HealthNews (HN) – Há décadas que discutimos os mesmos problemas e estes mantêm-se. De facto, continuamos com os mesmos e muitos novos problemas, muitos a agravarem-se. Por exemplo, em 2010, tínhamos cerca de um milhão de pessoas sem médico de família e hoje, de acordo com números oficiais, já são quase 1,6 milhões.
Victor Ramos (VR) – E ainda vai aumentar até 2030.
HN- Já este ano, se se verificar a saída dos médicos que estão em condições, por idade, de avançar para a reforma, teremos mais utentes sem médico de família atribuído. A que se deve este problema?
VR – Trata-se de um fenómeno que é conhecido, está descrito em livros e trabalhos e tem uma raiz antiga e prolongada. Não sei se de uma forma pensada e estruturada, o que aconteceu foi que no período imediatamente após o 25 de Abril houve um aumento inesperado do número de médicos em Portugal. As razões para este fenómeno, são várias. Desde logo, porque terminando a Guerra Colonial todos os médicos militares foram desmobilizados. E eram muitos. Houve formações muito numerosas, também por interesse político, para garantir médicos para o esforço de guerra. Isso acabou, então houve uma grande desmobilização dos médicos das Forças Armadas e, depois, com a independência, muitos especialistas – porque havia faculdades de medicina em Luanda e em Lourenço Marques (agora Maputo) – regressaram.
Então, em Portugal – em Lisboa, Porto e Coimbra, não nas outras cidades –, houve um momento em que os dirigentes da Ordem dos Médicos ficaram assustados com a possibilidade de uma pletora médica. Há até artigos com esse título: “pletora médica”.
Preocupados, os dirigentes da Ordem dos Médicos conseguiram convencer os políticos de que era preciso estancar a sangria e implementar numerus clausus baixíssimos. Há um livro sobre planeamento de recursos humanos (médicos e enfermeiros) até 2014, com os gráficos da evolução do número de médicos nessa época, que mostram que se estava a avançar para um “buracão”. Estamos a falar de um período de 15 anos. Quinze anos de “buracão”. É claro que isto não se sentia à época. Sente-se agora, 30 anos depois.
No fundo, já se sabia disto há 30 anos. Há um documento da associação dos médicos de família com o título “Medicina Geral e Familiar: colapso ou ressurgimento”. E este milhão de pessoas sem médico de família, só não são dois ou três milhões porque houve uma insistência grande por parte da associação dos médicos de família para aumentar a formação de novos especialistas – que não foi suficiente, como vamos ver mais à frente. Mas se isso não acontecesse, a situação era hoje muito, muito pior. Não estamos a falar só de médicos de família. Estamos a falar, também, de todas as outras especialidades. Isto é um “buracão” (graficamente com a forma de um triângulo a que eu chamo “o Triângulo das Bermudas”. E é um triângulo que se vai movimentando com o tempo, sendo que o pico mais baixo vai-se deslocar até 2030.
Este “buracão” ainda foi agravado por dois fenómenos. Entre 2010 e 2014, houve um processo da Função Pública que conduziu a uma corrida às reformas antecipadas. As pessoas foram incentivadas. Apregoava-se que se não antecipassem a reforma naquela altura, iriam ser penalizadas mais tarde. Muitos médicos de família seguiram esse caminho. E também muitos médicos hospitalares, muito qualificados, anteciparam a sua aposentação. Foram estes médicos que permitiram ao setor privado montar serviços bastante diferenciados mais depressa (caso contrário não o conseguiriam). Foi aproveitar a oportunidade…
Depois, há outros dois fenómenos. A partir de 2000 começa o processo de emigração de médicos. Eu mesmo fiz cartas para os internos em inglês. Lembro-me de ter feito cartas para uma colega jovem que foi para o Canadá, outro também para a Irlanda, para o Reino Unido e para os Estados Unidos… E começou a haver uma maior atratividade pelo setor privado.
Temos ainda que ter em conta que o universo médico feminizou. Agora temos médicas; os rapazes são exceções. E as médicas, na nossa sociedade, ainda suportam a pesada carga da maternidade. As contas do planeamento, que é muito frágil, não são sensíveis a estas nuances.
