Entretida com os amigos, Lyra, a filha de Chris van Tulleken, passou‑lhe um gelado para as mãos e foi brincar. O pai, cientista, doutorado, professor no University College de Londres, olhou intrigado para a reluzente bola cremosa com sabor a pistácio: apesar do tempo quente, não derretia. Porquê? Um ex-executivo de um gigante da indústria alimentar explicou-lhe: aquele gelado estava praticamente embalsamado. Tal como grande parte do que comemos.
Numa viagem pela indústria e ciência dos alimentos, o autor de Pessoas Ultra Processadas - Porque comemos comida de plástico e não conseguimos parar de a comer? (edição Lua de Papel) revela ao leitor como começámos, há 150 anos, a transformar a comida numa coisa que já não é comida. E com base na literatura científica demonstra como esse padrão alimentar se tornou na principal causa de obesidade, mortes prematuras e destruição ambiental.
“A culpa não é dos consumidores. A epidemia de obesidade é fruto da inércia governamental e do trabalho implacável de algumas corporações internacionais que começaram a substituir alimentos naturais (como o açúcar, o leite ou a manteiga) por alternativas sintéticas (gomas, emulsionantes). Os novos aditivos são propositadamente concebidos para nos viciar. Chegam‑nos servidos por um marketing sedutor e até com a validação de cientistas de prestígio, cujas pesquisas são financiadas pela indústria. E estão a transformar-nos em Pessoas Ultra Processadas”, lemos na apresentação à obra.
Chris van Tulleken denuncia e apresenta soluções, mas recusa‑se a dar conselhos ou sugerir dietas. Nem precisa. Quando for ao supermercado, sabendo o que aquelas comidas lhe estão a fazer, a si e aos seus filhos, a sua vida vai mesmo mudar (para muito melhor).
Os alimentos ultraprocessados são pré-mastigados
Talvez Anthony Fardet não tenha sido a primeira pessoa a ter em conta aquilo a que chama “matriz” alimentar, a estrutura física da comida, mas é capaz de ter pensado nela mais aprofundadamente do que qualquer outra pessoa. Com um ar sério e cabelo farto, a ficar grisalho, suponho que seja aproximadamente da minha idade. É cientista da Unidade de Nutrição Humana, da Universidade Clermont Auvergne, em França. Tudo o que diz parece profundo e importante, em parte porque usa muitas palavras compridas, e em parte porque o seu inglês perfeito é acompanhado por um sotaque de estrela do cinema francês: “Comemos alimentos, não nutrientes.
Por isso, de um ponto de vista filosófico, o melhor é combinar o holismo com o reducionismo. Eu sou empirista e sigo o método indutivo.”
Eu tinha a sensação de que também era um empirista a seguir o método indutivo, mas não tinha a certeza, pelo que decidi verificar isso depois. Tinha-lhe telefonado para lhe perguntar como o ultraprocessamento afeta a estrutura física da comida e como isso, por sua vez, afeta os nossos corpos.
O princípio da matriz é bastante simples: o de que a comida não é meramente a soma das suas partes constituintes. Anthony explicou-me que o propósito do sistema digestivo é destruir a matriz alimentar. Usou maçãs para dar um exemplo. A fibra que faz com que uma maçã seja crocante e sólida constitui apenas 2,5 por cento do peso da maçã. Os restantes 97,5 por cento são sumo. A forma como a fibra está disposta em redor das células e do fluido, essa é a matriz.
Tendo isto presente, em 1977 um pequeno grupo de cientistas deu a dez pessoas maçãs sob três formas diferentes: sumo de maçã sem polpa (ou seja, sem fibra), maçã triturada, incluindo a casca, e pedaços inteiros de maçã. Fizeram os participantes comer à mesma velocidade e, depois, avaliaram os critérios saciedade, açúcar no sangue e insulina, em resposta às três preparações diferentes de maçã.
O que constataram foi que tanto o sumo como o puré provocavam picos mais elevados de glicose e insulina do que os pedaços de maçã, antes de os níveis tanto de uma coisa como de outra caírem para um valor mais baixo do que antes de terem ingerido o sumo ou o puré. Esta queda do açúcar no sangue fez com que os participantes continuassem a sentir fome. A maçã cortada em pedaços, entretanto, fez com que a glicose subisse lentamente, antes de regressar ao nível inicial, sem uma única queda, e com uma sensação de saciedade que se prolongou por horas. Parece que os nossos corpos evoluíram de forma a gerir com precisão o consumo do açúcar presente numa maçã, mas que o sumo de fruta representa uma invenção relativamente nova.
