Quase 30 anos depois, o seu rosto ainda continua a ser associado ao anúncio televisivo da Telecel, em que interpretava um pastor. 'Tou Xim? É p'ra mim'?', recorda-se? Mas Maria João Vaz é agora uma mulher trans e decidiu escrever um livro, 'Memória de uma Epifania e Outras Histórias', publicado em setembro deste ano, no qual conta a sua história, incidindo nas dificuldades por que foi passando ao longo das primeiras cinco décadas da sua vida, período em que procurou perceber quem era de verdade.

Em entrevista ao Fama ao Minuto, a atriz falou sobre a sua epifania, o apoio que gostava de ter sentido da família, e de como a forma de olhar para si própria e para o mundo mudou desde que descobriu quem realmente é.

De onde surgiu a ideia de escrever o livro?

Eu fui sempre uma trabalhadora precária toda a vida, foi sempre complicado ter trabalho, nunca fiz parte de grupos. Uma pessoa de uma comunidade que ainda não é aceite e compreendida na totalidade [LGBTQIA+] gera sempre algum desconforto. Em 2022 tinha trabalhado no início do ano no Burger King, depois ‘foram-me buscar’ para um espetáculo com o Teatro Praga, que era para ser em junho em Lisboa e julho no Porto. Não fomos ao Porto, porque uma colega teve Covid, pelo que fiquei desempregada a partir de junho.

A falta de trabalho resultou num livro, que acaba por ser um objeto artístico, é a minha criação

Fiz audições, castings e entretanto o dinheiro foi começando a ir embora… Eu não conseguia encontrar trabalho [na área da representação] e pensei que a única forma, já que ninguém me convidava, era eu fazer o meu próprio espetáculo. Convidei o dramaturgo do Teatro Praga para me escrever um texto, mas ele disse que não que não aceitaria, porque escreve apenas sobre a sua realidade, uma realidade 'hétero-cis' branca, mas sugeriu-me que escrevesse eu um texto. Comecei a escrever, mas cheguei à conclusão de que aquilo não era 'representável' tal como eu tinha escrito, que tinha evoluído para a minha autobiografia e então decidi que passava a ser um livro.

A falta de trabalho resultou num livro, que acaba por ser um objeto artístico, é a minha criação. No fundo, é uma espécie de um testamento para as minhas filhas, mas não só, pode ser útil para outras pessoas pessoas que estejam a passar por situações parecidas.

A Maria João dedica uma grande parte do livro a falar sobre a incompreensão que sentiu da família, nomeadamente dos seus pais quando era mais nova e à medida que foi crescendo. Acha que eles não tinham o conhecimento necessário para a compreender?

Acho que foi só mesmo desleixo, porque houve sinais. Como eu conto no livro, a minha mãe levou-me aos três anos a um psiquiatra amigo da família, que fez um exame devido a alguns 'sintomas' que eu tinha: Não dormia, automutilava-me, roía as unhas… O diagnóstico foi hipersensibilidade. Não é nenhuma doença, é uma condição, eu apreendo o mundo exterior de uma forma diferente da maioria das pessoas, ao nível dos sentidos e das emoções é tudo mais apurado. Isso explica porque é que eu não gosto do caos, não gosto de ruídos estridentes e sofro muito com o sofrimento das outras pessoas, mais do que o normal.

Na verdade, depois da minha epifania, tentei interpretar toda a minha vida para trás e descobri que a automutilação pode ser um sintoma de disforia de género. A minha convicção é de que eu nasci com um cérebro feminino. Tal como as pessoas podem nascer com os olhos verdes. Desde muito pequena que senti que havia uma incongruência.

Em relação aos meus pais, o meu pai demitia-se muito e a minha mãe também, não havia muita comunicação a nível do que sentíamos. Quando andava na escola, houve um ano que tirei tudo dois em todos os períodos, o que era estranho para uma pessoa que não aparentava ser imbecil. Aquilo era um grito de alerta, de que algo não estava bem.

Enquanto mulher sinto-me muito feliz, tenho as minhas filhas, tenho amigas, estou muito feliz. Tudo o que possa acontecer no futuro acho que só pode ser melhor do que a vida foi até aqui

No seu livro diz que perdeu 50 anos à procura da Maria João, à procura de si própria. Como é que vê o futuro?

Com uma felicidade absoluta. É o que eu sinto, mesmo não tendo trabalho há alguns meses. Enquanto mulher sinto-me muito feliz, tenho as minhas filhas, tenho amigas, estou muito feliz. Tudo o que possa acontecer no futuro acho que só pode ser melhor do que a vida foi até aqui.

O que é que sentiu quando contou às suas filhas que é uma mulher trans? Alívio?

Quando contei à minha filha mais velha não era suposto ter-lhe contado naquele momento. Ela perguntou-me porque é que eu me tinha separado da namorada que tinha e esse foi o pretexto para lhe contar. Não é uma questão de alívio, é uma obrigação contar qual é a minha verdadeira realidade a uma filha minha. Eu quero que elas saibam quem eu sou de verdade. O facto de não estarmos a ser coerentes com a nossa vida começa a fazer ‘faísca’ no cérebro e ele começa a não funcionar bem, porque nós não estamos a ser verdadeiros. Estava a levar duas vidas, uma visível para as pessoas, que não era eu, e o meu ‘eu’ verdadeiro, que levava quase como um hobby secreto. E, claro, não estava a conseguir lidar com isso.

Quando eu tive a minha epifania para mim era óbvio que eu ia abrir-me às minhas filhas porque eu não queria contradições.

