O fenómeno da hesitação vacinal é complexo, com várias causas e raízes. É um fenómeno bastante dinâmico, com vários gradientes, não se resumindo a uma posição dicotómica estática. É uma preocupação legítima da saúde pública e dos decisores políticos, tanto na Europa como na América do Norte. Mas não devemos projetar este problema para o resto do mundo. Antes de chegarmos à dimensão da recusa vacinal, é preciso passar pelas dimensões da disponibilidade e acessibilidade vacinal.

Ouvimos demasiadas vezes o argumento “os países pobres já têm acesso às vacinas, eles é que não as querem tomar!”. É uma narrativa que apaga a profunda desigualdade no acesso às vacinas e esconde que 80% dos residentes no continente africano, não tiveram acesso a uma única dose de qualquer vacina contra a Covid. Por outro lado, no continente europeu, o ECDC reporta que mais de metade dos cidadãos já teve acesso a uma dose de reforço.

Fica absolutamente claro, que esta enorme disparidade não é fruto da recusa vacinal. Mascarar a falta de acesso com recusa vacinal é desonesto e não contribui para a resolução do problema. O seu único ponto de contacto, é que são ambas o produto de uma construção material e social, com profundas raízes históricas. Por motivos diferentes aos verificados na Europa, a recusa vacinal e desconfiança da indústria farmacêutica ocidental, nos países de médio e baixo rendimento, tem complexos alicerces históricos e políticos. Não é preciso recuar muito no tempo para encontrar exemplos. Já neste século, desde ensaios da Pfizer com antibióticos experimentais na Nigéria sem cumprir nenhum preceito ético, ao envolvimento da CIA em falsas campanhas de vacinação, não faltam histórias que validam a desconfiança da população.

Talvez mais surpreendente para um observador ocidental, é que apesar deste passado recente, os estudos apontam que a recusa vacinal é menor em países de baixo e médio rendimento, atingido valores bem mais elevados nos EUA e Rússia que no Nepal ou Serra Leoa. A menor cobertura vacinal dos últimos, é mais fruto da dificuldade de acesso a cuidados de saúde, que da recusa a qualquer tipo de vacina. Em 2021, 99% dos pais da Serra Leoa, dizia que as vacinas são importantes para salvar a vida aos seus filhos e 95% afirma que são seguras. Nos EUA, estes valores descem para 87% para a perceção da importância para salvar vidas e apenas 73% para a segurança.

Também no ano passado, o CDC africano publicou um estudo onde é revelado que 80% dos habitantes do continente estavam disponíveis para receber a vacina contra a Covid. As declarações do CEO da Pfizer ou do primeiro ministro inglês, que afirmaram publicamente que “os africanos não querem tomar a vacina”, são, no melhor cenário, uma especulação não informada, ou na pior das hipóteses, uma tentativa de mascarar a realidade. O Ocidente tem feito pouco para corrigir a desigualdade no acesso mundial às vacinas, é mais fácil acusar o Outro de recusar a vacina, em vez de solucionar e partilhar a solução para a pandemia global.

Devemos evitar confundir hesitação vacinal com a falta de acesso. No nosso privilégio da abundância de vacinas e facilidade de acesso aos cuidados de saúde, é natural que haja mais atenção mediática aos 3-4% de portugueses que recusaram a vacina, que aos 96% que a aceitaram e cumpriram todas as indicações das autoridades de saúde. O sucesso português da vacinação em muito se deveu à sua população. Mas cuidado com as projeções e extrapolações para outros contextos. Não pode haver recusa de um bem que não está disponível.