O sumo de maçã, constituído tipicamente por cerca de 15 por cento de açúcar, comporta-se basicamente como qualquer refrigerante. Mas o mesmo acontece com o puré de maçã, apesar de conter todos os constituintes da maçã, incluindo a fibra, e de ter sido feito momentos antes de ser ingerido. A fibra é importante, mas a matriz, a estrutura da maçã, é fundamental. Voltemos aos Choco Krispies. São publicitados como sendo crocantes e alguns até se mantêm crocantes – pelo menos, durante algum tempo. Mas cada colherada é predominantemente uma descarga de glóbulos molhados e feculentos. Os Choco Krispies e o leite formam um líquido com textura. É mole. Esta suavidade é uma das características que Kevin Hall identificou como sendo uma qualidade quase universal dos ultraprocessados. A suavidade deve-se ao método de construção. Componentes vegetais industrialmente modificados e carnes mecanicamente reconstituídas são pulverizados, triturados, moídos e extrudidos, até todas as texturas fibrosas de tendões, ligamentos, celulose e lenhose ficarem destruídas. O que resta pode então ser reconfigurado em formas de dinossauros, letras do alfabeto ou as paraboloides hiperbólicas das Pringles.
O marketing prepara-nos para registarmos a sensação estaladiça inicial da massa, a pequena explosão de uma tosta de arroz tufado, o estalejar de um frito de pó de batata reconstituído, mas tudo isso cede à mínima dentada. Estes alimentos têm uma textura astuta – um recheio gelatinoso com um bolo seco em redor, ou pedaços de vegetais a sério numa sopa – para disfarçar o facto de, numa questão de segundos, estarmos a comer uma papa.
Um hambúrguer do McDonald’s (ou do Burger King, ou de qualquer outro fornecedor de alimentos ultraprocessados) é outro exemplo perfeito da ilusão. A primeira dentada recompensa-nos com uma sequência de experiências texturais: o pão doce tem uma côdea seca a cobrir uma matriz cremosa e esponjosa, o hambúrguer é elástico e parece tão salgado como água do mar, os pepinos e as cebolas de conserva dão o crocante, a mostarda estimula o nervo trigémeo e a acidez do ketchup ativa toda a experiência. “Esponjoso”, “elástico”, “crocante” – mas, na verdade, é tudo tão suave como penugem. Em consequência, eu sou capaz de devorar um hambúrguer em bem menos de um minuto. E depois tenho de comer outro porque continuo com fome.
Porquê? Pela mesma razão pela qual Lyra continuava com fome depois de uma tigela de Choco Krispies: os sinais que nos dizem para “parar de comer” não evoluíram para lidar com comida tão mole e facilmente digerível, tão pouco resistente que, basicamente, é pré-mastigada. Em vez de serem digeridos lentamente ao longo dos intestinos, de uma forma que estimule a segregação das hormonas de saciedade, poderá dar-se o caso de os alimentos ultraprocessados serem absorvidos com uma velocidade tal que não alcançam as partes dos intestinos que enviam o sinal de “parar de comer” ao cérebro.
Enquanto fazia a minha dieta de alimentos ultraprocessados, foi no pão que comecei a reparar mais nessa falta de resistência. Tal como a Campanha pelo Pão a Sério (que é gerida pela Sustain, uma aliança sem fins lucrativos que promove uma melhor alimentação e melhores práticas agrícolas) salienta há muito tempo, no Reino Unido o pão a sério é um produto difícil de encontrar, para além de ser bastante dispendioso. As padarias artesanais constituem apenas 5 por cento do mercado do pão e, em muitos locais, não há qualquer pão disponível que não seja ultraprocessado. O pão de fermentação natural deveria conter apenas água, sal, levedura e farinha, mas até produtos que se vendem nos supermercados como sendo de fermentação natural na verdade não o são, chegando a ter quinze ingredientes, incluindo óleo de palma e fermento químico.
Se conseguir encontrá-lo e estiver ao seu alcance comprá-lo, valerá a pena comparar pão de centeio ou verdadeiro pão de fermentação natural com um pão de supermercado. Durante anos, eu comprei o pão da Hovis, Multigrain Seed Sensations [sensações de vários cereais e sementes]. Eis os ingredientes: “Farinha de trigo, água, mistura de sementes (13%), proteína de trigo, levedura, sal, farinha de soja, farinha de malte de cevada, açúcar granulado, farinha de cevada, conservante E282 propionato de cálcio, emulsionante E472e (ésteres monoacetiltartáricos e diacetiltartáricos de mono e diglicéridos de ácidos gordos), açúcar caramelizado, fibra de cevada, agente de tratamento de farinhas: ácido ascórbico.”
