Iniciei o meu Internato de Obstetrícia e Ginecologia em 1987 e, por isso, tenho 36 anos de prática em Obstetrícia, incluindo Serviço de Urgência.
Durante 7 anos fui Diretora de Serviço numa das melhores PPP. Trabalhei até 2022 no Serviço Nacional de Saúde e atingi o topo da carreira, o grau de Assistente Hospitalar Sénior.
Muito mudou na Obstetrícia desde o início do meu Internato e, infelizmente, algumas mudanças não foram para melhor!
Nos últimos tempos, a grande melhoria dos indicadores de cuidados de saúde materno infantil que nos orgulham estão a ser colocados em risco. O rápido agravamento da situação nos últimos dias, desencadeado por quem tinha a obrigação de proteger não só os especialistas em Ginecologia e Obstetrícia como também as grávidas, está a piorar o cenário com a justificação de não haver Médicos Especialistas suficientes no nosso País.
Se já existe complementaridade de Cuidados entre Médicos e EESMO nos Blocos de Partos, qual a razão de imitir uma orientação com o teor da 02/2023 de 10 de maio?
De quem é a responsabilidade de não haver Médicos Especialistas de Ginecologia e Obstetrícia no SNS, em quantidade suficiente para assegurar a atividade dos Blocos de Partos?
Em 2018, o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia alertou a tutela sobre o que iria acontecer e as Direções de Serviços comunicaram aos Conselhos de Administração a necessidade de cativar os recéns especialistas, apresentando sugestões para evitar a saída de médicos para o setor privado. O número e a idade dos especialistas eram conhecidos e os problemas a curto-médio prazo estavam à vista.
Carreiras médicas, concursos para progressão na carreira, honorários adequados, melhores condições de trabalho e de equipamentos eram as estratégias a utilizar! Assim, seria possível impedir o que aconteceu em junho de 2022, mas … Nada tinha sido feito!
Abertura de Telejornais com bloco de partos a serem fechados por falta de médicos especialistas
Tem sido feito um esforço para um trabalho em equipa com as EESMO, apesar dos Especialistas de Ginecologia e Obstetrícia serem acusados de Violência Obstétrica e alvo de comportamentos hostis por parte de algumas grávidas e respetivos acompanhantes.
Construir pontes e manter a confiança na equipa de profissionais de saúde que trabalham lado a lado num Bloco de partos só pode ser compreendido por quem trabalha diariamente num ambiente dinâmico e de permanente alerta.
Quando iniciei o meu internato num Hospital Distrital, o número de partos era acima dos 2500/ano, chegando a ser 4200/ano, já como jovem especialista. Havia partos para todos e os meus primeiros foram realizados sob orientação das Sras. Parteiras. E com muito orgulho! Eram anos e anos de prática e de conhecimentos que transmitiam segurança não só às parturientes como também a quem estava a dar os primeiros passos na maravilhosa experiência de ajudar a Nascer.
A Obstetrícia é imprevisível e de um momento para o outro tudo muda, incluindo nas grávidas de baixo risco.
A tocologia, para além de ciência é uma arte que se está a perder. É preciso estudar e perceber a evolução do trabalho de parto, praticando. O trabalho de parto é um processo dinâmico, não havendo dois iguais. Se o médico é chamado para intervir, tem de saber rapidamente não só como está a evoluir a dilatação, bem como a descida e variedade da apresentação. É essencial também saber como está a reserva de oxigénio do feto e quando tempo temos para decidir!
Como pode fazê-lo se não acompanhou o trabalho de parto?
Qualquer Especialista que trabalha num Bloco de Partos sabe que, mesmo em grávidas de baixo risco pode ter menos de um minuto para tomar uma decisão… que pode ser entre tentar um parto instrumentado, se estiverem reunidas as condições para a sua aplicação, ou uma cesariana.
Na dúvida, é mais fácil fazer uma cesariana… é preciso experiência, conhecimento e nervos de aço para saber decidir a via de parto, saber até onde ir e quando parar.