Não há planeamento estratégico. Contam com um médico, mas, na realidade, estamos a falar de uma geração muito jovem, em idade fértil, maioritariamente senhoras, pelo que as contas deveriam ser feitas de outra forma. Por exemplo, no Reino Unido, apesar dos problemas que também por lá grassam… Eles não contam “uma senhora, uma médica”; é “duas senhoras, uma médica”, por causa deste fenómeno. Em qualquer unidade, mesmo USF, há sempre médicas que estão fora.
HN – Porque é que não se implementou nada para contrariar isso ou para, pelo menos, melhorar?
VR – Não sei. Mas o problema é o modelo de governação que temos, muito descontínuo e episódico, mesmo dentro do mesmo ciclo político. Eu acompanhei, não muito de perto (estava a trabalhar em Évora e só mais tarde vim para Lisboa), o período de Leonor Beleza, Arlindo de Carvalho e Paulo Bento. Cada um deles tinha uma agenda diferente. Estamos a falar de agendas que têm impacto 30 ou 40 e tal anos depois.
HN – Tem-se vindo a defender, desde há muito, a necessidade de orçamentos plurianuais para a saúde, com planeamento estratégico, mas a verdade é que a “coisa” nunca vingou…
VR – Não é só para a saúde que são necessários planos plurianuais. É para todo o dispositivo de governação pública.
HN- Ficaram por gastar do PRR e do Portugal 2020 2,5 mil milhões de euros. E uma das áreas é a Saúde.
VR – Tem a ver com a descontinuidade de que falei. Muda muito. Acompanhei o mandato do Professor Correia de Campos por causa da reforma dos cuidados de saúde primários. Também acompanhei o mandato da Dra. Maria de Belém, que foi sucedida pela Professora Manuela Arcanjo. Parece que não tinha acontecido nada.
Depois vivi a transição da Professora Manuela Arcanjo para o Professor Correia de Campos, que também começou do zero. Do Professor Correia de Campos para a Dra. Ana Jorge houve mais continuidade. Mas também houve uma quebra, e assim sucessivamente. Tanto faz, não é problema do ciclo político “a” ou “b”…
Não faltaram projetos. Tivemos os projetos Alfa, que eram formados por equipas com autonomia (numa lógica de “vamos ver como é que isto funciona”), assente na premissa de que os profissionais se poderiam organizar entre si. Isto porque eles conheciam as coisas, a forma de trabalhar melhor… Era este o princípio. Depois, o que aconteceu foi que os projetos Alfa, porque trabalhavam melhor, eram queridos da população. E a certa altura o pessoal dizia: “espera aí, estamos a trabalhar contra nós”. Isto motivou a questão do pagamento associado à carga de trabalho e ao desempenho, que se veio a concretizar com o Regime Remuneratório Experimental. Sobre este, dizer desde logo que o nome é horrível. Achavam que as pessoas corriam pela remuneração. O que não era verdade. Nessa época fizeram-se dois estudos – que estão publicados – nos quais, numa lista de fatores que levaram os médicos a aderir ao novo regime, a remuneração vinha em quarto lugar. Mas já estava no nome. Depois, não se pôde aplicar à equipa.
Foi uma época de experimentação. Por exemplo, houve uma experiência interessante em Fernão Ferro Mais. Era um projeto Alfa que não quis aceitar o Regime Remuneratório Experimental porque só os médicos é que recebiam. Eles tinham um ambiente de equipa tão forte, tão bem entrosado, que preferiram continuar como estavam. Quando mais tarde surgiram as unidades de saúde familiar com pagamento para a equipa, então aderiram. Foram verdadeiramente pioneiros. Foi um acontecimento! Até o Primeiro-ministro, na época o António Guterres, foi lá visitá-lo.
HN – Em 2005 entrou Correia de Campos e surgem em 2006 as primeiras quatro USF. Hoje, quando olhamos para o terreno e mesmo quando vemos os concursos para preenchimento de vagas, observamos que a remuneração é de facto um fator primordial para a adesão. E hoje já se pensa até em fazer um percurso rápido, a la carte, havendo a perspetiva de ter todas as unidades em modelo B até ao final do ano. Não se estará a avançar depressa demais?
