“Motivou-nos o facto de termos conseguido fazer esta análise dos dados do serviço e da implementação de todas estas novas áreas de atuação do serviço em proximidade com a comunidade”, adiantou, em entrevista ao HealthNews, o diretor do Serviço de Infecciologia, Nuno Marques. É já amanhã, dia 30 de maio, entre as 9h30 e as 16h30.
HealthNews (HN)- Porquê o tema “Co(i)munidade: Estratégias comunitárias na prevenção de doenças infeciosas”?
Nuno Marques (NM)- Este tema surge no seguimento, também, do que aconteceu durante a pandemia. O Serviço de Infeciologia esteve muito envolvido na prestação de cuidados hospitalares na pandemia Covid, mas foi também um momento em que considerámos importante estabelecer algumas parcerias que visavam sobretudo a criação de novas prestações de cuidados e de novos programas de saúde em proximidade com a comunidade. Um desses programas teve a ver com o desenvolvimento da estratégia municipal do concelho de Almada “Almada Município sem SIDA”, porque o município assinou, em outubro de 2018, o programa de eliminação para a infeção VIH, o Fast-Track Cities.
Houve uma necessidade de estabelecermos, também para dar resposta à pandemia, modelos de maior proximidade, quer com o município, quer com estruturas comunitárias, a saúde pública, a proteção civil e outros parceiros, quer no concelho de Almada, quer no concelho do Seixal. No seguimento disso, também se entendeu que deveríamos criar outros programas que não tinham nada a ver com a Covid.
HN- O que é que será discutido?
NM- O que determinou sobretudo a escolha dos temas, e que teve a ver, também, com esta estratégia de “Almada Município sem SIDA”, foi termos tido a oportunidade de analisar os dados do Serviço de Infeciologia – portanto, os nossos próprios dados. Em termos da infeção VIH, o serviço, no final do ano de 2022, seguia cerca de 2140 doentes. Seguimos também cerca de 611 utentes sob profilaxia pré-exposição ao VIH, ou seja, utentes que têm um risco muito elevado de adquirir a infeção VIH. Entre outras medidas, utilizamos isto como estratégia terapêutica – estes utentes são medicados de modo a prevenirem a aquisição da infeção. Tratámos também muitos doentes com hepatites virais crónicas, seja ela hepatite C ou hepatite B crónica.
Relativamente à infeção VIH, ao analisarmos os nossos dados de janeiro de 2019 a março de 2022, constatámos que absorvemos no serviço 506 novos doentes, sendo que cerca de 41% eram verdadeiros novos, ou seja, não tinham conhecimento prévio da sua infeção VIH, nem estavam medicados. Todos os outros foram transferências de cuidados e de seguimento, quer de outros centros hospitalares portugueses, quer do estrangeiro. Ao caracterizarmos esta população, percebemos que 30% destes novos doentes tiveram uma oportunidade perdida, sendo que apenas 11% não tinham médico de Medicina Geral e Familiar, ou seja, não estavam inscritos nem tinham médico atribuído nos cuidados de saúde primários. Isto fez-nos pensar que, de facto, tínhamos também que nos aproximar da restante comunidade médica, fora do âmbito da Infeciologia. Estas pessoas já tinham uma condição clínica ou uma condição laboratorial que apontava para que pudessem ter uma infeção VIH, mas por algum motivo o diagnóstico não foi feito e não foi solicitada uma serologia VIH. Foi uma das razões que nos levou a desenvolver este programa.
Percebemos também que, destes novos doentes com infeção VIH, cerca de 51% são utentes migrantes, provenientes 32% da África subsaariana e à volta de 20% da América Latina, sobretudo do Brasil. Outra particularidade foi a de temos um diagnóstico tardio em mais de 50% dos casos – em 53% dos casos já diagnosticamos estes doentes com uma infeção VIH com uma imunossupressão avançada. Isto vai ao encontro dos dados nacionais da infeção VIH e traduz um pouco o que está espelhado no último relatório do Programa Nacional das Infeções Sexualmente Transmissíveis e da Infeção VIH/SIDA da DGS, onde a taxa de novos diagnósticos de VIH foi mais elevada na Área Metropolitana de Lisboa. Temos também uma incidência de novos casos superior à média europeia.
