Quando, na década de 1970, surgiram os primeiros casos em Luanda, Cruz Ferreira, então diretor do Hospital Universitário e do Instituto de Medicina Tropical, não teve dúvidas em afirmar que se estava perante a epidemia causada pelo mosquito 'Aedes aegypty'.

"Quando viu os doentes ensanguentados, com vómitos, prostrados disse logo que era febre-amarela. Contradisseram-no, dizendo que os estudos existentes em Angola nunca tinham detetado o mosquito que era o vetor da doença. Se não encontraram o mosquito procurem melhor", recordou à Lusa Defensor Moura, na altura aluno do catedrático.

O ex-autarca socialista de Viana do Castelo, que frequentava o sexto ano do curso de medicina, testemunhou o episódio "caricato mas eficaz" que se seguiu à resistência inicial dos especialistas para a existência de um foco epidémico e que acabou por levar à confirmação do diagnóstico e que permitiu controlar a proliferação do surto.

"O professor reuniu todos os contínuos do Hospital Universitário de Luanda, que viviam nos subúrbios, e fez-lhes um desafio. Ofereceu 20 escudos a quem lhe trouxesse um exemplar do mosquito, em frasquinhos que distribuiu, e depois de mostrar, com 'slides', um exemplar do inseto", contou.

"No dia seguinte, trouxeram-lhe logo meia dúzia daqueles mosquitos o que permitiu confirmar o diagnóstico da febre-amarela e desencadear imediatamente uma campanha de vacinação", disse.

Campanha de erradicação do mosquito

O "pragmatismo" do professor catedrático desencadeou, além da vacinação, e em colaboração com os militares, uma campanha de erradicação do mosquito, secando os charcos, eliminando todas as águas paradas para que o mosquito não pudesse pôr os ovos e não se pudesse reproduzir".

"Foi tão eficaz essa campanha, que ao contrário do que se verificou noutros países africanos creio que só houve seis dezenas de casos de febre-amarela, graças à ideia brilhante do professor Cruz Ferreira que resolveu encontrar um mosquito que se dizia não existir", afirmou.

O "pragmatismo" do mestre em doenças infetocontagiosas marcou o discípulo: "A sua experiência clínica dizia-lhe que aquilo tinha que ser febre-amarela e havia que encontrar o mosquito. Foi o que ele fez", sublinhou Moura, hoje com 71 anos, médico aposentado e ex-político que durante 20 anos liderou os destinos do município de Viana do Castelo, destacando "a importância da valorização da interpretação dos quadros clínicos".

"Dizem que os médicos se fazem como os barbeiros, na cara dos doentes, mais do que na teoria. Atualmente há muitos exames complementares que facilitam o diagnóstico mas nessa altura contava muito a experiência clínica", explicou.

Desde finais de 2015, e segundo dados do serviço nacional de saúde pública angolano, o surto de febre-amarela já causou, até domingo último, 242 mortes de um total de 1.751 casos.

"Estou preocupado. Não vou a Angola há muito tempo mas pelas imagens que vejo as condições de higiene nos bairros periféricos são muito más, e isso facilita a proliferação do mosquito. Havendo muita quantidade de doentes, os serviços de saúde tem muitas dificuldades em responder", referiu.