Muitos pães como este usam farinha com baixo teor proteico e depois acrescentam proteína de trigo isolada, pois isso oferece ao fabricante um controlo enorme sobre a consistência do produto. Muitos destes ingredientes poupam custos – reduzindo o tempo de produção, o número de trabalhadores, etc. – e muita dessa poupança é passada ao consumidor. Um pão de fermentação genuinamente natural custa entre 3,5 e 6 euros. No momento em que escrevo este livro, o pão mais barato no Sainsbury’s custa 40 cêntimos de euro e o da Hovis custa 1,12 euros.
Contudo, os vários processos e agentes de tratamento fazem com que eu consiga comer uma fatia da Hovis ainda mais depressa, numa comparação grama a grama, do que devoraria aquele hambúrguer ultraprocessado. O pão desintegra-se num bolo lodoso que facilmente nos desce pela garganta. Uma fatia de pão de fermentação natural Knuckle Potato (7 euros) demora bem mais de um minuto a ser comida, e deixa-me o maxilar cansado. Já o pão ultraprocessado nunca causa fadiga aos maxilares e o facto de requerer tão pouca mastigação poderá justificar muitos dos problemas dentários da nossa época. No Reino Unido e nos EUA, cerca de um terço dos jovens de 12 anos tem uma sobremordida – um maxilar demasiado pequeno para o rosto – e é por isso que, atualmente, tantas crianças precisam de ortodontia. Removeram-me o siso inferior direito pela mesma razão. Analisando os artigos sobre alimentos ultraprocessados, apercebi-me de que este é um problema comum da vida moderna. Dados sobre crânios demonstram que agricultores pré-industriais, que comiam cada vez mais hidratos de carbono, tinham muitas cáries e abcessos dentários, mas menos de 5 por cento tinha dentes do siso afetados, em comparação com 70 por cento das populações modernas.
A razão para isto é que os nossos rostos modernos, sobretudo os maxilares, são muito mais pequenos do que os dos nossos antepassados. Esta alteração ocorreu subitamente: os aborígenes australianos, muitos dos quais fizeram uma transição abrupta para uma dieta moderna na década de 1950, têm maxilares muito mais pequenos do que os seus predecessores, meros 100 anos antes. Os maxilares dos finlandeses modernos são 6 por cento mais pequenos do que os dos seus antepassados antigos (e, em termos genéticos, extremamente similares).
A razão para esta restrição facial é a mesma que faz com que os tenistas tenham muito maior densidade óssea no braço com que jogam. Ou pela qual os arqueiros que morreram a bordo do Mary Rose puderam ser identificados a partir do tamanho e da densidade dos ossos dos seus braços. Os ossos não são pedras: são tecidos vivos constantemente a ser remodelados, desfeitos e reconstruídos consoante as tensões a que são submetidos.
Os ossos da face e dos maxilares não constituem exceção: se mastigarmos, crescem. De facto, um estudo colocou um grupo de crianças gregas a mascar uma pastilha resinosa dura durante duas horas por dia, só para ver o efeito. No final do estudo, constatou-se que as crianças que tinham mascado a pastilha tinham uma mordida mais forte e que, para além disso, tinham também maxilares e malares significativamente mais longos.
Li tudo isto e fui observar o pequeno maxilar e os dentinhos de Lyra. Os seus incisivos superiores avançavam bem mais do que os inferiores. Seria aquilo normal? Saberia sequer um dentista da Grã-Bretanha no século xxi que aparência a dentição humana deveria ter? Seria já tarde demais? Será que ela alguma vez mastigara alguma coisa a sério? Resolvi mostrar ao dentista da minha filha um artigo científico de um professor de Harvard, Daniel Lieberman – “Os efeitos do processamento alimentar no esforço mastigatório e no crescimento craniofacial num rosto retrógnato” –, e comprei-lhe umas cenouras para que fosse petiscando.
Muita investigação científica sugere que esta suavidade também poderá ser um problema no que concerne à ingestão calórica. No ensaio clínico de Kevin Hall da comida não processada versus alimentos ultraprocessados, os participantes comunicaram que os alimentos ultraprocessados não tinham um “interesse sensorial” invulgarmente elevado: as duas dietas eram igualmente deliciosas e satisfatórias. Não obstante, em média, os participantes comeram mais 500 calorias por dia durante o período do estudo em que lhes eram dados alimentos ultraprocessados.
