No debate ocorrido no dia 10, por convocatória de urgência pelo BE, sobre o problema do número de utentes sem médico, as duas deputadas do PS, Berta Nunes, minha colega e vice-presidente da bancada Socialista e Maria Antónia Santos, mentiram ao Parlamento ao afirmarem, e até de forma enfática, que todas as USF com candidaturas ao Modelo B no final de 2022 tinham passado ao Modelo B em janeiro.
Ora, isto é falso. Passaram apenas aquelas que já tinham parecer técnico positivo homologado pelos conselhos diretivos das ARS. Passaram 23 quando havia mais 70 USF de Modelo A com candidatura apresentada e, neste momento, existem 1474 médicos de família em modelo A que aspiram a ser modelo B.
Aliás, o despacho da passagem é claro: “Determinou-se que até 30 de junho de 2023 transitam para o modelo B 28 unidades que cumprem os requisitos estabelecidos no Despacho n.º 24101/2007, de 8 de outubro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 203, de 22 de outubro de 2007.
Neste contexto, e encontrando-se já reunidos os requisitos de acesso ao modelo B por 23 unidades funcionais, importa aprovar a sua transição, na sequência de emissão de parecer favorável da Administração Central do Sistema de Saúde, I. P., sobre as candidaturas homologadas pelas respetivas administrações regionais de saúde, I. P., sem prejuízo da transição, até 30 de junho de 2023, das 5 USF abrangidas pela autorização constante do referido Despacho n.º 141/2023, de 4 de janeiro.”
Mas porque mentiram?
o tinham mais nada a que se agarrarem quando, ao fim de sete anos de governo do PS, e de sucessivas promessas eleitorais de acabar com os utentes sem médico de família a curto prazo, estamos com 1,7 milhões de utentes sem médico de família. Mais de um milhão está na ARS de Lisboa e Vale do Tejo, e em breve ultrapassaremos os dois milhões e o Governo nada tem para acorrer ao problema que afeta de forma muito grave a vida das pessoas.
Qual é a relevância do Modelo B nesta questão?
Nas USF de Modelo B todos os profissionais conseguem, sem encargo de trabalho acrescido, duplicar o vencimento. Hoje, a passagem de A para B leva, sem aumento das listas de utentes, à duplicação de vencimento. Os médicos recém-especialistas ficam com um vencimento confortável superior a 6 000 euros brutos, sem terem que fazer noites ou fins-de-semana, quando, antes de mudarem, tinham 2 600 euros brutos, que é o estabelecido na grelha salarial do regime geral.
O Modelo B, de que fui pioneiro, é de facto muito atrativo e captou muitos médicos para a especialidade de Medicina Geral e Familiar. O problema é que quem criou este regime rapidamente o começou a limitar, sobretudo na ARSLVT, e por isso é nesta ARS que existem mais de um milhão de utentes sem médico de família.
Assim, na reforma de Correia de Campos estava estabelecido que quem cumprisse os critérios acedia ao Modelo B, e 85% das USF criadas nos dois primeiros anos acederam aos Modelo B quando este foi criado. Mas depois começou, sobretudo a Sul, a haver resistência e uma utilização indevida da lei que tornou dependente de um despacho do Governo a passagem de uma USF a Modelo B, quando de facto a lei das USF refere um despacho apenas para a criação de USF a constituir de novo e não para o acesso ao Modelo B.
E, assim, aceder ao Modelo B passou a ser uma lotaria, dependente do poder político. Aliás, nos últimos anos, a passagem a Modelo B passou a estar ligada a critérios de oportunidade política e não ao critério técnico estabelecido na lei. Assim, a espera para se chegar a Modelo B aumentou, atingindo em alguns casos12 anos. Em 2021 nenhuma das USF criadas em 2016 tinha chegado ao Modelo B.
Ou seja, os médicos perceberam que andavam atrás de uma cenoura que nunca alcançavam; deixaram de acreditar e passaram a optar por ir trabalhar para os grupos privados ou emigrar.
Garantir o acesso ao Modelo B, passou a ser, no presente, o elemento essencial da retórica política.
Só que o Modelo B tem vários problemas:
É justo dizer que os pressupostos do Modelo B eram bons e que levou a uma grande transformação positiva dos cuidados de saúde primários. Mas o modelo apresenta vários problemas.
O seu custo:
O primeiro, o elevado vencimento dos profissionais, que, como se escreveu acima, mais que duplica. Assim, a passagem para o Modelo B tem um custo de 77 000 euros ano por cada médico que passa. Ou seja, os atuais 2 470 médicos e respetivos enfermeiros e secretários clínicos que estão em Modelo B representam um acréscimo de custo anual de 186 milhões de euros; passar todos os restantes profissionais que estão no regime remuneratório geral para o Modelo B teria um custo de mais 235 milhões de euros, para atenderem o mesmo número de utentes que já atendem. E se a generalização do Modelo B conseguisse trazer os 950 médicos em falta, o acréscimo do custo seria de mais 73 milhões de euros.
Uma Administração desleixada e não exigente permitiu escândalo de horas recebidas e não trabalhadas.
