A bright future beckons. The onus is on us, through hard work, honesty and integrity, to reach for the stars. (Nelson Mandela, 1996)
O final de um ano é sempre um tempo de reflexão e de desafios.
Na área da saúde, este ano de 2022 que agora termina merece uma atenção especial. Fruto de um esforço enorme dos Cuidados de Saúde Primários, conseguimos debelar o impacto da pandemia que marcou definitivamente o início do século XXI. Apesar do elevado número de infetados, contados numa obstinada incapacidade de atualizar a análise à verdadeira relevância da doença, a morbilidade com significado clínico e a mortalidade foram significativamente menores, transformando a pandemia numa endemia.
No entanto, o inevitável regresso ao normal não foi um regresso ao passado, nem poderia. A inépcia da tutela em perceber esta realidade criou instabilidade em todo o sistema que acabou na mudança da estrutura governativa, que só pecou por tardia. Os médicos não são covardes, nem têm falta de resiliência. Não abandonam os seus doentes, nem admitem que os desqualifiquem em manobras disfarçadas na emergência mediática. Outrossim, sabemos o que fazer com os nossos doentes, com as suas famílias e comunidades e de que forma organizar os serviços para encontrar as melhores respostas, sempre que conseguimos estabelecer objetivos comuns e pontes eficazes de comunicação.
O ano de 2023 começa assim com a expectativa de um novo normal na área da saúde, que implica não apenas a reorganização dos serviços, das carreiras, dos vencimentos e da estrutura, mas de facto um novo paradigma: A saúde em Portugal tem de ser vista como um investimento e não como uma simples despesa, passando a habitual análise de custos para uma avaliação da efetividade e do valor acrescentado.
Neste sentido, assume particular importância a organização dos Cuidados de Saúde Primários enquanto base do sistema de saúde e garantia efetiva da globalidade, da acessibilidade e da continuidade nos cuidados que todos os portugueses necessitam, provendo a equidade, a justiça social e a oportunidade em saúde.
Situados na linha da frente, os Cuidados de Saúde Primários são a face do sistema, assumida desde a criação do Serviço Nacional de Saúde que, na realidade, se desenvolveu mais pela criação e implementação da especialidade de Medicina Geral e Familiar e dos seus médicos e menos pelo funcionamento hospitalar, que pouco alterou mesmo com as múltiplas mudanças de nome de hospitais a centros hospitalares, EPE’s ou ULS’s.
Esta posição foi particularmente importante durante a pandemia permitindo tranquilizar a população doente, e também a saudável, equilibrando a instabilidade social que se viveu. O processo foi de tal forma impactante que levou ao seu prolongamento artificial pela incapacidade política de uma decisão verdadeiramente baseada na evidência, agravada pela opção de garantir a vacinação sobre todas as outras atividades. Infelizmente esta insistência desviou os recursos durante demasiado tempo, levando a que os cidadãos se tenham de facto sentido desprotegidos pelos médicos em que sempre confiaram e que sempre estiveram de porta aberta para os receber.
As palmas que nos lançaram no início transformaram-se nos apupos com que nos acusaram no final, onde o cansaço, a desmotivação, o desgoverno, e a falta de condições dignas de trabalho se aliaram aos vencimentos ridiculamente baixos, à desconsideração e ao excesso de tarefas da retoma, provocando uma verdadeira exaustão. Os sinais são visíveis no número de médicos que se reformam, nos que se desvinculam do setor público, nos recém-especialistas que não aceitam as colocações disponíveis, nas vagas dos internatos que ficam por preencher e até nas classificações de entrada para as Faculdades de Medicina.
A crise dos Cuidados de Saúde Primários é a crise de todo o Serviço Nacional de Saúde:
- Mais de 1,45 milhões de portugueses sem médico de família nos serviços públicos;
- Acessibilidade deficiente para todos os restantes cidadãos integrados em listas sobrecarregadas sem ajustamento às tarefas clínicas;
- Estruturas de gestão centralizadas e centralizadoras incapazes de encontrar soluções para os problemas locais;
- Falta de confiança entre os níveis de gestão que bloqueia a autonomia dos serviços;
- Deficiente definição de metas e objetivos em saúde, com confusão frequente entre estruturas, processos e resultados;
- Sistemas de avaliação desfasados da realidade, baseados em algoritmos que cristalizam os comportamentos em vez de promover a qualidade;
- Redes de referenciação e orientação incapazes de dar resposta eficaz aos doentes que necessitam de tratamento hospitalar;
- Excesso de burocracia na máquina administrativa que se reflete no trabalho clínico;
- Deficiente integração entre a saúde, o ensino superior e os centros de investigação desaproveitando a capacidade instalada de produção e estruturação do conhecimento;
- Ausência de uma verdadeira política de educação para a saúde e promoção da literacia e da responsabilização dos cidadãos.
A consequência é a diminuição da acessibilidade, a incapacidade de prover uma visão abrangente e integradora da pessoa e a quebra da continuidade da relação. No seu conjunto, levam a menor qualidade dos cuidados de saúde à população e o resultado é mais doença, mais sofrimento e mais morte: desde o início de março de 2020 (semana 10) até à presente data (50 em dezembro de 2022), registamos 45.000 mortes acima do esperado com base na média dos anos de 2009 a 2019, sobretudo acima dos 70 anos, com diminuição da esperança média de vida dos portugueses.
O diagnóstico está feito e é conhecido. Entramos num novo ano com uma nova equipa da saúde. Esperamos coragem, dedicação, visão holística, capacidade de diálogo e liderança.
Esperamos poder voltar a ser Médicos dedicados aos nossos doentes, organizados em serviços acolhedores, orientados para as boas práticas, com remunerações justas e sem interferências inadequadas.
Estamos prontos para fazer a nossa parte e voltar a ser os verdadeiros alicerces da saúde dos portugueses. Assim estejam todos para que o Novo Ano seja realmente próspero, com paz e com saúde.
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