Em junho 1899, um navio cargueiro com tecidos atracava no Porto. Além de tecidos da última moda, o navio trazia consigo um passageiro indesejado: a Yersenia Pestis, a bactéria responsável pela peste negra. Os eventos que aconteceram há 125 anos demonstram não só a atualidade desta emergência de saúde pública, como a pouca evolução que enquanto sociedade tivemos.

No princípio de julho desse ano, um mercador preocupado com a quantidade de óbitos na Rua da Fonte Taurina, contactou o médico municipal, Ricardo Jorge, que ao deslocar-se ao terreno, descobriu mais pessoas doentes, com febre e os bubões característicos da doença.

A doença, que foi rapidamente identificada, viria a provocar 320 pessoas doentes e 132 óbitos. Mas por pressão das autoridades regionais, o alerta foi adiado durante um mês. O último surto na cidade tinha ocorrido há 300 anos, mas os efeitos da palavra peste continuavam bem presentes. Não há doença que tenha marcado tanto a nossa memória coletiva como esta. Não há palavra que ainda hoje inspire medo e respeito como peste.

No mesmo mês, o médico elaborou um extenso relatório, onde se mostrava convencido da origem da doença, assim como efetuava uma acertada critica social às condições em que a maioria da população vivia e trabalhava. De facto, o Porto do final do século XIX não era um local saudável para a maioria das pessoas. A cidade sofreu um grande crescimento populacional, alicerçado pela expansão industrial. Mas a oferta habitacional era precária, degradada e sem o mínimo de condições. O proletariado estava confinado a viver nas colmeias ou ilhas, sobrelotado e partilhado com animais, sem acesso a água potável ou saneamento básico. Estavam criadas as condições ideais para a propagação de várias doenças.

Apenas a 24 de agosto as autoridades começaram a atuar, estabelecendo um cordão sanitário em redor da cidade. Entre as várias medidas instituídas para controlar a disseminação da doença, das mais curiosas, foi a oferta de recompensas para quem caçasse ratos. Por cada rato grande entregue numa esquadra de polícia, era pago vinte réis, por um rato pequeno, dez réis.

As medidas produziram efeitos, controlaram a progressão da doença e foram vítimas do seu próprio sucesso. Rapidamente se produziu a narrativa que as autoridades de Lisboa exageravam na abordagem ao surto. Apoiada pela elite económica local, sempre mais preocupada com as consequências económicas imediatas das medidas de saúde pública, que nas consequências de médio prazo de um surto descontrolado de peste, o ambiente social tornou-se violento e o presidente do município apresentou a sua demissão.

A presença de casos em Braga, Guimarães e Santo Tirso, fez temer o pior, mas felizmente, os casos isolados não evoluíram para novos surtos da doença. O último caso da doença foi registado a 16 janeiro de 1900.

Estes 6 meses deixam-nos algumas lições que importa reter. É essencial criar e manter sistemas de vigilância e diagnóstico epidemiológico, com capacidade de deteção precoce de ameaças. Estas ameaças, assim que identificadas, devem ser avaliadas e reportadas, com adequada comunicação de risco à população. As medidas devem ser proporcionais. Já na época, a comunidade científica afirmava que o cerco sanitário teria pouco efeito, mas o governo insistiu na medida, só começando a aliviar o seu rigor na segunda quinzena de setembro.

A luta entre os interesses económicos de curto prazo e os de médio prazo da saúde devem ser resolvidos precocemente. É preciso liderança e comunicação adequada, para ter todos os setores da sociedade a bordo do projeto de erradicação do surto. Caso contrário, as tensões irão aumentar e contribuir para o falhanço da missão, com claros danos na saúde da comunidade.

Por fim, e sempre atual, o controlo da desinformação. Na época, foi dado imenso destaque a um médico regressado de Macau, que afirmava que não havia epidemia de peste no Porto. Tudo não passava de uma doença ligeira com baixa mortalidade, que os laboratórios não tinham capacidade de identificar a bactéria, e que todas as medidas tomadas eram desnecessárias e injustificadas. Qualquer semelhança com a atualidade é apenas mais uma demonstração do ciclo interminável e repetitivo da história. Sejam “jornalistas” pela verdade, ou médicos regressados de Macau, 125 anos depois, os argumentos são os mesmos, assim como as consequências práticas: aumento da propagação da doença e mortalidade.

Por fim, tal como bem explicado por Ricardo Jorge, não há saúde sem condições sociais e de habitação dignas. Num momento onde atravessamos uma crise no setor da habitação, deveríamos reter e recordar esta poderosa lição. O surto não teria ocorrido, ou teria tido dimensões bem menores, caso as condições de vida dos trabalhadores pobres do Porto fossem outras. Combater as desigualdades em saúde melhora a saúde de todos.

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