VR – Mas a lógica não era essa. Essa foi uma lógica posterior. Isto é, ser modelo A ou modelo B não era, inicialmente, uma questão de maturidade. E eu sei isso, porque fui o relator de um extenso parecer, em 2005, sobre o assunto. A questão é que se supunha que haveria profissionais que não quereriam aderir, porque o modelo B estava de certa forma associado ao risco. Isto é, baixava o vencimento de base (para 35 horas com exclusividade) porque depois tinha outros componentes. Quem não quisesse correr riscos permanecia numa lógica de projeto Alfa. Há pessoas que gostam do risco, que são propensas ao risco, e outras que são avessas. Portanto, assumimos que os propensos ao risco avançariam e os avessos ao risco ficariam à espera para ver. O pessoal que estudou isso começou a fazer contas, e bem, de como reduzir o risco. Era algo completamente novo. O arrancar do modelo B teve como base as equipas em RRE. Eram 19 grupos RRE, apesar de ter havido mais candidaturas, que ficaram na gaveta. Por isso é que houve um surto de USF B em 2006/2007, que eram as propostas de RRE que as ARS tinham enfiado nas gavetas. Estavam preparadas umas 100.
Portanto, o problema que então se colocava era de aversão ao risco ou propensão ao risco. Depois começaram a inventar que era um estágio. “A malta fica a estagiar”. Em 2005/2006 fizeram um modelo de remuneração compensando umas coisas com outras. O risco, na realidade, era relativamente baixo. Se não se atingia por um lado, atingia-se por outro.
Esse modelo nunca foi mexido. Porque o lógico era aplicar e ir-se ajustando e houve grupos e mais grupos de trabalho para rever e aperfeiçoar o modelo. Porque, em teoria, quando não se cumpre, ganha-se menos. O castigo é esse, não é andar entre A e B.
HN- Mas isso nunca aconteceu.
VR – Porque o algoritmo retributivo foi de alguma forma “ajeitado”, para reduzir a aversão ao risco. Este acabaria por se tornar residual. Curiosamente, a Troika até recomendou que se fizessem unidades de saúde familiar com o modelo retributivo ligado ao desempenho. Mas as nossas finanças, “mais papistas que o papa”, imediatistas, roeram a corda. Mais uma vez, faltou planeamento estratégico a médio e longo prazo.
Uma questão básica de recursos humanos, é a de antecipar fenómenos. Esta história do “Triângulo das Bermudas” está lá. Isto tem que estar presente para quem planeia. Quer dizer, bem basta as coisas que depois acontecem em cima disto, como a emigração, como as saídas para o privado, como a atratividade dos privados. O triângulo é determinístico. Só pode agravar, como agravou. E mesmo que não fosse agravado, já era grave. As equipas estão sempre a mudar. Nós não conseguimos dizer que ”foi aquele tipo que não teve visão”. Os conteúdos dos computadores são apagados, os dossiers desaparecem… “Isto foi ideia minha, o outro não vai usar; isto é do outro, lixo!”.
Gostei de ler “A Gaveta das Reformas” do Professor Correia de Campos. Pude viver a maior parte daquelas coisas. No fundo, ele até é muito positivo. Farta-se de propor. Metade do livro são coisas para o futuro, são propostas. Mas ele aborda muito bem estas descontinuidades.
HN – Nos últimos dois anos, assistimos a grandes revoluções no SNS. Um novo estatuto, a criação de uma nova figura que até aqui nunca existira, a do diretor-executivo do SNS. E ao mesmo tempo ficámos de alguma forma de sobreaviso sobre estas mudanças quando depois, lidas as competências e as atribuições desta nova figura, e deste novo ciclo, quem manda no dinheiro e nos recursos humanos são os mesmos que mandaram até agora. Como é que uma coisa se conjuga com a outra?
VR – Tem de perguntar aos nossos governantes.
Há duas ideias aqui. O Professor Correia de Campos vê isto claramente, e eu aprendo com ele. Nós temos a ideia de mudar a realidade com leis. Lei de Bases da Saúde, – 2016 a 2019, e depois foi o estatuto do SNS – mais uma lei. O Professor Correia de Campos escreve que as leis não mudam realidade nenhuma. As leis consagram coisas que se consigam mudar. Pensar que a lei muda a realidade é pura ilusão. Eu subscrevo.
Agora, esta questão da direção executiva não é nenhuma novidade. É tão antiga como o Serviço Nacional de Saúde. Estava prevista na “lei Arnaut”.
