“Aríston definiu sabiamente a retórica como a ciência de persuadir o povo; Sócrates e Platão, como a arte de enganar e lisonjear”
Montaigne
Dizer mal dos políticos é santo para o qual sou parco em contribuir. Só mesmo quando tem de ser.
Todavia, quando os responsáveis políticos, sejam do governo ou oposição, falam sobre os cuidados de saúde primários (CSP) e da importância dos CSP e da atenção de que são merecedores os CSP por parte da tutela e dos méritos dos CSP … é mister zurzi-los. A retórica, quando privada da companhia de ações, fica solteira e não vale mais que um espantalho que já nem os pardais levam a sério. Quando se apagam as luzes da ribalta, quando cai o pano e os políticos deixam de estar no ar, some-se, como por encanto, esta consideração pelos CSP. Claro que a instituição CSP não deixa de estar presente na mente da tutela. Está, mas como capital passivo, isento de alma e vontade, para ser usada segundo as conveniências de momento. Não há empatia com os CSP. Dito doutro modo: na mente da tutela está o que é que os CSP podem fazer por alguém e nunca que o que se pode fazer pelos CSP. Vamos a exemplos.
Certo dia chegaram largas dezenas de refugidos do Afeganistão (a quase totalidade crianças e mulheres, poucas falando inglês) a uma pequena cidade da província e a tutela, bondosamente, ordena à USF local: “Queremos consultas para essa gente e rapidinho”. Isto sem ter minimamente em conta a atividade regular da unidade e a existência ou não de reserva funcional para missões extra desta magnitude. São inúmeros as IPSS onde não há assistência médica. Resolve-se o problema facilmente: os MF passam a ter a incumbência de visitar os respetivos utentes nos lares. Claro está, tão extravagante decisão, por impossibilidade prática de implementação, resultou num tiro de pólvora seca. Anos atrás, os clubes de futebol, pouco virados para pagarem a médicos com a competência em medicina desportiva para a avaliação dos seus filiados, chegaram-se à então ARS distrital e foram ouvidos: os MF receberam ordem para consultarem, com prioridade, os atletas em questão. Mais uma vez sem consideração pelas disponibilidades dos profissionais e, por esse motivo, mais uma vez as ordenações ficaram por cumprir. Mais recentemente, perante as enxurradas de doentes a recorrem aos SU hospitalares, decidiu a tutela que as pulseiras azuis seriam remetidas aos CSP. Ora, sendo sabido que a penúria de médicos é mais gravosa nos centros de saúde, a iniciativa redundou em mais um fiasco.
Em nenhum destes episódios a tutela teve sucesso. Porquê? Porque não teve em conta a realidade. Resultado: perda de autoridade por parte dos decisores e quebra da força anímica nos CSP.
Mas, o que pedem os CSP à tutela? Que fazer pelos CSP? A degradação a que chegou o SNS é assustadora e não se compadece com soluções simplistas ou com derramar dinheiro sobre os problemas. Há decisões difíceis de tomar, outras, bem identificadas, mas difíceis de implementar. Contudo, também as há fáceis de executar e com impacto positivo não negligenciável no imediato. Fez cinco anos que a Ordem dos Médicos sugeriu os CIT (vulgo: baixas) deixassem de ser emitidos por médicos, para períodos inferiores a três dias. Nos países realmente avançados, e com produtividades bem mais robustas que a nossa, há muito que dispensaram um procedimento tão inútil como lesivo da imagem dos MF. Bem ou mal, há muito se decidiu impossibilitar os serviços de urgência hospitalar de emitirem CIT, remetendo a tarefa para os CSP, claro está. Mas quando se trata de aliviar os MF desta tarefa, aliás também lesiva dos interesses dos utentes, escusada e desprestigiante, os decisores políticos deixam-na no fundo da gaveta. Mas há mais. Se durante os primeiros tempos da campanha de vacinação anti-Covid a presença de médicos era imprescindível, hoje, com a experiência adquirida, após dezenas de milhões de vacinas administradas, não se justifica manter a norma que impõe a presença de MF nos centros de vacinação.
Se estas duas aberrações se mantem de pedra e cal é porque, quando fora do alcance dos holofotes da comunicação social, os decisores menosprezam os CSP.
Já a intervenção no parque informático precisa de outra cautela porque um problema mais complexo e exigindo investimentos avultados em servidores. Mas verdade é que o imobilismo também custa caro em perdas de produtividade e paciência dos utilizadores.
Para outros problemas mais bicudos (quotas para acesso ao modelo B, salários, avaliação, etc.) não haverá soluções ao virar da esquina e devemos reconhecê-lo. Mas, repito, procrastinar medidas simples, de inquestionável justeza e impacto prático, é intolerável.
Seria aconselhável interrogarem-se os decisores políticos porque é que os jovens estão a desertar do SNS, em vez de perderem tempo a tentar ludibriar os cidadãos com promessas de melhorias progressivas nos anos que virão e manhãs que cantarão. É contar com o ovo no rabo da galinha, sendo sabido que o ovo vem cada vez mais minguado. Andam a tentar tapar a realidade com retórica.
Comentários