A principal diferença nos efeitos das duas dietas que Hall observou foi que os participantes comiam os alimentos ultraprocessados muito mais depressa. E, para além de mole, a maior parte dos ultraprocessados é seca, o que significa que é caloricamente densa. A água dilui tudo, incluindo a energia. A carne, a fruta e os vegetais tendem a ter um teor de água muito alto.
Esta secura é crucial para os alimentos ultraprocessados. É uma das formas fundamentais de impedir que micróbios se desenvolvam, o que contribui para o prazo de validade absurdamente longo que ajuda a que os ultraprocessados sejam tão lucrativos. Estas coisas não se decompõem. Não faltam artigos de jornal acerca de pessoas que guardam hambúrgueres do McDonald’s que duram anos sem apodrecer. O McDonald’s do Canadá infringiu a primeira regra dos escândalos quando decidiu contar a sua versão de uma dessas histórias: “A realidade é que os hambúrgueres, as batatas fritas e o frango do McDonald’s são como qualquer outro alimento, e apodrecem se forem guardados sob determinadas condições.”
Esta insistência desesperada em que a comida apodrecerá foi um caso raro de marketing empresarial a fazer o meu trabalho por mim. Mas a declaração está correta: a ausência de apodrecimento tem muito mais que ver com a secura dos alimentos ultraprocessados do que com a carga física dos conservantes.
Na experiência de Hall, a suavidade, associada à densidade calórica, levou a que os participantes consumissem, em média, mais dezassete calorias por minuto quando comiam alimentos ultraprocessados do que ao fazerem a dieta não processada. Estes resultados são consistentes com a investigação levada a cabo por Barbara Rolls, que demonstrou que a densidade energética da comida tem um papel crucial na moderação da ingestão diária de energia.
Em dezenas de experiências cuidadosamente controladas, Rolls e os colegas demonstraram repetidamente que alimentos e dietas com densidades energéticas mais elevadas promovem maior ingestão de energia e aumento do peso. Este efeito parece ser independente da palatabilidade ou do teor nutricional, e verifica-se quer em homens, quer em mulheres, em pessoas com excesso de peso e em pessoas com um peso saudável, em crianças e em adultos, e tanto a curto como a longo prazo.
É um dos factos sobre nutrição mais robustamente demonstrados. E talvez o mais importante seja que não parece fazer diferença se a energia do alimento provém de gordura ou de hidratos de carbono. O fator mais importante para determinar a ingestão calórica é a densidade energética.
Também há um vasto conjunto de investigação a demonstrar que comer mais depressa aumenta o risco de comer mais, ganhar peso e ter doenças metabólicas. A rapidez com que comemos deve-se em parte àquilo que comemos: alimentos que demoram mais a processar na boca fazem-nos sentir mais cheios. Mas também é, em parte, determinada pela genética. O estudo GUSTO (acrónimo de Growing Up in Singapore Towards healthier Outcomes, ou crescer em Singapura rumo a resultados mais saudáveis) demonstrou que as crianças que comiam mais depressa e durante mais tempo eram mais propensas a ter obesidade. Os investigadores descreveram-no como um “estilo alimentar obesogénico”. Clare Llewellyn, a cientista que estuda gémeos na UCL, demonstrou que este estilo alimentar é genético e está associado a um IMC mais elevado. É provável que os genes para “comer depressa” tornem algumas pessoas particularmente vulneráveis à suavidade dos alimentos ultraprocessados.
Outro estudo comparou voluntários que beberam dois batidos de chocolate, um dos quais era espesso e viscoso, enquanto o outro era mais líquido. Ambos eram nutricionalmente idênticos, com valores iguais de densidade energética e palatabilidade. Os voluntários podiam consumir tanto quanto quisessem, e o batido mais líquido foi associado a uma ingestão 47 por cento superior à do espesso. No entanto, se fossem obrigados a beber ao mesmo ritmo, acabavam por tomar a mesma quantidade de cada batido, no total.
O número de mastigações por porção levada à boca tem um efeito direto no abrandamento e na redução da ingestão alimentar. Mastigar bem parece ser uma boa forma de reduzir a ingestão calórica, mas, claro, isto confunde causa e efeito. Recordemos que o nosso ritmo de consumo é determinado pela comida e pela genética, não se trata de uma decisão consciente.