HN- Mas qual era exatamente o cargo?
VR – Era a administração central do Serviço Nacional de Saúde. É o correspondente.
HN – Mas nunca chegou a existir.
VR – Não porque entretanto havia 12 direções gerais, considerando que as ARS eram direções gerais também. O Professor Sakellarides era o presidente de uma ARS. Ele passou para diretor-geral da Saúde na ilusão de que dirigiria um órgão que coordena. Claro que não. Era tão diretor-geral como qualquer um dos outros. Portanto, ”take 1”, António Arnaut, 1979; “take 2”, tentar através de uma forma menos estrutural; “take 3”, o Professor Correia de Campos pensou que precisava de ter alguém que conseguisse coordenar isso. Estava na DGS o Professor Pereira Miguel, que era diretor-geral da Saúde. Sabendo o que tinha acontecido com o Professor Sakellarides, o Professor Correia de Campos pensou que tinha que pôr aquele senhor num ponto acima e recuperou uma ideia que não existia desde o 25 de Abril, a do subsecretário de Estado da Saúde. Já era acima de qualquer diretor-geral. E criou a figura do alto comissário para a Saúde. Mas este não era uma figura diferente da do diretor-geral. O diretor-geral era simultaneamente alto comissário para a saúde. O que é que aconteceu depois? Criaram duas coisas, o Alto Comissariado da Saúde e a Direção-Geral da Saúde.
No tempo do Professor Correia de Campos foi criada a Administração Central do Serviço Nacional de Saúde. Era a concretização da ideia de 79, da lógica do diretor-geral da Saúde, da lógica do alto comissário da saúde, agora numa lógica estrutural, orgânica. Das voltas que aquilo deu sabe o que é que saiu? Administração Central do Sistema de Saúde. Agora, pode-se pôr uma administração num sistema que é plurissetorial, com poderes distintos? Repare como houve um deslizar…
Não é novidade, porque é uma necessidade que foi identificada em 1979. Até temos o exemplo do Reino Unido. Independente da vida que eles estão agora a ter, na realidade, o Reino Unido teve um NHS muito forte com o NHS Executive,sediado em Leeds, e o correspondente ao Ministério da Saúde, em Londres.
O Governo não tem que administrar diretamente as organizações propriamente ditas. O Governo é do setor todo e tem que enquadrar o sistema todo. A governação do dispositivo prestador é altamente complexa, até do ponto de vista técnico-científico; portanto, tem que ter equipas mais ou menos estáveis e dedicadas.
O Professor Sakellarides dava este exemplo: o NHS Executive tinha um núcleo de gente de alto gabarito, sendo que a maior parte estava lá há 30 anos. Interpretavam as políticas, que iam mudando, e evitavam ruturas, coisas que fossem danosas. Têm essa responsabilidade de ajudar o decisor político a fazer a compatibilização entre as suas preferências políticas e os melhores efeitos no dispositivo instalado, e inclusivamente ajudar a fazer as transições.
HN – Outra coisa de que se fala há muito é que o Serviço Nacional de Saúde está subfinanciado. Está de facto subfinanciado ou há má gestão?
VR – O estar subfinanciado comprova-se de uma forma muito simples. Todos os anos, tirando um ou dois, o orçamento inicial é um e no final do ano é outro. Sempre foi assim. Quando se faz o orçamento, já se sabe que, no final do ano, não vai ser aquilo. No fundo, isto significa desconfiança por parte das Finanças..
HN – Com o desalento que se sente por parte profissionais do SNS, como é que se consegue resolver um problema destes?
VR – A maior parte das organizações têm feito documentos. Estão em curso os estados gerais para transformar o SNS, que a Fundação SNS está a promover, no sentido de procurar congregar. Porque está tudo escrito.
O Observatório Português dos Sistemas de Saúde tinha 20 relatórios. É um manancial de conhecimento, de ideias, de perspetivas.
A Fundação Gulbenkian gastou muito dinheiro em 2013/2014. Juntou-se mais de uma centena de peritos que produziram cinco relatórios parcelares e um relatório final “Um Futuro para a Saúde. Todos temos um papel a desempenhar”. Ali temos tanto material, tantas ideias, tantas perspetivas! É preciso evoluir do “Estado marreta”, como o Professor Sakellarides lhe chama, para o Estado inteligente. Mas isto é um processo que compete a todos. Se calhar eu também estou em falta. O que é que eu poderia fazer? Olhe, dediquei-me à Fundação para a Saúde – SNS.