Uma das mesas do colóquio será dedicada à apresentação dos resultados do Programa Nacional para as Infeções Sexualmente Transmissíveis e Infeção VIH/SIDA, e também serão apresentados os dados mais locais e as medidas que foram desenvolvidas no âmbito da estratégia municipal “Almada Município sem SIDA”. Como lhe disse, o objetivo principal deste programa, em que uma das vertentes se insere no âmbito do Fast-Track Cities, é acabar com a epidemia da Sida nos municípios aderentes e enfrentarmos de forma mais eficiente as causas do risco, as vulnerabilidades, e da transmissão do VIH/Sida. No âmbito desta estratégia, foi estabelecida uma parceria entre a Câmara Municipal de Almada e estruturas não governamentais, como o GAT (Grupo de Ativistas em Tratamento), entre os ACES Almada-Seixal (os cuidados de saúde primários) e o hospital Garcia de Orta, nomeadamente no Serviço de Infeciologia. Isto fez com que estivessem reunidas as condições para ser criado na comunidade – mais concretamente no Laranjeiro – um Centro Integrado de Respostas Sociais e de Saúde, onde nós, Serviço de Infeciologia, implementámos algumas consultas descentralizadas – ou seja, deslocámos médicos do serviço para fazerem o atendimento e seguirem estes utentes, particularmente os utentes em risco acrescido de aquisição da infeção VIH. Criámos, então, uma consulta de PrEP, que é esta consulta Profilaxia Pré-Exposição ao VIH, que, ao fim de um ano de experiência, permitiu seguir cerca de 108 utentes sob profilaxia pré-exposição, maioritariamente homens, e também conseguimos implementar uma consulta descentralizada de hepatites víricas, já no ano de 2022.
Esta descentralização permite, em populações que também têm alguma dificuldade em reger-se por toda a estrutura e todos os horários hospitalares, que consigamos fornecer mais cuidados de saúde em proximidade. Não é só o Serviço de Infeciologia que tem colaborado neste Centro Integrado de Respostas Sociais e de Saúde. Por exemplo, o Serviço de Dermatologia do Garcia de Orta também implementou uma consulta descentralizada de infeções sexualmente transmissíveis, nomeadamente com lesões. Quem tem uma infeção aguda sugestiva de uma infeção sexualmente transmissível e reside no concelho de Almada pode recorrer em regime de consulta aberta a este apoio, o que é muito bom e promove a multidisciplinaridade entre as várias áreas.
Além disso, entre 2021 e 2022, houve alguns programas governamentais, por exemplo o Programa Bairros Saudáveis, onde tivemos algumas estruturas que nos lançaram o desafio de colaborar, sobretudo, na área da literacia para a saúde e na área dos rastreios das doenças transmissíveis e não transmissíveis. É o caso do projeto Saúde no Bairro, onde o Serviço de Infeciologia e outros serviços hospitalares puderam participar.
Também convidámos outras entidades que nós sabemos que têm projetos de prestação de cuidados comunitários. Por exemplo, vamos ter a Unidade de Cuidados na Comunidade do ACES Almada-Seixal, que vai apresentar o projeto Gira Lua, e convidámos outros parceiros – por exemplo, o Centro de Diagnóstico Pneumológico, vulgo CDP, de Almada-Seixal, onde integrámos alguns infeciologistas para implementarmos consultas descentralizadas no âmbito da tuberculose. Neste momento, todas as consultas médicas no CDP de Almada estão a ser asseguradas por infeciologistas, pneumologistas e pediatras do hospital. Este modelo permite manter uma estrutura que, desde a sua origem, esteve sempre dedicada à tuberculose. Funciona em regime praticamente de consulta aberta, no âmbito do tratamento e no diagnóstico da tuberculose, mas também no âmbito do rastreio. Este último é muito importante, e são áreas onde a estrutura hospitalar não está preparada para absorver tantos utentes. Infelizmente, quer no concelho de Almada, quer no concelho do Seixal, ainda temos incidência de tuberculose superior à média nacional, sendo Portugal um dos países da Europa Ocidental com taxa de incidência de tuberculose mais elevada. Também estamos a tentar estabelecer uma parceria com a equipa de tratamento de Almada-Seixal no âmbito dos comportamentos aditivos; portanto, os antigos GAT. Pretendemos assegurar que seja feito o rastreio e o tratamento dos utentes que possam ter hepatite C crónica ou outra hepatite viral crónica.
