Em setembro de 2021, o Professor Manuel Heitor, enquanto Ministro, numa entrevista ao Diário de Notícias, disse o seguinte: «… para formar um médico de família experiente não é preciso, se calhar, ter o mesmo nível, a mesma duração de formação que um especialista em oncologia ou um especialista em doenças mentais». Inclusive, referiu como exemplo o Reino Unido, que prontamente veio desmentir o falso comentário. Estas palavras provocaram uma onda de protestos, uma vez que encerravam vários pressupostos graves, desde o desconhecimento das necessidades formativas de um médico de família à hierarquia implícita de especialistas. O que eu quero realçar é meramente o seu à-vontade em tecer considerações sobre a medicina geral e familiar (MGF).

No início deste verão, o Secretário de Estado Dr. Lacerda Sales, surpreendeu os portugueses ao comunicar-lhes que todos iriam ter médico de família, se não fosse um especialista seria um médico qualquer, porque antes um, do que nenhum. Novamente, as palavras ditas implicam muitas considerações, mas apenas quero enfatizar a leviandade do discurso referente à MGF.

Em concursos sucessivos as vagas destinadas a esta especialidade ficam por preencher, especialmente nas grandes cidades e respetivas periferias, originando lacunas nas várias unidades, criando dificuldades a montante e a jusante, que são difíceis de solucionar. Os fatores envolvidos são vários, sociais, económicos, estruturais ao serviço nacional de saúde, mas não podemos ignorar o preconceito de género. A feminização da especialidade condiciona a sua desvalorização, uma vez que predomina a andronormatividade. Ou seja, os valores masculinos vêm em primeiro lugar, e os das mulheres têm que ser evidenciados com esforço. Por isso, o Professor Manuel Heitor e o Dr. Lacerda Sales, acharam-se no direito de dizer o que disseram. A feminização também existe noutras especialidades, como a pediatria e a ginecologia/obstetrícia, não sendo coincidência a agressão desta semana a uma colega obstetra e a pressão exercida sobre as colegas por causa das escalas das urgências. Se a especialidade em causa, com os mesmos problemas, fosse a ortopedia, teriam dito o mesmo? Claro que não! E isto é preconceito de género. As mulheres são tratadas de modo diferente, apenas porque são mulheres. Eu não digo que a abordagem das questões de género divide a classe médica, porque na prática a resistência é universal, entre homens e mulheres. A medicina também não é neutra, como alguns afirmam. O modo como as instituições e as práticas legitimam e privilegiam a heterossexualidade como fundamental e natural, não deixa margem para dúvidas.

Em 2010, o número de mulheres médicas igualou o número de homens. A partir deste ano, o intervalo foi aumentando sempre com as mulheres em maioria. Foi também em 2010 que a Ordem dos Médicos teve uma candidata a Bastonária (o feminino existe, sim senhor), a Dra. Isabel Caixeiro. Conseguiu levar a sua candidatura a uma segunda volta, porque na primeira ficou separada do outro candidato por um total de 97 votos. No entanto, não foi eleita. Embora os números tenham peso, por vezes observamos alterações difíceis de explicar. Apresento uma tabela com a distribuição de especialistas, de acordo com o sexo, meramente descritiva, permitindo a cada leitor a sua reflexão pessoal.

Mulheres

 

Homens

 

Total
MGF

 

5199 3034 8233
Pediatria

 

1687 610 2297
 

Gin/obst

1238 623 1861
 

Cirur. Geral

582 1264 1846
 

Ortopedia

168 1158 1326
 

Neurocirurgia

44 204 248
 

Urologia

31 426 457
 

Total

33396 25339 58735

Estes dados pertencem às Estatísticas da Ordem dos Médicos e são referentes a 31 de dezembro de 2021. E subtilmente, trazem algumas preocupações sobre as questões de género, quem nos representa, os ambientes formativos e a progressão na carreira.

A frase do título pertence a um conhecido ortopedista, do meu grupo de amigos, e foi dita durante uma conversa mais acesa sobre as desigualdades dos cuidados de saúde, com base no preconceito de género. Dizia ele que, precisava saber qual o sexo, e não género, do osso que iria tratar, porque a abordagem seria diferente. É obvio, que a saúde do osso depende da sua função, bem como da atividade geral desenvolvida pela pessoa que o tem. No entanto, dizer que um determinado osso é «masculino» ou «feminino» é esperar que determinados papéis de género sejam cumpridos por um sexo em detrimento do outro e isso, é claramente preconceito de género. O mesmo se passa com outras funções do corpo, para além da reprodução.

As minhas palavras não pretendem, ainda, encontrar caminhos para a abordagem das questões de género, nomeadamente, o preconceito de género e o seu impacto nos sistemas de saúde. Quis só trazê-lo à superfície, para terminar com a sua invisibilidade e diminuir a resistência em seu torno.