O que é que podemos fazer? Juntar as pessoas, juntar os papéis, os estudos. São muitas as organizações que já produziram documentos. Alguns não têm as coisas sistematizadas, é uma oportunidade para o fazerem; mas outros têm. A USF-AN tem o “Sete Vezes Sete”. São 49 medidas para desenvolver os cuidados de saúde primários. E há outras organizações que têm. São linhas de trabalho. A Fundação fez quatro congressos e temos três livros publicados, um deles “Serviço Nacional de Saúde: Breve Interpretação e Linhas para a sua Transformação”, de 2019. Há um manancial brutal.
Agora, a vantagem é que temos uma equipa de cariz fundamentalmente técnico. Naturalmente que tem que estar sensível e interpretar devidamente a orientação política, mas talvez consiga dar esta continuidade e juntar essas peças – que é inteligência conectiva, liderança conectiva, governança conectiva. O nosso cérebro não funciona com “os neurónios cada um para seu lado”. Está tudo ligado. Provavelmente temos que imitar o nosso cérebro.
HN- Perspetiva que possa sair alguma coisa de bom deste modelo?
VR – A direção executiva é um instrumento de coordenação que vem colmatar uma necessidade de 1979. Pode abrir linhas de trabalho, em que todos temos que participar. Aquele relatório da Gulbenkian (não me farto de fazer propaganda, porque é um investimento tão grande e tão desaproveitado!) merece a pena ser estudado e aprofundado. Espero que esta equipa o faça. Estamos a falar de milhares de páginas, conhecimento com base em dados, em estatística, em evidência.
Por exemplo, a USF-AN criticou a questão das unidades locais de saúde. Eu não concordo muito com essa crítica porque, mais uma vez, não é a figura que faz a diferença, mas a figura pode ser facilitadora. A questão é o que é que pode ajudar mais. O Alentejo tem três unidades locais de saúde e no centro não há nenhuma, e eu acho que a direção executiva quererá fazer uma. Tem a sua lógica. O facto de serem unidades locais de saúde pode ser facilitador, mas não é suficiente. A questão é esta. Porque o problema não reside em ter lá a unidade local de saúde, o problema é o modelo de governação e de governança é que é ali executado. Porque se é uma governança hospitalocêntrica, virada para a organização e não para fora, não deve fazer grande diferença.
A USF-AN mostrou muitos relatórios a dizer que as unidades locais de saúde não têm mostrado superioridade sobre o resto. Na realidade, têm aspetos vantajosos, na vertente logística, de equipamentos, das compras, até das contratações. Mas do ponto de vista da governação em Saúde, é preciso desenvolver competências. As pessoas não nascem ensinadas. Uma das coisas que a Fundação fez foi contactar a Escola Nacional de Saúde Pública no sentido desta desenvolver uma pós-graduação em governação em saúde. Mas uma coisa diferente, em que a própria escola deveria trabalhar com as pessoas no terreno com funções de direção clínica. Por exemplo, os candidatos à Ordem dos Médicos falaram muito na liderança clínica. Isso é importante. Não é para centrar as coisas só nos médicos. Mas a verdade é que os médicos ficaram um pouco afastados da liderança das organizações.
Mas o que é que isto difere da gestão? Inclui a gestão dos serviços de saúde, mas é uma lógica que olha para propósitos. Tem um sentido de missão. Eu preferia, em vez de dizer plano de negócios, como se diz, dizer plano de missão. A missão é voltada para a população, para os objetivos de saúde. A nossa missão são as pessoas, é a saúde e o bem-estar das pessoas, olhar para a população e manter os nossos profissionais saudáveis para atingirmos resultados em saúde.
Não sei se já viram o Plano Nacional de Saúde. Tem uma parte diagnóstica interessante. Veja qual é a situação do Alentejo nos últimos 10 anos. Uma das razões que me fez aceitar colaborar no Conselho Nacional de Saúde foi a de que talvez também possa contribuir… Lá está, “todos têm um papel a desempenhar”… O Alentejo é a única região no continente em que, em dez anos, todos os indicadores de saúde pioraram. Não faz sentido.
