“Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Ponto final, parágrafo. Bola de Ouro em 2008, 2013, 2014, 2016, 2017. Ponto final, parágrafo. Melhor marcador da Seleção Portuguesa, melhor marcador da história do Real Madrid, melhor marcador da Liga dos Campeões, melhor marcador de tudo e mais alguma coisa. Ponto final, parágrafo”. Nos capítulos iniciais do livro Cristiano Ronaldo, As Histórias que Faltavam (edição Manuscrito) Rui Miguel Tovar, autor da presente obra, sintetiza alguns dos feitos do campeão português. Mote para se lançar em inúmeras histórias em torno do jogador com o número sete na camisola, da infância à Arábia Saudita.

O autor recorda um passado que remonta aos anos de 1990, quando um miúdo madeirense ruma ao Sporting por causa de uma multa de 5 mil contos, era gozado por ser franzino e falar de maneira “estranha”. “Vezes sem conta terminou o dia ao telefone com a mãe, de quem morria de saudades. Só que ser obstinado foi sempre uma característica sua: foi por isso que treinou mais do que os outros, que começou a enfardar dois pratos de sopa antes de cada refeição para ‘ganhar corpo’ e, antes mesmo de ser adolescente, já vencia campeonatos”, recorda-nos Rui Miguel Tovar.

E o resto? O resto é história. Ou melhor, histórias: muitas delas inéditas, muitas delas reveladas pela família e amigos, agora reunidas em livro. Rui Miguel Tovar, jornalista e comentador desportivo, conta-nos tudo nesta biografia não autorizada de CR7, que vai desde a infância até à Arábia Saudita.

De Cristiano Ronaldo, As Histórias que Faltavam publicamos o excerto abaixo.

Introdução

O sete, o número sete. É uma viagem só de ida, preparese.

Começo a pensar, sem adormecer, e chego à conclusão de que o sete é o número da vida. A origem do calendário atual. A renovação celular do corpo humano (de 7 em 7 anos). Os sete orifícios do corpo humano.

A plenitude, a ordem perfeita. A medida reguladora da coesão universal: sete planetas, sete divindades, sete metais, sete notas musicais (com sete escalas, sete pausas e sete valores), sete cores do arco‑íris, sete dias da semana, sete chakras, sete pecados capitais (soberba, ira, inveja, luxúria, gula, avareza e preguiça) e sete virtudes que lhe são contrapostas (fé, esperança, caridade, prudência, justiça, força e temperança).

O sete é o símbolo da totalidade perfeita. O sete é o número da conclusão cíclica e da renovação positiva, evocando todos os conjuntos perfeitos. O sete é um número com uma simbologia bíblica muito forte, figurando 77 vezes no Antigo Testamento em momentos diversos: o candelabro judeu tem sete braços (o símbolo sagrado do judaísmo é o memorá, um candelabro com sete braços, indicando os sete dias da semana); os sete céus; Salomão construiu o templo em 7 anos; após a tomada de Jericó, sete sacerdotes com sete trombetas deveriam, no sétimo dia, dar sete vezes a volta à cidade; Eliseu espirra sete vezes, e a criança ressuscita; um doente mergulha sete vezes no Rio Jordão e sai curado; José sonha com a profecia das sete vacas gordas e as sete vacas magras, e 7 anos de fartura e 7 anos de miséria se seguiram; sete animais puros de cada espécie seriam salvos no dilúvio. O sete representa também os sacramentos da Igreja Católica (batismo, confirmação, eucaristia, penitência, união dos enfermos, ordem e matrimónio) e as obras da misericórdia (dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; dar pousada aos peregrinos; assistir aos enfermos; visitar os presos; cuidar dos que partem pela morte).

O sete é tudo isso e também Ronaldo.

Sim, leu bem, R‑O‑N‑A‑L‑D‑O (7).

Em 2007, no sétimo ano do século, o que se torna ele finalmente? C‑a‑m‑p‑e‑ã‑o.

De quê? Da P‑r‑e‑m‑i‑e‑r.

Treinado por quem? S‑i‑r A‑l‑e‑x e Q‑u‑e‑i‑r‑o‑z.

E onde é que ele joga? D‑i‑r‑e‑i‑t‑a.

E o que faz ele em campo? D‑r‑i‑b‑l‑e‑s.

E mais o quê? T‑r‑u‑q‑u‑e‑s.

E vestia que número? Sete.

De quem? B‑e‑c‑k‑h‑a‑m, C‑a‑n‑t‑o‑n‑a e George Best, mais conhecido

como T‑h‑e B‑e‑s‑t.