HN- Quais os temas que vão ser abordados na parte da tarde?
NM- Vamos ter várias mesas para abordar a multidisciplinaridade e articulação dos cuidados em populações migrantes, deslocadas ou refugiadas. Já mencionei que 51% dos novos doentes que temos com infeção VIH no serviço nestes últimos três anos são migrantes; mas, quando vemos os dados do serviço, percebemos que, de acordo com as áreas de atuação que temos, temos expressões variáveis de população migrante. Por exemplo, na globalidade dos doentes que seguimos com infeção VIH, em 2022, cerca de 16% são migrantes. Na área da infeciologia da profilaxia pré-exposição VIH, estes números aumentam para cerca de 40% de migrantes. Na área da infeciologia mais clássica, infeciologia geral, temos 24% de migrantes. Portanto, são percentagens que, efetivamente, têm uma expressão que requer que falemos sobre questões como o acesso aos cuidados de saúde das populações migrantes e, também, a retenção nos cuidados de saúde, que é porventura das situações mais difíceis com que temos que lidar – porque geralmente também são populações economicamente desfavorecidas e onde é preciso investir na literacia em saúde, na perceção da necessidade de cuidados de saúde.
Numa vertente mais clínica, falaremos do rastreio de doenças infeciosas nas populações migrantes, que vai depender do local de proveniência destas populações – e isto tem a ver com a epidemiologia e com a distribuição das várias doenças infeciosas pelos vários continentes. Também abordaremos patologia não infeciosa, doenças como a diabetes, hipertensão ou problemas como a saúde mental. E abordaremos, numa perspetiva multidisciplinar, o papel da enfermagem, quer no acolhimento quer na literacia para a saúde, quer depois outros eixos de intervenção, como a nutrição clínica, a saúde mental, a inserção social. Apresentaremos também alguns dados de projetos específicos que foram realizados com migrantes, nomeadamente pelo GAT, e, ainda, contaremos com a presença da Professora Sónia Dias, que é professora catedrática pela Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do Centro de Investigação em Saúde Pública, e que sempre trabalhou nestas linhas de desafios da saúde em viajantes e em populações migrantes.
Como lhe disse, motivou-nos o facto de termos conseguido fazer esta análise dos dados do serviço e da implementação de todas estas novas áreas de atuação do serviço em proximidade com a comunidade.
HN- Por último, destacaria algum outro ponto?
NM- Destacaria que esta iniciativa também surge porque nós, nos últimos anos, temos trabalhado muito com algumas organizações não governamentais, como é o caso do GAT. E o GAT, pelos programas que tem, como o programa Move-se, que faz o rastreio de populações com maior vulnerabilidade nos concelhos de Almada e Seixal, é um dos nossos grandes referenciadores às consultas. Muito mais que os cuidados de saúde primários.
Isto é outro aspeto que faz com que queiramos sensibilizar os nossos colegas médicos da Medicina Geral e Familiar, bem como os colegas de outras especialidades hospitalares, para estarem atentos e podermos diagnosticar mais rapidamente os doentes com infeção VIH. Em termos de epidemiologia, continuamos com taxas de incidência relevantes, e estamos a diagnosticar tarde e a perder oportunidades. A grande mensagem que queremos passar é a de que temos todos que tentar fazer um trabalho melhor e um diagnóstico mais rápido nestas populações, designadamente nas apresentam risco acrescido de aquisição de infeção VIH/Sida.
HN/RA
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