O parlamento francês aprovou, recentemente, uma lei que permite aos pacientes terminais um fim de vida tranquilo e indolor, mas rejeita a ideia de suicídio assistido. É uma lei que possibilita a aplicação de uma sedação profunda e continuada que permite assistência médica no fim da vida de forma digna, autónoma e responsável, através «do uso de fármacos que aliviam sintomas refratários causadores de sofrimento intolerável», esclarece Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, que elogia o diploma. «Encaro-o como um passo extraordinariamente positivo por dois motivos», afirma em declarações à revista Prevenir.

«Em primeiro lugar porque contribui para a humanização da medicina e para a dignidade humana no momento da morte», refere o responsável máximo da instituição. «Esta lei não apenas permite a sedação profunda para aliviar o sofrimento, como aceita o princípio da autonomia da pessoa, porque a sedação depende da vontade autónoma do doente. Em segundo lugar porque legaliza o testamento vital enquanto respeito absoluto pela vontade previamente manifestada», acrescenta ainda.

De acordo com o diploma, os médicos passam a ser obrigados a respeitar a recusa do doente face a terapias mais agressivas, desde que o paciente o tenha declarado antecipadamente. As exceções existem em caso de emergência e durante o período de avaliação geral do doente. «Até agora em França, ao contrário de Portugal que tem uma lei moderna na matéria, o testamento vital era meramente indiciário e não vinculativo, pelo que na prática era de utilidade duvidosa. Agora a França tem uma lei adequada aos valores defendidos pela maioria das sociedades civilizadas», refere.

A distinção face aos cuidados paliativos é outra das diferenças. «Existem doentes terminais para os quais não há outra terapêutica senão os cuidados paliativos, medidas ativas, globais e integrais que se prestam aos pacientes cuja afeção não responde ao tratamento curativo, pretendendo-se que doente e família obtenham a melhor qualidade de vida possível. Neste caso, o doente está geralmente consciente, ao contrário da sedação profunda e contínua, mas que pode ser utilizada como uma ferramenta no âmbito dos cuidados paliativos», explica Rui Nunes.

O enquadramento ético

Em Portugal, via Testamento Vital, esta prática é possível «desde que exista consenso entre os profissionais de saúde e o consentimento da família do doente. Já a lei francesa propõe o envolvimento do paciente na tomada de decisão», salienta Rui Nunes. «A lei francesa tal como a portuguesa aceitam hoje dois princípios, que a pessoa consciente e autónoma possa efetuar escolhas em matéria de cuidados de saúde, através da obtenção de consentimento informado e esclarecido. Isto é válido para a  sedação paliativa como para qualquer outra modalidade de tratamento», salienta.

«Mais ainda, ambas as legislações permitem hoje que qualquer pessoa veja a sua vontade respeitada através do testamento vital. Em termos práticos pode afirmar-se que a lei francesa alinhou com a portuguesa nesta temática», refere Rui Nunes. No entanto, esta nova abordagem levanta dúvidas face à ideia de suicídio assistido. O presidente da Associação Portuguesa de Bioética refere a existência de um «consenso ético que apenas pondera a utilização da sedação profunda e continuada em doentes terminais, sendo que o tempo até à morte pela doença deve ser igual ao tempo até à morte pela sedação paliativa».

«Devem existir sintomas graves e severos, sem tratamento adequado na perspetiva do doente. A pessoa não quer morrer mas, sim, rejeitar o sofrimento», alerta o especialista. «Legalizar o Testamento Vital foi um dos maiores avanços civilizacionais da última década em Portugal, porque se reconhece a possibilidade do exercício de um direito humano fundamental que é a possibilidade de se fazer escolhas em saúde», considera ainda o responsável.

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O prazo de validade do Testamento Vital

Desde julho de 2014 que em Portugal é possível estabelecer os cuidados de saúde que um cidadão quer ou não receber no caso de se encontrar num estado de incapacidade de expressar vontade. A diretiva antecipada de vontade ou Testamento Vital, como também é conhecido, estabelece as medidas terapêuticas aplicáveis a um doente terminal ou vítima de acidente. Revogável e renovável, tem validade de cinco anos e pode ser solicitado através do Portal da Saúde. Um ano após a sua instituição, Rui Nunes arrisca um primeiro balanço.

«O primeiro ano de funcionamento do RENTEV, Registo Nacional do Testamento Vital, demonstra que os portugueses têm níveis de literacia em saúde tão elevados como qualquer outro povo europeu. Mas mostra, também, que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) respondeu com rigor e prontidão, tendo o SNS um dos melhores sistemas informáticos de toda a União Europeia. Em suma, devemos estar orgulhosos pela existência de uma lei moderna e justa e pelo modo como o sistema reagiu, permitindo que nenhum português fique excluído da possibilidade de efetuar um testamento vital», conclui.

Texto: Carlos Eugénio Augusto e Luis Batista Gonçalves com Rui Nunes (presidente da Associação Portuguesa de Bioética)