No artigo “10 anos de escândalo na Reforma dos Cuidados de Saúde Primarios” de 2018, chamei a atenção que as USF de Modelo B, com o conhecimento e a conveniência da Administração, estavam a praticar horários de 35 horas, muitos com três tardes livres, quando recebiam o equivalente a mais nove horas suplementares. Entretanto, no regime geral os colegas, com listas de utentes iguais e metade do vencimento, cumpriam horários de 40 horas, oito horas por dia com dois períodos diários.
As USF de Modelo B tinham aproveitado a autonomia de que gozavam para passarem do estandarte revolucionário inicial “USF centradas nos utentes” para “USF centradas nos profissionais”. Se as horas pagas e não feitas nas USF de Modelo B fossem cumpridas, o tempo de espera por uma consulta não devia passar de cinco dias úteis (e todas as urgências atendidas no próprio dia).
Na sequência de uma minha chamada de atenção no início de 2018 ao que se passava na ARSLVT, o agora DE do SNS, Professor Fernando Araújo, na altura Secretário de Estado Adjunto da Saúde, pediu uma auditoria aos horários médicos. Auditoria que depois estendeu a todos os grupos profissionais e a todas as ARS. O resultado da auditoria, que ficou secreto quase três anos, levou o Dr. Fernando Araújo a publicar um despacho em junho de 2019 em que pedia às USF que aprovassem novamente os horários dos profissionais, que os diretores executivos dos ACES se pronunciassem sobre eles (validando-os ou não conforme está previsto na Lei das USF) e que as atas dos Conselhos Gerais das USF com os horários aprovados fossem publicadas nos sites das ARS respetivas até ao final do mês seguinte.
As ARS publicaram os seus relatórios só vários meses depois e os mesmos confirmaram que tudo se mantinha igual. O da ARSLVT falava em devolução do dinheiro pago por horas não trabalhadas, e tinha a preciosidade de afirmar que os Diretores Executivos se abstiveram de se pronunciar em relação a 70 % dos horários aprovados pelas USF, demitindo-se assim de um dos seus deveres primordiais de dirigentes da função pública.
Curiosamente, naquele despacho onde se lê “A definição dos horários de trabalho nas USF modelo B tem suscitado dúvidas entre as Administrações Regionais de Saúde, I. P. (ARS, I. P.), conduzindo a diversas interpretações e diferentes práticas nas USF modelo B, em especial no que respeita à conversão das UC em horas efetivas de trabalho e definição do limite máximo de horas semanais a prestar pelos vários profissionais.
Afigura-se, portanto, essencial definir procedimento homogéneo que clarifique os critérios a considerar no ajustamento dos horários das USF modelo B às características da lista de utentes, na contabilização do incremento, bem como que clarifique a competência do Conselho Geral da USF modelo B na aprovação dos horários e do diretor executivo do respetivo ACES que procede à validação, face ao plano de ação, ao período de funcionamento e ao compromisso assistencial”, nada é dito sobre aquilo que ele próprio considera essencial. Nada é clarificado ou qualquer orientação apresentada.
A incapacidade de exigência por parte da Administração não permitiu tirar todo o partido do modelo, e ao não o tirar todo o partido a própria Administração tem dúvidas sobre o custo/ benefício e encontra um pretexto para não aprovar novos modelos B.
A revisão do Modelo Remuneratório das USF de Modelo B
1 – Na sequência desta controvérsia, a Ministra da Saúde, em novembro de 2019, anunciou que novos modelos B nos anos seguintes, só depois da revisão do sistema remuneratório do Modelo B, tendo publicado um despacho nesse sentido. Só que esta revisão ainda não aconteceu, tendo o atual ministro, num despacho publicado em janeiro, anunciado que aquela revisão ocorreria até ao final do próximo mês de Junho.
2 – Até 30 de junho de 2023 procede-se à revisão do modelo de pagamento pelo desempenho para as USF de Modelo B em função dos ganhos contínuos de eficiência na gestão dos recursos públicos, promovendo a otimização da utilização dos meios disponíveis visando a melhoria da prestação de serviço aos utentes
Desconhece-se à data o que está em cima da mesa e qual vai ser a sua aceitação pelos profissionais.
A repercussão nos médicos das carreiras hospitalares
Os médicos dos hospitais não compreenderão como é que os médicos de família ganham o dobro, sem terem que fazer urgências, noites e fins-de-semana.
E está a ocorrer, também até ao fim do próximo mês de junho, a revisão das grelhas salariais dos médicos.
A Secretária de Estado da Promoção da Saúde também mentiu
Mas neste debate não foram só as deputadas do PS que mentiram. Mentiu e omitiu descaradamente a Secretária de Estado da Promoção da Saúde quando referiu, também enfaticamente, que em 2022 as consultas presenciais tinham aumentado 66% quando conforme o poligrafo da SIC apenas aumentaram 18% e estão ainda abaixo de 2019 e anos anteriores E omitiu que em 2021 ainda tinha sido ano de pandemia em que muitos centros de saúde estiveram confinados alguns meses.
Sem qualquer solução perante um descalabro total que é o aumento de utentes sem médico de família. Sem querer fazer nada que possa minorar este problema (USFs de modelo C e usar a complementaridade do sector social e privado, pelo menos na possibilidade deste poder requisitar exames pelo SNS como já acontece há 30 anos com o receituário, mentir aos portugueses é o que resta ao Governo e aos deputados do Partido Socialista.
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