HealthNews (HN) – Apesar do longo processo negocial relativamente à regulamentação dos novos estatutos das várias ordens profissionais, que resultam da alteração da lei-quadro, ainda se mantêm muitas divergências. Quais são, na sua perspetiva, as principais?

Miguel Leão (ML) – Em primeiro lugar, quero clarificar que falo a título pessoal e obviamente, não represento a Ordem dos Médicos, que é representada pelo Senhor Bastonário e meu amigo, Dr. Carlos Cortes.

Em resposta à sua questão, diria que as divergências são de dois níveis. A primeira diz respeito à composição e competências do conselho de supervisão. A segunda questão é a participação de não médicos nos órgãos disciplinares. Em terceiro lugar, a revisão do estatuto das ordens, no caso da Ordem dos Médicos permitiu a consagração, por via estatutária, da legislação referente ao ato médico. Estas são as questões centrais.

Há ainda a questão da existência do “provedor do destinatário dos serviços”, um nome muito complicado de dizer. Penso que esse provedor até pode fazer algum sentido. Depende, obviamente, das suas competências. Mas, pessoalmente, não penso que esse seja o cerne da questão no que diz respeito à Ordem dos Médicos.

Na proposta que o Governo submeteu à Ordem dos Médicos, há ainda um artigo, cujo número não sei de cor, sobre a possibilidade de o ministro da Saúde, a título transitório e excecional, atribuir o título de médico ou de médico especialista, passando à frente do crivo da Ordem dos Médicos. Não posso deixar de notar a enorme coincidência com esta questão recente da contratação de médicos vindos de Cuba.

HN – Portanto, a introdução, nos principais órgãos da Ordem dos Médicos, de elementos exteriores à mesma, nomeadamente nos conselhos disciplinares (que avaliam os casos de alegados erros médicos e negligência) é um dos principais pontos de discórdia. Tendo em conta a redação da proposta para a criação do conselho de supervisão, em que 20% dos membros são escolhidos entre personalidades de reconhecido mérito, o que é possível entender sobre esta indicação de “reconhecido mérito”?

ML – Não sei. Está previsto que o conselho de supervisão tenha 40% de médicos, 40% de personalidades não inscritas na Ordem dos Médicos e ligadas às faculdades de Medicina (não é isso que está no projeto mas vai terminar aí) e 20% de pessoas que são cooptadas por estes 12 elementos. “Personalidades de reconhecido mérito” é um termo completamente vago. Mas o que mais me preocupa não é tanto a composição do conselho de supervisão mas os poderes que lhe estão atribuídos. O conselho de supervisão, na lei-quadro das Ordens, aprovada em março pela Assembleia da República, tinha um conjunto de competências que, salvo erro, terminavam na alínea g). No caso da proposta submetida à Ordem dos Médicos, o Governo alarga as alíneas e alarga as competências do conselho de supervisão, o que não constava na lei-quadro das Ordens. Penso que esta matéria é relevante porque irá haver, seguramente, um processo de audição parlamentar dos diversos projetos. Esta é uma matéria que ainda deve ser debatida, e eu espero bem que ainda seja negociável porque “a perna” do Governo foi demasiado grande. Acrescentou competências ao conselho de supervisão, nomeadamente em matéria disciplinar, que não estavam previstas na lei-quadro das Ordens.

HN – Do mesmo modo, 40% dos membros são oriundos de instituições académicas. Isso significa que poderá haver não médicos nesse grupo?

ML – É altamente provável. Isso é relevante devido às eventuais competências disciplinares do conselho de supervisão. Numa visão mais técnica ou jurídico-formal desta questão, o que resulta do projeto-lei que o Governo enviou à Ordem dos Médicos é uma enorme conflituosidade potencial dos diversos órgãos. Esta é uma discussão muito técnica mas, se formos ver com cuidado as competências que são atribuídas aos diversos órgãos, tudo isto pode redundar numa verdadeira anarquia, até na ação disciplinar. Ou seja, vem agravar aquilo que muitas vezes é verdade, tenho de o reconhecer: há atrasos nas decisões disciplinares da Ordem. Ainda relativamente ao conselho de supervisão, uma das competências que não estavam previstas na lei- quadro das ordens profissionais e que foram alargadas, é que compete ao conselho de supervisão decidir sobre qualquer deliberação dos órgãos da Ordem dos Médicos. Isto, em bom português, o que é que significa? Vamos supor que algum médico resolve contestar uma decisão do órgão deliberativo máximo da Ordem, ou seja, do Conselho Nacional. Se, porventura, o conselho de supervisão der provimento ao pedido desse médico, as decisões da Ordem ficam paralisadas. Ora, um dos aspetos importantíssimos do funcionamento da Ordem dos Médicos é a celeridade das decisões. Portanto, este pretenso sistema de “checks and balances”, desorganiza tudo do ponto de vista decisório. Penso que isto não é bom para ninguém. Não é bom para os doentes, não é bom para os médicos e nem sequer é bom para o Governo.