Qualquer pessoa que tenha tentado acompanhar o ritmo de um companheiro de refeição mais lento ou mais rápido saberá quão difícil isso é. Portanto, há dados que mostram que a taxa de consumo de alimentos ultraprocessados está relacionada com os seus efeitos na saúde, mas o que me preocupa é que haja quem veja isto como uma oportunidade para criar um tipo diferente de alimento ultraprocessado, com texturas que abrandassem o ritmo do consumo.
Uma revisão de 2020 analisou os dados de cinco estudos publicados que mediram o ritmo de ingestão de 327 alimentos do Reino Unido, de Singapura, da Suíça e dos Países Baixos. Os investigadores revelaram que passar de um alimento não processado para um alimento processado e para um alimento ultraprocessado fazia com que o número de calorias consumidas por minuto começasse em trinta e seis, avançando para cinquenta e quatro e, por fim, para sessenta e nove. Os investigadores concluíram: O processamento alimentar industrial oferece uma oportunidade importante de aplicar mudanças por atacado nas formas e texturas encontradas no ambiente alimentar e, em sintonia com uma reformulação para reduzir a densidade energética, pode ser usado para produzir melhorias generalizadas nos ritmos de ingestão energética, na palatabilidade e nas densidades nutricionais do abastecimento alimentar [...] o desafio seguinte para os processadores alimentares é desenvolver produtos que equilibrem o interesse dos consumidores com satisfação ideal por quilocaloria consumida, ao mesmo tempo que reduzem o potencial para promover um consumo energético excessivo.
Isto não me agradou. Pareceu-me um pouco descabido. Tendo verificado as muitas maneiras como as tecnologias do processamento alimentar tornam os alimentos mais energicamente densos e rápidos de consumir, e estando estabelecido que estes dois aspetos de qualquer produto alimentar parecem ser elementos centrais da disseminação da obesidade, em vez de se propor uma mudança rumo a alimentos integrais, é proposto ainda mais processamento. Este “hiperprocessamento” parece ser uma solução pouco provável para os problemas do ultraprocessamento.
Também é estranho sugerir que este seja um “desafio”, dado que o setor alimentar está ciente da ligação entre a rapidez da ingestão e o aumento do consumo calórico desde a publicação de estudos realizados na década de 1990.
De igual forma, pareceu-me preocupante que, embora o artigo declarasse muito claramente não haver “quaisquer conflitos de interesse”, um dos autores, Ciarán Forde, fizesse parte do conselho científico do Kerry Group plc (um fabricante de alimentos ultraprocessados avaliado em vários milhares de milhões de dólares) e que todos os autores tivessem recebido recompensas financeiras pelas suas participações em reuniões patrocinadas por empresas de produtos alimentares e nutricionais.
Ser consultor científico de uma empresa de alimentos ultraprocessados e escrever sobre processamento alimentar deve constituir um conflito (a menos que a pessoa em questão forneça os serviços de consultoria de graça). Um artigo do ano seguinte, que identifica Ciarán G. Forde como um dos autores, inclui igualmente uma frase que diz que “os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesses”, mas, na altura, Forde não só era consultor do Kerry como também (segundo o mesmo artigo!) fazia parte de um consórcio académico que recebia financiamento da Abott Nutrition, da Nestec (uma subsidiária da Nestlé) e da Danone para investigação.
Mas, sobretudo, parece-me pouco provável que tornar os alimentos ultraprocessados mais difíceis de comer possa resultar. Os fabricantes de cigarros esforçaram-se muito durante anos para processar os seus cigarros, com o intuito de que fossem menos perigosos. Acrescentaram pequenos orifício de ventilação, para os fumadores obterem menos fumo, mas isso fez apenas com que os fumadores passassem a sugar com mais força. Consumimos produtos que causam dependência pelo prazer sensorial que nos oferecem e sabe-se que aumentar a velocidade com que qualquer droga entra no nosso corpo é um aspeto crucial para que essa substância seja causadora de dependência.26 Interferindo com a velocidade de consumo, aposto que se perderia um pouco desse prazer, pelo que o produto não venderia tanto. Os alimentos ultraprocessados não são moles por acidente, mas sim porque essa é a forma de os vender em maior quantidade.
Como veremos, rotular os alimentos ultraprocessados não será uma questão trivial, devido à oposição da indústria alimentar. Contudo, rótulos que avisem quanto à falta de resistência e à densidade energética teriam muita informação científica a sustentá-los.
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