Todos queremos o nascimento de um RN saudável!
Por tudo o que ouvimos não só na comunicação social, mas também por defensores da assistência ao parto humanizado, até parece que somos os menos interessados em que a grávida e acompanhante tenham uma experiência menos positiva.
Se fazemos um curso de 6 anos, um ano de formação geral, mais uma especialidade de 6 anos, avaliações anuais, formações, cursos de emergência Obstétricas, exame final da especialidade, estamos mais do que habilitados para identificar e antecipar situações de riscos, estando também capacitados para fazer uma intervenção adequada.
Para além da moda das cesarianas a pedido, é verdade que ao longo dos anos passou a haver uma maior intervenção no parto… passaram-se a fazer mais induções (muitas vezes por solicitação das grávidas), pois o médico que seguiu a gravidez estava de urgência num determinado dia e queriam que fosse ele a lhe fazer o parto. No entanto, esta situação tem sido revertida e cada vez mais no sentido de aguardar por um trabalho de parto espontâneo.
A complementaridade dos cuidados a nível da Saúde Materna é essencial nas Consultas Externas, na Admissão no Serviço de Urgência e no Bloco de Partos, onde continuamos a ter muito caminho a fazer.
Em alguns Serviços de Ginecologia e Obstetrícia esta entreajuda funciona com estabilidade nas Equipas e, para isso, é essencial haver Confiança e Partilha de tarefas, sabendo cada um qual o papel que tem que desempenhar, em todo o processo de fazer Nascer.
A linguagem que é utilizada e partilhada nas redes sociais contra os Médicos leva a um estado de desconfiança das grávidas e que vai contra tudo o que é necessário num momento muito especial e que TODOS, incluindo os Médicos, queremos que aconteça.
Nem Médicos Obstetras nem EESMO conseguem trabalhar sozinhos, mas limitar o acesso dos Médicos Especialistas em Obstetrícia aos Blocos de Partos é um passo perigoso e que vai levar à reversão dos excelentes indicadores de Saúde Materna e Neonatal.
A diminuição do número de partos nos Hospitais públicos tem levado, ao longo dos anos, a uma maior dificuldade na formação, quer seja no âmbito do Internato da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia como na formação de EESMO.
A tudo isto junta-se ainda a saída por reforma das EESMO, as nossas parteiras mais antigas com larga experiência, associado à saída de Especialistas em Ginecologia e Obstetrícia, por cansaço de lutar contra o sistema, reforma ou por deixarem de fazer Serviço de urgência noturno aos 50 anos e totalmente aos 55 anos.
O ambiente atual em alguns Blocos de Partos é de tal modo ostensivo e hostil contra os Médicos que não está a permitir aos Especialistas mais jovens adquirir a experiência e a tranquilidade necessária. Isto leva a uma menor disponibilidade para a realização de atividade de urgência e de bloco de partos, pois têm a noção que os conflitos médico legais podem acontecer e vão aumentar.
Esta nova orientação irá com toda a certeza contribuir para o agravamento da qualidade da formação e dos Cuidados Maternos e Neonatais e, por isso, temos que ser fortes! Temos que ser capazes de saber lidar e ultrapassar algumas divergências e unirmos esforços para continuar o legado dos nossos mestre Dr. Albino Aroso e Dr. João Manuel Dória Nóbrega, entre muitos outros.
Como é que se sobrevive num SNS sem Obstetras?
Basta olhar para outros países, quer EUA, Reino Unido e em alguns países na nossa Europa e ver a triste realidade…
É urgente o diálogo entre Ordem dos Médicos, Colégio de Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia com o Ministério da Saúde e DE-SNS acerca dos pareceres técnicos já elaborados… antes que seja demasiado tarde!
Haja coragem política para tomar decisões estruturais que são difíceis, mas necessárias… anteriormente já foram tomadas medidas complicadas, cujos resultados se mantêm até aos dias de hoje e que agora podem vir a ser colocadas em risco.
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