HN – Como podem não médicos intervir na criação de novas especialidades médicas, bem como nas regras dos estágios profissionais, que no quadro regulamentar proposto são competências atribuídas ao órgão de supervisão?

ML – A questão da criação das especialidades médicas e os seus aspetos mais técnicos (criação de especialidades, aprovação dos programas de formação, critérios de idoneidade dos serviços, mapa de vagas dos internatos) levantou bastante polémica junto de vários médicos porque o diploma submetido à Ordem prevê, na prática, a homologação pelo ministro da Saúde. Mas em bom rigor, e para sermos justos, esta parte técnica já estava prevista na legislação relativa aos internatos. Nesse aspeto, não há, tanto quanto sei, uma alteração fundamental. Mas devo salientar que, apesar do processo negocial atrabiliário, que conheço razoavelmente bem, entre a aprovação da lei-quadro na Assembleia da República e o envio da proposta formal à Ordem, houve um processo de discussão que permitiu, de alguma forma, consensualizar algumas posições relativamente a este aspeto técnico. Eu diria que, nesse aspeto, houve muitas posições da Ordem, graças ao trabalho do Dr. Carlos Cortes, que foram acauteladas. Não tenho nenhuma procuração do ministro da Saúde para o estar a defender mas a questão da definição das especialidades, o mapa de idoneidades formativas e os mapas de vagas, já eram, de forma direta ou indireta, uma competência do Governo. Admito que esta é uma opinião polémica mas, pessoalmente, até prefiro que nesta matéria haja uma responsabilidade política objetiva dos ministros da Saúde em vez dos muitos burocratas que, desde há anos, infestam a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), e que não são médicos.

HN – Do mesmo modo, como vê as atribuições do previsto provedor dos destinatários dos serviços (não médico), a quem compete, entre outras funções, analisar as queixas dos doentes?

ML – Sobre essa matéria, não quero fazer procuradoria ilícita, nem armar-me em jurista, até porque estaria a competir com os nossos amigos advogados, mas acho que o país vive muito de faits divers e as palavras “analisar”, “apreciar”, “acompanhar”, do ponto de vista prático não servem para nada. Portanto, se o procurador do destinatário dos serviços “analisa”, “aprecia”, “acompanha”… isso a mim até nem me incomoda muito. Ainda que eu pense que no caso de um governo democrático, eleito democraticamente, o provedor do destinatário dos serviços, em termos democráticos, devia ser o Governo. A figura desse provedor parece-me uma coisa inventada para satisfazer a opinião pública bem pensante (ou mal pensante), que gosta de criar cargos que depois não têm qualquer poder efetivo. Se o provedor dos destinatários dos serviços “aprecia”, “analisa”, “acompanha”, e não faz mais nada, dou isso de barato.

HN – Então, o ministro da Saúde pode atribuir a especialidade sem que haja a competente avaliação dos colégios de especialidade da Ordem dos Médicos?

ML – Pode. Há uma disposição que prevê que, a título excecional e transitório, o ministro ou como diz o projeto de lei do Governo, “o membro do Governo que tutela a Saúde”, pode atribuir a especialidade e, em circunstâncias excecionais, atribuir o título de médico ou de médico especialista. Isto está lá e ainda me chama mais a atenção com esta questão da “importação” de médicos de Cuba. Não só por causa da questão técnica das qualificações mas porque não é indiferente que um governo democrático de um país democrático esteja, de alguma forma, a subsidiar um Estado e um governo totalitários.

Não tenho nada contra os colegas cubanos. Pelo contrário, tenho muita pena deles pelas circunstâncias em que vivem, mas o que está em causa é o aspeto técnico, as suas qualificações para exercerem Medicina em Portugal. E também não aceito que, porque se é estrangeiro, o grau de exigência seja menor daquele que é exigido aos médicos portugueses.

HN – A falta de médicos nos cuidados de saúde primários e nas urgências dos hospitais pode ser entendida como uma “circunstância excecional”?