Quem era o seu melhor amigo no plantel? G‑a‑b‑r‑i‑e‑l (Heinze).

A quem é que ele ganhou o campeonato? C‑h‑e‑l‑s‑e‑a.

Quem contribuiu para a festa antecipada? A‑r‑s‑e‑n‑a‑l (1–1 com Chelsea).

Um dia depois, o Man United ganhou a quem? M‑a‑n C‑i‑t‑y.

Como? P‑e‑n‑á‑l‑t‑i.

De quem? Bolas, mas não está mesmo à vista de toda gente? R‑O‑N‑A‑L‑D‑O.

E vai jogar para onde? E‑s‑p‑a‑n‑h‑a.

E quem é, quase invariavelmente, o jogador que o vai abraçar primeiro em todos os golos? M‑a‑r‑c‑e‑l‑o.

Quem é o seu companheiro de ataque? H‑i‑g‑u‑a‑í‑n.

E o outro? B‑e‑n‑z‑e‑m‑a.

E quem é que lhe fez mais assistências para golo? D‑i M‑a‑r‑í‑a.

E onde joga agora? A‑l N‑a‑s‑s‑r. I rest my case.

Ronaldo, Cristiano Ronaldo. É uma viagem só de ida, prepare‑se.

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Aos 11 anos, campeão pelo Nacional

Memorize bem isto aqui.

À baliza, Tiago Goes (depois, Faria). Na defesa, o lateral‑direito é o Bruno; os centrais chamam‑se Magno e Sampaio (primo do guarda‑redes e capitão de equipa); o lateral‑esquerdo é o Aleixo. No meio‑campo, Gonçalinho está no centro; Igor é o número 7 como extremo‑direito; Vieirinha, o 8 como extremo‑esquerdo.

Na frente, Décio é o avançado‑centro, o pinheiro, número 11, com o cabelo à anos 80. Ligeiramente atrás, o 10, Fábio, mais conhecido por Futre. Vagabundo até mais não, o 9 é Ronaldo.

Exato, Cristiano Ronaldo, camisola 9. Estamos em 1995–96, e esta é a equipa do Nacional, campeão regional de infantis B da AF Madeira. Eis o primeiro título da carreira de Ronaldo, aos 11 anos. A tática é simples e só tem duas variantes para chegar ao golo: ou passam a bola ao Ronaldo, e ele resolve com mil e uma fintas, ou Ronaldo sofre falta à entrada da área ao enésimo drible, e aí é Futre quem veste a pele de herói através de perfeitos livres diretos.

Por falar em heróis, o que é feito de todos eles? De onze, só três vivem fora da Madeira. O guarda‑redes Tiago Goes é um cromo do melhor, puro entretenimento na RTP. O lateral‑esquerdo, Aleixo, trabalha no Porto, e, já se sabe, o número 9, Ronaldo, ainda é uma incógnita. Esse campeonato de 1995–96, em sistema de todos contra todos, é renhido até ao fim. O Marítimo, crónico campeão, parte como favorito. Lá atrás, bem atrás, Nacional, União e Câmara de Lobos aparecem como alternativas assim‑assim ao domínio intenso dos maritimistas. Dos três rivais, o Câmara de Lobos é o clube mais tramado — quem joga no seu campo sofre a bom sofrer, com as pedras lançadas pelas mães dos jogadores ao adversário. Verdade, é ler para crer. Lá, todos os guarda‑redes jogam à Neuer, bem fora da área, para evitar qualquer tipo de distrações (e, vá, lesões).

O Nacional arranca a época com dois jogadores dos infantis A e mais dois reforços: um é Futre, e o outro é Ronaldo. Se Futre se impõe pela categoria ímpar na marcação de livres diretos, já Ronaldo é outra história. Conta Tiago Goes: “No primeiro treino, ali no campo pelado da Escola Jaime Moniz, aparece ele, muito pequeno, muito magrinho, um chavelha [que fala um madeirense carregado], e nós a gozar com ele. No fim do treino, peladinha. Ele agarra na bola e finta uns cinco ou seis. Ta‑ta‑ta. Já com os trejeitos de hoje, o de passar o pé por cima da bola e tudo. Muito rápido, muito veloz. E nós, uns para os outros, mas quem é este gajo? Na segunda vez em que ele tocou na bola, outra vez o mesmo baile. Ta‑ta‑ta. A partir do segundo treino, já ninguém gozou com ele. Começámos a conhecê‑lo melhor, e conquistou o nosso respeito num piscar de olhos”.