Quando alterou os seus registos precisou de mudar de nome. Como é que decidiu que se chamaria Maria João?

Eu mantenho um dos nomes originais. Achei que ia ser simpático para a minha mãe. Mas tinha de arranjar outro nome que ficasse bem com aquele e gostei de Maria João, acho bonito, cheio e identifico-me. Ainda pensei noutras opções, mas esta foi a que gostei mais e assim ficou.

Todos os trabalhos que eu faço agora - um filme, uma novela, uma série - que estão três, quatro meses ou mais em gravações, a mim convidam-me para dois dias para poderem pôr o ‘carimbo’ de que foram inclusivos

Acha que se tivesse nascido nos anos 1990 ou 2000, teria sido mais rápido perceber-se a si própria?

Sim, acho que sim, com certeza. Porque para já há presença nas escolas. Hoje em dia já aparecem coisas na televisão, filmes e séries. Os meus pais também provavelmente teriam acesso a isso. Portanto, acho que sim, seria muito mais rápido.

Sente que é mais difícil arranjar trabalho desde que as pessoas não olham para si como cis?

Acho que é igual. A questão do trabalho é que está na ordem do dia ser-se inclusivo. Então acho que às vezes, para se parecer moderno, as pessoas querem ser mais inclusivas, querem apostar mais na diversidade. Mas acredito que grande parte das pessoas o faça por uma questão de oportunismo e não genuinamente porque gostam daquela pessoa como atriz. No entanto, todos os trabalhos que eu faço agora - um filme, uma novela, uma série - que estão três, quatro meses ou mais em gravações, a mim convidam-me para dois dias para poderem pôr o ‘carimbo’ de que foram inclusivos.

Em 2020, tive uma proposta da produtora de novelas SP Televisão, em relação a uma novela que já estava no ar. Propuseram-se a escrever um papel especialmente para mim, sobre a minha realidade, e iam introduzir essa personagem nova na telenovela. E perguntaram se eu aceitava, disseram que seria um projeto de longa duração, até ao fim da novela. Eu disse que sim. Fiquei muito contente, precisava de trabalhar. Disseram-me que essa personagem seria escrita, mas que só faltava uma coisa: A aprovação da estação de televisão. E a estação de televisão disse que não.

Se calhar, achou que as pessoas não iam gostar. Eu acho que as pessoas estão muito abertas e querem ver coisas diferentes. Até podem ter um olhar crítico à primeira vista, mas depois vão perceber. As pessoas temem o que não conhecem. E, portanto, a partir do momento em que eu aparecesse ali na televisão, entrasse pela casa delas todos os dias e elas vissem aquela personagem, a viver, a apaixonar-se, etc., poderia dar [à comunidade trans] alguma visibilidade.

Recorda-se de alguma situação recente que a tenha chocado?

Sim, aquele diálogo do Miguel Sousa Tavares com o José Alberto Carvalho. Foi perfeitamente chocante, pareciam dois ‘velhotes’ a discutir uma rapariga de 28 anos daquela forma, sem qualquer pudor. Não foi apropriado dizerem aquilo e logo em prime time, enquanto paralelamente eu e pessoas como eu nos fóruns próprios tentamos passar uma mensagem positiva sobre a comunidade. Aquelas pessoas em 10 minutos estragaram o árduo trabalho de outras pessoas porque desaprovaram, condenaram e ridicularizaram uma rapariga de 28 anos [Marina Machete, vencedora do concurso Miss Portugal], que eventualmente teve um percurso com algum sofrimento.

Comecei a pensar em crianças, adolescentes ou jovens adultos que estão em casa com as suas famílias e está aquilo a passar na televisão, veem os pais a rir e a acompanhar o que aquelas pessoas estão a dizer e podem perpetuar os mesmos comportamentos ou sentirem-se mal. Não achei correto.

Depois da epifania fiquei certíssima e convicta de que sabia o que é que queria, qual era o meu caminho, sentia-me completamente feliz e cheia de luz

Sente que é respeitada nos diferentes espaços que frequenta?

Sim, sim, completamente. Infelizmente as mulheres estão muitas vezes sujeitas a comentários e ‘piropos’ e eu também os recebo, mas, de uma forma geral, sim, sou respeitada.

A Maria João falou bastante no livro da pessoa que estava consigo quando se deu a sua ‘epifania’ – o momento em que percebeu realmente quem era - que acabou por ser uma pessoa muito importante pelo apoio que lhe deu inicialmente, mas depois acabou por se afastar. Isso fê-la pensar em algum momento que poderia não estar a tomar o caminho certo?

Depois da epifania fiquei certíssima e convicta de que sabia o que é que queria, qual era o meu caminho, sentia-me completamente feliz e cheia de luz. Foquei-me muito no meu percurso e esperei que a pessoa que estava comigo me seguisse e isso não aconteceu. Pus em causa todo esse meu caminho porque tinha estado toda a vida muito só e aquela pessoa foi a que eu mais gostei na vida e a que mais me ajudou.

E sente-se pronta para amar sem reservas, sem medos?

Sim, claro, não tenho medo de nada. O amor faz parte da vida e a relação com as pessoas, física e emocional, é uma necessidades vital. Sou uma pessoa muito emotiva e romântica.

Quem é, hoje em dia, a Maria João?

A Maria João é uma pessoa muito empática, principalmente, bastante sensível também, mas muito feliz e com uma vontade enorme de fazer coisas, criar e exprimir-se artisticamente.