ML – Essas circunstâncias podem ser todas excecionais. Há aqui um critério de decisão política. Mas, apesar de tudo, estamos num regime democrático, com um governo democrático e a capacidade de audição das diversas partes. Porque se, usando o exemplo que deu, a questão é a ausência de médicos de família, os 300 médicos cubanos não chegam. Quantos são precisos? Mil? Dois mil? Ainda mais grave do que isso, a proposta que foi enviada às escolas médicas e que circulou de alguma maneira, previa que esta situação excecional e transitória se destinava à contratação de médicos para trabalhar no Serviço Nacional de Saúde. Ou seja, era uma equivalência a atribuir a médicos para trabalharem no Serviço Nacional de Saúde, o que mutatis mutandis, significaria que esses médicos não poderiam trabalhar no setor privado. E este é o outro problema conceptual da proposta que foi enviada às faculdades de Medicina através, julgo eu, da senhora chefe de gabinete do ministro do Ensino Superior. Não posso admitir, como português, que os médicos a contratar pelo Serviço Nacional de Saúde tenham mais ou menos qualificações do que um médico contratado para trabalhar no setor privado. E não estou a falar do privilégio dos médicos; estou a falar dos direitos dos doentes.

HN – É possível, na abrangência do atual quadro regulatório, que se instituam especializações em exercício para aqueles que o desejarem?

ML – Não domino bem juridicamente a questão para lhe responder. Mas há aqui dois planos de discussão: política, no sentido geral, e jurídica. Penso que neste momento, com o ambiente que se atravessa na Saúde, é preciso que haja sobretudo uma discussão política e não de natureza jurídica. Depois, certamente que haverá pontos que terão de ser tratados por juristas, mas penso que não estou errado se citar Winston Churchill quando dizia que a guerra era demasiado importante para ser tratada pelos militares. É por isso que considero que, com todo o meu respeito pelos juristas, a Saúde é demasiado importante para ser tratada pelos juristas.

HN – Com os novos estatutos, os médicos internos deixam de ser assim considerados para serem estagiários com um contrato de estágio?

ML – Vamos ver se isso acontece. É sabido que, pelo contrário, os sindicatos estão a bater-se para que o internato seja considerado o primeiro grau da carreira médica. Daquilo que conheço do projeto enviado à Ordem dos Médicos, não consta nada específico que leve a qualquer conclusão.

HN – Outra dúvida: face à redação atual da proposta, o conselho de supervisão pode alterar a duração dos internatos médicos?

ML – Numa interpretação imediata e sem ter aqui o projeto à minha frente, não me parece. A Ordem dos Médicos pode continuar a propor, tal como acontece até agora, ao ministro da Saúde e posteriormente, obviamente que a decisão é do ministro. Nada indica que, nessa matéria, o conselho de supervisão tenha uma intervenção decisiva. Mas nesta questão do regime geral dos internatos (tive, há muitos anos, vários combates sobre isso) é preciso clarificar as águas. Como lhe referi, penso que é muito importante que haja aqui uma responsabilidade política. Por exemplo, se um ministro da Saúde decidir criar uma especialidade de medicina chinesa, é o senhor ministro que fica responsável pela criação dessa especialidade. Não pode dizer que foi o primeiro ou o segundo secretário da ACSS que fez isso. Não! É uma responsabilidade política do senhor ministro da Saúde.

HN – Que outras divergências de fundo vos suscitam o novo quadro regulamentar?

ML – Esta lei-quadro das ordens profissionais, aprovada pela Assembleia da República em março, constitui uma revisão de outra lei-quadro que tinha sido aprovada já em 2013 por outro governo, com outra maioria, sob a presidência do Dr. Pedro Passos Coelho. O quadro legislativo atual veio agravar os aspetos concetuais dessa legislação de 2013.

HN – Quais são as grandes diferenças entre a legislação atual e a proposta de 2013?

ML – A lei de 2013 previa a possibilidade de as ordens terem um provedor. Portanto, era algo facultativo, quando agora passou a ser obrigatório.

Por outro lado, as competências do conselho de supervisão eram omissas na lei aprovada em 2013. Mas, regressando à atual, ainda há muita matéria para discussão na Assembleia da República. A nova lei- quadro prevê a existência de um órgão disciplinar em que participem não médicos. A proposta que o Governo submeteu à Ordem prevê a existência de um conselho disciplinar nacional com não médicos, mas também a participação de não médicos nos conselhos disciplinares regionais (Norte, Centro e Sul). Acho que isto é uma matéria suscetível de ser alterada, para cumprir a lei, porque a lei-quadro das ordens prevê a participação de não médicos num órgão e não em quatro órgãos.

Ainda em relação a esta matéria, vejo com alguma dificuldade como é que se pode constituir um órgão disciplinar com pessoas que não são médicos.

