“A paixão (ideológica) tolda a razão (dos governantes)”
Em 1979 o SNS era concebido sob os auspícios ideológicos da esquerda. Nessa altura, recordar-se-ão os mais entradotes nos anos, que CDS, PPD/PSD e a Ordem dos Médicos formaram uma Santa Aliança, assaz ativa, que tudo fez para evitar um tal modelo. Hoje, à parte as desgraças em que recentemente têm surgido, o saldo destas décadas de vigência do SNS é consensualmente aceite como positivo. Poucos lhe contestam o lugar no pódio das mais expressivas conquistas de abril, mesmo entre os herdeiros ideológicos dos que tanto se afadigaram em diabolizar o paradigma então escolhido. Adiante.
Na década de oitenta, por razões que me parecem puramente ideológicas, foram escancaradas as portas à iniciativa privada. É demagógico o argumento de se terem procurado trazer para os cuidados de saúde os benefícios da concorrência. Em primeiro lugar, porque os cuidados de saúde têm uma dinâmica muito própria, que não pode ser decalcado do funcionamento da maioria dos outros setores económicos. Mas, sobretudo, porque não se tratou propriamente de apostar na concorrência entre o setor privado e o público, mas sim de estímulo do setor privado à custa da transferência de recursos humanos do SNS para as empresas emergentes. O mal não está na abertura dos cuidados de saúde à iniciativa privada. O mal foi em ter-se instituído uma política de desinvestimento. Tanto quanto sei, permitiu-se o exodo de elementos de reconhecido valor, sem que fosse feita qualquer tentativa de os aliciar a permanecerem no SNS. Se tivesse havido verdadeira concorrência ter-se-iam procurado saber como melhorar a satisfação dos que quiseram sair e tentar melhorar o SNS. Em vez disso testemunhámos uma pequena traição. Vimos a ideologia, demasiado proeminente, a distorcer a sensatez necessária à tomada de decisões políticas.
Hoje, passadas quase quatro décadas, vivemos uma profunda crise de recursos humanos, sobretudo médicos, que aflige o SNS e compromete severamente o seu desempenho, em contraste com um setor privado em ascensão. Sejamos realistas: o setor público deixou de ser capaz de responder às necessidades dos cidadãos e dificilmente conseguirá reconquistar as condições para o fazer. A dimensão adquirida pelo setor privado da saúde torna-o incontornável para prestar cuidados de saúde aos portugueses. A opção pelo outsourcing só pode ser combatida por quem renuncia ao mais elementar pragmatismo, por fidelidade à ideologia. Para a esquerda, a questão não é: no presente momento, o que fazer para melhorar os cuidados de saúde aos cidadãos? Mas sim: como evitar que os privados ganhem dinheiro.
No que toca aos CSP, continuam reféns da ideologia. Sendo manifesto que o número de utentes sem médico de família atingiu proporções escandalosas e sabendo-se que não faltam médicos de família no setor privado, porque não avançar com o modelo USF tipo C (privadas)? Assim haja interessados e a paixão ideológica o permitisse. Contudo, o ministro parece ter optado por seguir as orientações dos diretórios partidários (ao sabor de táticas partidárias), mesmo que seja à custa de perdas graves da qualidade dos cuidados de saúde primários.
A confusão (para não dizer desinformação) a que assisti no noticiário televisivo é preocupante. Um exemplo: foi anunciado, que a passagem de todas as USF A a B redundaria numa diminuição de utentes sem médico de família. O motivo tinha a ver com a possibilidade dos médicos com horário de 35 horas poderem aumentá-lo, incrementando em troca o número de utentes. Enquanto trabalhei numa USF A, o meu horário era de 42 horas. Assim que passamos ao modelo B o horário foi-me reduzido compulsivamente para 35 horas! Portanto, ao contrário do que foi referido na peça.
Em suma: se no passado, os desvarios ideológicos da direita abriram brechas desnecessárias no SNS, hoje são os desatinos esquerdistas que põem em causa a qualidade dos cuidados de saúde em Portugal.
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