Está lá, no Plano Nacional de Saúde, com os gráficos todos!.
HN – E quais são as razões plausíveis?
VR – Tenho as minhas hipóteses, são as hipóteses de investigação, mas seria irresponsável dizer que é por isto ou por aquilo. Mas tem que se investigar. E a primeira equipa que deve investigar é a de Saúde Pública. São os mais habilitados, os epidemiologistas.
HN – O Conselho Nacional de Saúde ainda agora começou para si. Quais são os seus grandes objetivos?
VR – É um órgão de aconselhamento e participação. O meu papel é assegurar que funciona. Tem uma série de atributos. Consiste, no fundo, em acolher a participação. O meu papel é marcar reuniões, preparar a agenda, estimular as pessoas.
Vou propor dar uma atenção especial à questão da execução do Plano Nacional de Saúde. Porque esta história de fazer os planos é muito bonito, mas depois… Não sou eu que vou fazer cumprir, mas vou tentar que se dê atenção especial. O que não pode ser é letra morta.
HN – O Sistema Nacional de Saúde compreende o setor público, o setor social e o setor privado. Porque é que há tanta dificuldade em encontrar plataformas de encontro e de colaboração entre estes três setores?
VR – Isto é possível. Por isso é que foi criada a Entidade Reguladora da Saúde.
Apesar de tudo, a questão da saúde é um assunto do interesse público e é uma área de solidariedade. Tem de ser obrigatoriamente de solidariedade, independentemente do mercado. No núcleo da Saúde, que tem que ver com a relação imediata e direta com pessoas fragilizadas, o mercado não funciona. Mas depois há uma quantidade de farmacêuticas, laboratórios e tecnologia que não se consegue ter sem ser na zona do mercado. Portanto, conciliar estas coisas todas implica saber fazer, competência. Será esse o papel que o Governo quer da Entidade Reguladora da Saúde.
É de uma extrema complexidade, porque têm objetivos diferentes. Num, o critério de sucesso é a maximização do lucro; noutro, o critério de sucesso é produzir resultados de saúde.
Isto não impede que o que tem a maximização do lucro não aceite contribuir para a produção de resultados em saúde. Mas não é natural. Não é espontâneo, tem que ser condicionado através de contratos inteligentes. E isso é possível fazer. Aliás, a economista Mariana Mazzucato tem um livro intitulado “Economia de Missão” que tem esta lógica de que é necessário fazer esta convergência a propósito de missões específicas – neste caso, da produção de saúde.
Isto é tão complicado… Por exemplo, os cuidados primários. A utopia dos cuidados primários e da prevenção é que não vá um único doente para o hospital. Mas isto não é novo. O grande William Osler (1849 – 1918), que no fundo é o criador da Medicina Interna do século XIX, dizia que a finalidade mais nobre da Medicina é tornar-se desnecessária. Agora vá dizer à administração do Hospital da Luz que essa é a finalidade deles, tornarem-se desnecessários. É contranatura. E temos que respeitar isso. Não se trata de uma lógica de maus e bons. Temos que compreender as lógicas de cada um. São as regras do jogo.
HN – No decreto-lei, porque é que colocaram as USF de modelo C se não era para ser concretizado?
VR – O “pessoal” pensava em tudo. As USF modelo C estavam a prever o que se está a passar hoje: a “rapaziada” reforma-se e alguns, os mais mexidos, vão querer continuar a trabalhar. Então, é uma forma de os manter. Porque já se sabia, pelo “Triângulo das Bermudas”, que isto ia acontecer. Mas aquilo andou ali empancado. Chegou a haver um projeto de decreto-lei para as unidades de saúde modelo C no tempo do Dr. Paulo Macedo e do Dr. Fernando Leal da Costa. Acho que deve ter havido resistência política e por isso meteram-no na gaveta.
A ideia era aproveitar a mão-de-obra até à chegada da “onda” dos mais jovens, que vai acontecer, felizmente. Mas temos outro problema: esta onda dos mais jovens não tem os seniores a apoiá-los. Vamos ter que lidar com isso.
HN – Vamos cair no caos?
VR – Talvez não. A “malta” tem um génio grande.
Entrevista de Miguel Múrias Mauritti.
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