O funcionamento dos conselhos disciplinares tem dois eixos fundamentais: o aspeto técnico e os aspetos jurídico-formais que decorrem da aplicação, por analogia, do Código do Processo Penal, aos órgãos disciplinares da Ordem.

Em bom rigor, e para ser absolutamente correto numa abordagem que tenta ser razoável e racional, tendo em consideração estas duas vertentes, só vejo dois tipos de personalidades para integrar um conselho disciplinar: médicos e juristas.

HN – Todas estas mudanças podem configurar uma postura de insegurança do Governo face às Ordens? Qual é a sua leitura?

ML – A minha leitura é essencialmente ideológica. Sou intrinsecamente um conservador, do ponto de vista político. E como os bons conservadores, acredito que a sociedade não se esgota no governo do povo e pelo povo e num processo eleitoral.

De acordo com a tradição liberal inglesa e americana, acredito muito no funcionamento dos corpos intermédios. Nomeadamente, das ordens profissionais. É também uma questão de equilíbrio de poder. O argumento para esta revisão dos estatutos das ordens, em geral, foi o PRR e as normas da União Europeia. Ora, os cidadãos comuns sabem que as normas da UE só são adotadas quando convêm aos governos.

É este quadro global que me preocupa enquanto cidadão livre. Isto é particularmente verdade em Portugal e nos países latinos em geral: sempre tivemos uma tradição de sociedade civil fraca. Mas as ordens profissionais, os sindicatos, as associações patronais, as associações de doentes, etc., dão um contributo fundamental para o chamado “equilíbrio de poderes” de uma sociedade e claro que isto me preocupa.

HN – Existe, a nível internacional, algum país que tenha adotado um quadro regulatório parecido àquele que se pretende agora implementar em Portugal?

ML – Honestamente, não lhe sei responder. Mas também não tenho essa sedução. Dando o exemplo da assistência às grávidas, o sistema nacional de saúde inglês continua a adotar essa política das midwives. E os resultados da mortalidade infantil e perinatal são os que são. Portanto, o facto de algum Estado da
União Europeia ter adotado estas regras, não me convence da bondade das mesmas para serem aplicadas em Portugal.

HN – Caso não sejam atendidas as vossas propostas, o passo seguinte poderá ser “in extremis”, a criação de uma associação exterior à Ordem dos Médicos, mantendo-se apenas em funções o Bastonário, como ponte de negociação com o Governo, como já foi proposto?

ML – Não vou responder a isso. Acho que vamos tentar ser racionais e razoáveis. Não tenho qualquer dúvida de que o atual Bastonário, o Dr. Carlos Cortes, não precisa de nenhum atestado de competência mas ele tem feito todo o possível para conduzir este processo com inteligência, seriedade e sem histerias mediáticas de dar entrevistas todos os dias, como já aconteceu no passado.

Encarando uma realidade muito objetiva, estamos perante uma situação política, goste-se ou não, de maioria absoluta. E até admitindo que há muita gente que me pode criticar sobre esta perspetiva, acho que é necessário esgotar todas as potencialidades de negociação, com firmeza e bom senso, sem histerias e sem comícios na praça pública. Porque quando as questões começam a ser discutidas na praça pública, há sempre o problema de dizer quem é que ganhou e quem é que perdeu. E há uma questão bem conhecida da diplomacia: a melhor maneira de ambas as partes ganharem é não perderem a face. Acho que o Dr. Carlos Cortes, que apanhou este processo numa fase demasiadamente evoluída e que teve, notoriamente, de andar atrás do prejuízo, porque alguém se esqueceu de discutir este assunto no devido tempo, está a conduzi-lo, na minha convicção, com habilidade e moderação, tendo em consideração a realidade política.

Portanto, até estarem esgotadas as vias de negociação e até percebermos o que vai acontecer na aprovação final do documento sobre o estatuto das ordens, qualquer posição será precipitada. É do conhecimento público que houve um partido político, o Chega, que apresentou um projeto para, em concreto, eliminar o conselho de supervisão. Não sei se vai haver outras iniciativas parlamentares mas penso que tudo isto deve ser tido em consideração para obter, no fim, o resultado final, sem que toda a gente comece aos gritos a dizer: “eu é que ganhei!”. Isso é normalmente um mau princípio.

HN – Uma nota final…

ML – Desejo que estas coisas se possam articular, em nome do país, dos doentes e, obviamente da Ordem
dos Médicos. Eu, que sou um pessimista do ponto de vista geral, penso que ainda há uma réstia de
esperança neste processo do estatuto das Ordens. Vamos ver…

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Entrevista de Adelaide Oliveira