão” ou “dor no estômago”, é muito comum. Consiste em sintomas como dor ou queimação na parte superior do abdómen, sensação de saciedade precoce durante a refeição ou sensação de peso que pode piorar depois de comer. Esses sintomas surgem de problemas no estômago ou na primeira parte do intestino delgado, chamada duodeno. Às vezes, esses sintomas podem ser causados por uma causa subjacente, como uma úlcera. No entanto, na maioria dos casos, os exames complementares não apresentam alterações, sendo esta condição referida como dispepsia funcional (DF).

É importante ressalvar que resultados normais nos exames não significam que não haja causa para a DF, conhecendo-se a sua relação com alterações na comunicação bidirecional entre o intestino superior e o cérebro. Problemas com as estruturas nervosas do estômago e do duodeno podem torná-los mais sensíveis a um normal funcionamento. Às vezes, o estômago pode demorar a esvaziar, contribuindo para a sensação de plenitude ou saciedade precoce. Factores psicológicos, como stress, certos alimentos ou alterações na microbiota que habita esses órgãos podem também desempenhar um papel no desenvolvimento dos sintomas.

A DF tem uma prevalência estimada em 11,5% na população geral, sendo maior em mulheres do que em homens, e tende a ocorrer com mais frequência em adultos de meia-idade. A DF pode ter um impacto significativo na qualidade de vida dos indivíduos afectados. Vários estudos têm mostrado que a DF se associa a redução da produtividade no trabalho, condiciona as relações sociais e frequentemente diminui o bem-estar físico. Adicionalmente, verifica-se um maior recurso aos serviços de saúde, com natural sobrecarga financeira. Além do impacto na qualidade de vida, a DF também tem sido associada a um risco aumentado de desenvolver outros distúrbios funcionais gastrointestinais, como doença do refluxo gastroesofágico e síndrome do intestino irritável.

Alguns doentes com DF aprendem a controlar os seus sintomas mudando estilos de vida ou a dieta, ou gerindo o stress de maneira diferente. Outros doentes consultarão o seu médico de família, que normalmente pode fazer o diagnóstico de DF com base nos sintomas típicos. No entanto, em indivíduos de idade mais avançada ou com história de cancro gástrico pode ser necessário a referenciação para um Gastrenterologista para exames adicionais como endoscopia digestiva alta e/ou estudo de imagem do abdómen para excluir causas estruturais potencialmente mais graves. Mesmo entre os doentes que passam por uma investigação mais aprofundada, a probabilidade de encontrar doenças graves, como o cancro gástrico, permanece baixa.

Exercício regular e mudanças no estilo de vida, como evitar certos alimentos que podem desencadear sintomas, será útil para alguns doentes. No entanto, não há evidência que suporte dietas especializadas para tratar a DF, e restrições alimentares não supervisionadas podem levar a desnutrição ou hábitos alimentares incorrectos.

Se não efectuada previamente, todos os doentes com DF devem fazer pesquisa de infecção gástrica pelo Helicobacter pylori. Se o resultado for positivo, a prescrição de um curso adequado de antibióticos pode promover uma melhoria prolongada dos sintomas. No entanto, aqueles com teste negativo, ou teste positivo mas cujos sintomas persistem após antibioterapia e confirmação da erradicação, devem ser propostos para outras opções terapêuticas.

Alguns dos medicamentos recomendados para a dispepsia funcional têm maior efeito no tubo digestivo, muitas vezes trabalhando para reduzir a produção de ácido ou promovendo um esvaziamento gástrico mais acelerado. Outros fármacos actuam a nível do sistema nervoso central e do sistema nervoso entérico (intrínseco do tubo digestivo), sendo conhecidos como “neuromoduladores” e ajudam a reduzir a sensibilidade gástrica e/ou duodenal.

Vários estudos mostraram, também, que terapias psicológicas ou comportamentais podem ser benéficas para o tratamento dos sintomas da DF. Essas abordagens baseiam-se no conceito de que nosso cérebro e os nervos intestinais comunicam directamente e podem influenciar-se mutuamente. Com o treino apropriado, o nosso cérebro pode ajudar a controlar as sensações do nosso tubo digestivo superior, no entanto é necessário tornar estas opções terapêuticas mais disponíveis para os doentes com DF.

Em alguns casos, os sintomas são particularmente intensos, com impacto importante na qualidade de vida dos doentes, ou mostram-se refractários às várias opções terapêuticas já discutidas. Nestas situações, recomenda-se que os doentes sejam tratados por uma equipa multidisciplinar, promovendo que os mesmos tenham acesso a abordagens especializadas suportadas na melhor evidência actual, permitindo também diminuir a exposição a investigações e procedimentos desnecessários ou medicamentos sem eficácia demonstrada.

Um artigo do médico Armando Peixoto, especialista em Gastrenterologia e membro da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia.