Não obstante o lead acintoso no que respeita a açúcares, não se julgue que encontramos nesta entrevista radicalismo à mesa. Cláudia Viegas, docente na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, é autora em parceria com o chefe de pastelaria Gilberto Costa, do livro “Prazer sem Pecado”, 65 receitas de doces e sobremesas.
É inevitável a pergunta. “Critica-se o açúcar e depois prevarica-se seis dezenas de vezes?”. Uma resposta que é um sim e um não. Sim, todas estas receitas são pecaminosamente doces. “Se é para comer doce, então que se faça com prazer”. Não, estas são propostas para ingerir pontualmente. Isto não obstante todas elas apresentarem uma técnica de elaboração e componentes modificados para irem ao encontro de apetites gulosos mas responsáveis. Meses de trabalho, alguns embates cordatos entre nutricionista e chefe de pastelaria e muitas provas de degustação depois, folheamos estas quase 150 páginas de deleite gustativo. Aqui, nas linhas que se seguem, conversamos sobre elas.
Cláudia, o título do seu livro é “Prazer sem Pecado”. No que respeita aos doces podemos ter prazer sem pecar?
Os doces são sempre um excesso do ponto de vista nutricional. Tenho sempre dificuldade em dizer que uma sobremesa é saudável, porque acho difícil que assim seja. O título escolhido para o livro, “Prazer sem Pecado” e o conteúdo do mesmo passam uma mensagem em relação aos doces. Não deixando estes de o ser, vamos ter prazer no seu consumo, embora num formato mais equilibrado. Vamos torná-los num mal menor.
Qual foi a principal motivação que vos levou a escrever e apresentar este livro?
Esta ideia nasceu há muitos anos da necessidade de se fazer um trabalho com um cariz rigoroso e científico dentro daquilo que se pode fazer numa sobremesa para a tornar mais equilibrada. Isto é, eu e o chefe Gilberto não queríamos pegar em sobremesas e fazê-las porque sim, porque ficam bonitas num livro, mas aplicarmos alguns critérios. A parceria nasceu exatamente daí, das competências do Gilberto na área da pastelaria e da minha vontade em querer reduzir os açúcares, as gorduras e também na melhoria da qualidade da sobremesa. Ou seja, trocamos a gordura por outra melhor do ponto de vista qualitativo.
Não se identificaram com nenhuma obra em portuguesa já publicada dentro deste tema?
Verificámos que há alguns livros no mercado que passam a ideia de sobremesas mais saudáveis, eliminando o açúcar e substituindo por adoçante. Muitas vezes o problema dos adoçantes é que estes não conferem corpo à sobremesa. E, nestes casos, em certas ocasiões, é preciso aumentar a dose de gordura. Aquilo que nós queremos é que as nossas sobremesas sejam de facto pecaminosas, no sentido do prazer, mas mais equilibradas.
Mas há sobremesas saudáveis se não pensarmos estritamente em doces com adição de açúcar. Uma salada de frutas é saudável, ou não?
Tudo depende da forma como fazemos a salada de frutas. Se for apenas uma mistura de fruta cortada, ai aproxima-se de uma sobremesa saudável. Mas, como a fruta está descascada estamos a eliminar a fibra. Acresce que há quem junta açúcar à salada, sumos, bebidas espirituosas.
No caso concreto do açúcar. Em teoria poderíamos dispensá-lo totalmente da nossa dieta?
Do ponto de vista de precisarmos dele e se estivermos a falar do açúcar no sentido alimento, a sacarose, aquele açúcar do pacotinho, de facto não precisamos dele. Precisamos dos açúcares mais conhecidos como hidratos de carbono, do ponto de vista das moléculas complexas que estão noutros alimentos.
Ou seja nunca devemos recorrer aos açúcares processados, refinados. No vosso livro usam apenas açúcar mascavado. É melhor?
Não o fazemos por ser melhor do que o branco, por ser mais saudável. Do ponto de vista nutricional é quase igual ao refinado. Usamo-lo porque acaba por ter um sabor mais intenso e podemos, assim, reduzir a sua dosagem. As pessoas usam o açúcar de coco por ter, por exemplo, menos calorias, mas são todos iguais, ponto final. São açúcares. Todos eles por 100 gramas têm aproximadamente 400 calorias, as diferenças são mínimas. Outra ideia que tem sido muito alimentada é a de se considerar que por ser um açúcar mascavado ou de coco é mais rico em minerais. Não é do açúcar que vamos buscar minerais como o magnésio. Os minerais, vamos buscá-los, por exemplo, à fruta e aos vegetais.
No que respeita aos adoçantes, há vantagem em usá-los face ao açúcar?
Depende. Os adoçantes que existem no mercado estão aprovados pela FDA [Food and Drug Administration]. É estabelecida uma dose máxima admissível de ingestão de adoçante por quilo de peso. Repara, quando eu troco num café o pacote de açúcar por uma drageia de adoçante, se for apenas uma, eu não diria que é necessariamente mau. Mas se beber alguns cafés por dia, se trocar o refrigerante normal pelo congénere “zero calorias”, mais o ice tea normal pelo light e por ai fora, provavelmente quando chegar ao fim do dia estou a ultrapassar a minha dose máxima admissível por quilo de peso. Dose essa que é calculada em função do peso de cada pessoa. Uma mulher pesa menos do que um homem. No caso de uma criança, pior ainda. Ou seja, o adoçante acaba por ser conivente com os problemas que temos focado.
Muitas vezes somos tentados a considerar que substituir os açúcares processados por frutose, nos dá uma margem mais confortável para consumo. É assim mesmo?
A frutose é muito falada como sendo saudável. Isto por ser proveniente da fruta. Há inclusivamente pacotes de frutose à venda e as pessoas adquirem-nos como substitutos do açúcar. Inclusivamente é mais doce e as pessoas reduzem, assim, a quantidade. Mas a frutose, por si, não estando integrada na fruta não é boa. É, por exemplo, muito usada nos sumos de fruta e acaba por ter um efeito negativo no organismo, inclusivamente hepatotóxico [tóxico para o fígado] e associada à obesidade.
Ou seja, é contra as substituições?
Não defendo muito a ideia de substituir o açúcar por adoçante ou o sal por alguma coisa que saiba a sal. Temos, isso sim de aprender a comer. Mas mesmo aqui temos de ver uma questão. Numa população idosa a troca do açúcar pelo adoçante pode ser encarada de forma mais relaxada. A pessoa já tem hábitos de vida mais enraizados. Não vamos tirar o prazer de degustar um doce. Por vezes, como sociedade, somos extremamente penalizadores para o idoso. Se for diabético, ou tiver doenças cardiovasculares, Não o deixamos, mesmo que seja pontualmente, comer o doce. Por contraste, falando num outro grupo etário, somos capazes de chamar para a mesa para comer um doce a criança que está a brincar.
Mas tem de admitir que algo de intrinsecamente associado aos humanos no que respeita ao consumo de açúcar, ou não?
Nós de facto temos uma apetência inata para o doce. Por exemplo, a natural apetência para gostarmos do leite materno. Não obstante tem pouco açúcar, embora a quantidade certa para dele gostarmos.
Uma sobremesa após a refeição é uma prática aberrante?
Não diria tanto. Uma sobremesa deve ser algo delicioso, verdadeiramente pecaminoso [risos], mas com controlo no final da refeição. Uma exceção na nossa dieta alimentar que até nos traz mais prazer e perde a componente banal. Neste contexto e olhando para o nosso livro, o que procurámos é facultar às pessoas uma ferramenta para sobremesas mais equilibradas numa lógica de lhes proporcionar algum prazer comendo um doce. Ainda assim, o subtítulo diz “65 receitas de doces irresistíveis para gulosos com juízo”. Ou seja, não são sobremesas para comer todos os dias. Foram, também, pensadas para pessoas com restrições, nomeadamente diabéticos ou celíacos.
