«Todos devíamos seguir um sonho», afirma hoje, convicta. O tempo que passou imobilizada, sob a ameaça de não voltar a andar, deu a Carla André energia para correr, a sua maior paixão. A sua última proeza levou-a a percorrer 250 quilómetros de deserto na Marathon des Sables, uma das provas mais duras do mundo. O seu lema é viver intensamente cada minuto da vida. «Tudo mudou há dez anos [2005] quando tive um grave acidente de automóvel», recorda a gerente bancária de 37 anos.

«O carro era novo e eu tinha acabado de ser promovida a gerente. Naquele dia, a caminho do ginásio, despistei-me e fraturei uma vértebra, muito próximo da zona nervosa da coluna, o que me obrigou a permanecer imobilizada durante duas semanas, uma vez que havia o risco de provocar lesões a nível neurológico e motor e ficar paraplégica. O tempo que passei no hospital a precisar de ajuda para as necessidades mais básicas mudou a minha forma de ver a vida», assegura.

Hoje, encara algumas das situações mais comuns de outra forma. «Agora, todos os dias, ao sair do trabalho, penso que poderei não voltar», desabafa. Carla André participou na primeira maratona em 2011 e, desde então, entre maratonas e ultramaratonas, já participou em 39 provas. A mais recente foi a Marathon des Sables, no Saara, em abril de 2015. Terminou no 23º lugar da classificação geral feminina e foi a primeira mulher a concluir a etapa Charity, prova com fins caritativos. «Encaro isto de forma positiva. Tenho de viver o dia de hoje, muito. Vejo a vida de outra maneira e sou muito mais feliz», assegura.

A necessidade de sentir-se livre

«Para mim, a corrida é liberdade e não consigo imaginar a minha vida sem isso», descreve Carla André. «Comecei por correr cinco minutos.  Na vez seguinte, quis correr um pouco mais e quando cheguei aos dez minutos fiquei muito feliz. Há cinco anos comecei a correr mais a sério. Lembro-me perfeitamente do que senti depois de correr dez quilómetros.  Foi horrível, pensei que ia morrer», refere.

«Em 2012 fiz a primeira ultramaratona [43 quilómetros entre Melides e Tróia pela praia]», relembra. «Nessa altura, algumas pessoas disseram-me que ainda ia fazer a maratona do deserto», afirma ainda. A ideia ficou-lhe desde essa altura mas achava que não ia conseguir. No ano passado, ao concluir as 100 milhas na Serra da Estrela [fez 166 quilómetros em 40 horas], ganhei a confiança necessária», revela.

Preparada para o desafio

A iniciativa foi marcante. «A maratona no deserto foi mais do que uma prova, foi uma experiência de vida. Implicou correr mais de 250 quilómetros num terreno acidentado e com cerca de dez quilos às costas. Até o treino é diferente. A preparação arrancou a sério em novembro, quando comecei a fazer treinos com a mochila», descreve.

«Carregava-a com o saco-cama, caneleiras e latas de sumo para fazer peso. Os seis quilos iniciais custaram muito e depois cada vez menos. Para me preparar para o calor que iria enfrentar, corria com muita roupa vestida. O corpo foi-se adaptando. Tive de aumentar o número de quilómetros. Numa semana fazia 100. Cheguei a atingir os 140», diz, visivelmente orgulhosa.

Além disso, fazia treino funcional no ginásio para fortalecer o corpo. «É um desafio muito duro, que exige muita dedicação. Como trabalho e, por vezes, tenho horários complicados, poderia encontrar 10.000 desculpas para não cumprir, mas tinha um plano de treino e ia segui-lo à risca», confessa.

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A força psicológica que o esforço exige

«A parte psicológica neste tipo de prova pesa mais de 50 por cento. Vale mais do que as pernas. Se houver motivação, para além da preparação física, o corpo vai reagindo. Pensar no sucesso ajuda. Nesse aspeto, os treinos na praia de Carcavelos ajudaram-me muito, se bem que percorrer 35 quilómetros com uma mochila às costas numa praia de 700 metros a abarrotar de gente foi terrível. A cada quilómetro que fazia, pensava no que iria sentir ao chegar», relembra.

A necessidade de superar obstáculos foi um processo de mentalização constante. «Durante a maratona tentei gerir o esforço e focalizar muito. A minha cabeça estava sempre preparada para o pior e ia aceitando o que encontrava. Na primeira etapa, depois de 30 quilómetros, vimos o acampamento ao fundo e pensámos que é já ali, mas apanhámos vários quilómetros de dunas e a progressão foi muito lenta», afirma Carla André.

«Na etapa mais longa, de 92 quilómetros, faltavam ainda 20 quilómetros quando veio o cansaço. Ia sozinha  e, ainda por cima, a bateria falhou e fiquei sem música», lamenta. Nessa altura, agarrou-se às suas crenças mais profundas. «Rezei três terços baixinho e senti que me ajudou.  Estava a rezar pelas pessoas que não conseguem correr e que não têm saúde. Deu-me força», acredita.

As emoções no deserto

A visão que tinha das áreas desérticas era diferente da que tem hoje. «Ao contrário do que se pensa, o deserto não é só areia», desabafa Carla André. «Há montanhas e dunas, algumas a pique em que temos de avançar quase de gatas. Estamos longe de tudo e é preciso muito cuidado. É impossível não sofrer ao subir montanhas com 40º C de temperatura, levando com o vento e areia na cara. Mas não é essa a imagem que recordo», garante.

«Foi uma experiência maravilhosa. Lá, temos de gerir muito bem tudo o que temos, sobretudo em termos de comida, de água e de esforço físico. E isso ajuda-nos a dar mais valor às coisas. Não sou uma atleta, sou uma pessoa comum, tenho uma vida normal, uma profissão. Com dedicação e treino, qualquer pessoa pode fazê-lo. É tão bom ter uma meta e definir os passos para a atingir. Não é só correr por correr, é abraçar um desafio e seguir um sonho», assegura.

O plano que vai deixar qualquer um preparado para correr

O esquema de treinos de Carla André, definido pela equipa do O2 LifeCenter, ginásio onde treina, inclui:

- Ginásio

O plano seguido pela corredora inclui aulas de TRX, uma modalidade em que se trabalha o corpo todo, com maior incidência nos braços, nas pernas e nos glúteos, além de exercícios com kettlebell, que fortalecem o tronco, preparando as costas para a carga a suportar na prova.

- Corrida

Pressupõe, no mínimo, 100 quilómetros semanais, sobretudo na praia. No caso de Carla André, a maioria dos treinos eram feitos com uma mochila para a preparar para a maior carga que a logística da prova em que participou exige.

- Em casa

O plano inclui um esquema de exercícios de fortalecimento abdominal cerca de três a quatro vezes por semana.  

- À mesa

É recomendada uma alimentação à base de hidratos de carbono de combustão lenta para manter a energia necessária aos treinos, legumes e fruta em abundância e proteína proveniente de carne pouco gorda (maioritariamente branca) e peixe. Suplementos de proteína, aminoácidos (BCAA) e glutamina que permitem uma rápida recuperação e previne o desgaste físico também são aconselhados.

Texto: Manuela Vasconcelos com Luis Batista Gonçalves (edição internet), Artur (fotografia) e Sara Castro (maquilhagem e cabelos)