O que é preferível, um Pudim Abade de Priscos, ou uma mousse de chocolate industrial?
Pessoalmente, o Pudim Abade de Priscos. Em relação aos gostos de cada um, aquilo de que mais goste, desde que pontualmente.
Quais são os principais substitutos do açúcar e gorduras mais utilizados que incluíram nesta obra?
Quando estamos a trocar natas por iogurte, optamos por grego porque ainda assim tem mais gordura e cremosidade. Aqui, claramente, estamos a procurar um benefício na redução de gordura. Quando trocamos o açúcar normal pelo mascavado, fazemo-lo pela intensidade de sabor o que nos permite usar menos. Por vezes trocamos a margarina ou a manteiga por azeite, uma gordura com maior qualidade do ponto de vista nutritivo. Neste aspeto o chefe Gilberto teve um papel importante, pois manteve o equilíbrio dos doces no sabor e textura.
Qual foi o maior desafio do chefe Gilberto Costa em termos de execução para manter as características dos doces e sobremesas utilizando as alternativas que propôs?
Os biscoitos, pois precisam de uma gordura pastosa que não pode ser azeite ou óleo, dado a massa ficar muito gordurosa. Tivemos uma ideia, usar o queijo-creme, pastoso, pois tem alguma gordura mas inferior à margarina. Acabou por funcionar muito bem e usámos noutras receitas.
Este é um livro de receitas light?
Definitivamente, não. Light é um conceito de que não gosto. Aliás, na introdução da obra focamos esse aspeto. Se considerar que vou encontrar um livro light e que posso comer estas sobremesas à vontade, torna-se uma obra perversa.
Os lineares dos supermercados estão repletos de light. O perigo espreita por ai…
Julgo que no que respeita ao produtos da indústria, por exemplo as bolachas, esta tem procurado melhorar algumas coisas, nomeadamente trocar o uso de gorduras hidrogenadas por gorduras mais “simpáticas”. Comparo muitos produtos e vejo que a versão light tem mais gorduras face à “normal”. Acresce que a light tem menos açúcares, mas substituídos por adoçantes. Do ponto de vista energético, os light têm mais calorias que a versão clássica. Ou seja, as pessoas muitas vezes são tentadas a comprar produtos por os acharem mais saudáveis e não o são.
Julgo que também terá sido vossa intenção demonstrar que produzir uma receita mais equilibrada não é mais dispendioso nem leva mais tempo. Podes dar-nos dois ou três exemplos disso mesmo?
As receitas são de execução muito simples. O Gilberto é pasteleiro, com uma forte formação técnica e com muita experiência. Quando está a produzir uma receita e se tecnicamente se confronta com um problema, ele facilmente sabe como resolvê-lo. O leitor vai encontrar este trabalho já feito. Nenhuma foto que aqui encontra foi manipulada, todas foram fotografadas logo que produzidas. Tudo isto começou por ser um trabalho teórico, pegámos em receitas do Gilberto e analisámo-las uma a uma, muitas mais do que as que encontramos no livro. Havia que perceber o que poderíamos modificar nos ingredientes e como reduzir quantidades. E, uma a uma, fomos executando-as e provando-as. Algumas resultaram à primeira tentativa, outras não.
No vosso livro há uma clara alusão à responsabilização da restauração pública para estas questões. Ou seja, na generalidade encontramos sobremesas excessivas?
Na restauração portuguesa serve-se bem e come-se bem. Não estou a dizer do ponto de vista nutricional, mas da gastronomia. A minha desilusão prende-se com as sobremesas. Não se prima nesta área. Por outro lado, as doses de sobremesas são significativas e não são de todo equilibradas. A generalidade dos estrangeiros quando chega a Portugal considera as nossas sobremesas excessivamente doces. Apesar de este ser um livro para o público em geral sempre tivemos também como foco a restauração até porque estamos ligados à Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, uma entidade formadora nessa área.
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