Rui Miguel Tovar nasceu em 1977 e escreve profissionalmente sobre futebol desde 1995, quando começou a trabalhar no Record. Desde então, colabora regularmente com o Observador, a Sábado, a RTP, a Rádio Estádio ou o MaisFutebol, além de participar como convidado especialista em quase todos os outros órgãos de comunicação social portugueses. Autor de dezenas de livros, esta é a sua segunda biografia - a primeira foi de Aurélio Pereira, pai desportivo de Cristiano Ronaldo no Sporting

Ronaldo é, já nessa altura, um obcecado pela competitividade. Seja a jogar futebol ou matraquilhos. Se perde, chora. Se leva na cabeça do treinador, chora. Se gozam com ele, chora. E, claro, no seu íntimo, jura vingança no quadradinho seguinte. Em forma de golo, como é óbvio. Há jogos inesquecíveis, exibições do arco‑da‑velha, espectadores boquiabertos. E sempre com a presença do pai, Dinis Aveiro.

No dia mais importante do ano, jogo contra o Marítimo. Só a vitória interessa ao Nacional para garantir o título. Acaba 1–0. O golo é de bola parada, livre direto. Futre, pois claro. A festa é imensa. Ou não: os pais dos jogadores do Marítimo, em larga maioria na bancada improvisada do campo de treinos na Choupana, arremessam pedras. E voltam a fazê‑lo na direção do autocarro do Nacional, conduzido pelo inimitável senhor Paulo.

Tiago Goes relembra o dia seguinte ao do jogo:

“Tinha medo de que o Ronaldo e um outro, por serem mais pobres, roubassem a malta no balneário. Ironia do destino, somos campeões, e o Nacional prometeu oferecer‑nos o equipamento do jogo da final. No dia seguinte ao tal 1–0 com o Marítimo, era o último treino da época, e todos estávamos a ver que ninguém nos ia oferecer o que quer que fosse. Então, os jogadores diziam entre si que iam roubar o equipamento de treino. O equipamento, não; só a camisola. Na altura, era muito menino e tinha medo de roubar, de fazer coisas à socapa. Então saí do treino sem nada. O pessoal safou‑se todo e perguntou‑me se me tinha safado. Para não dar parte de fraco, disse que sim, que a camisola de treino estava comigo. O Ronaldo, não sei como, topou a mentira e chegou‑se ao pé de mim: ‘Tás parvo? Leva lá a merda da camisola?. Tinha roubado a camisola por mim. Grande gesto.”

(Lembra‑se do início do capítulo, quando se diz “Tiago Goes, depois Faria»? Pois bem, o Tiago parte o braço e nunca mais recupera o lugar. Culpa de quem? Rooooonaldo. Conta Tiago: “Num treino na escola, no cimento, ele fez‑me um remate, e eu pus mal a mão. Olha, tramei‑me”.)

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A dívida de Franco e a chegada ao Sporting

Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Ponto final, parágrafo.

Bola de Ouro em 2008, 2013, 2014, 2016, 2017. Ponto final, parágrafo.

Melhor marcador da Seleção Portuguesa, melhor marcador da história do Real Madrid, melhor marcador da Liga dos Campeões, melhor marcador de tudo e mais alguma coisa. Ponto final, parágrafo.

E toda a aventura começa com um nome que não tem nada que ver com o de Ronaldo. Chama‑se Franco, o culpado: Pedro Filipe Antunes Matias Silva Franco, eis o nome completo. Nasce em Abril de 1974, a uma semana da Revolução. Joga no Sporting de 1982 a 1991, faz toda a formação no antigo José Alvalade, demolido em 2003, e, quando dá o salto para os seniores, tem de ir pregar para outra freguesia e escolhe o Odivelas. Duas épocas depois, assina pelo Nacional, em troca de um contrato profissional.

O Odivelas faz queixa à Federação Portuguesa de Futebol e ganha o caso, a multa é de 5 mil contos de réis. Como o Nacional já inscrevera Franco e não tinha essa verba para pagar a multa, fala com Marques Freitas, presidente do núcleo sportinguista da Madeira e também sócio do Nacional, e pede‑lhe para se chegar a uma base de entendimento com o Sporting. Marques de Freitas assume o desafio sem rodeios e liga ao seu grande amigo Aurélio Pereira, já então um mestre da formação, reconhecido internacionalmente pelo lançamento de figuras do nosso contentamento, como Futre e Figo. Palavra puxa palavra, Marques de Freitas fala‑lhe de um miúdo com um valor acima do normal. Palavras de Aurélio Pereira: “Quando o Dr. Marques de Freitas falou comigo, até mais pela consideração que tinha pelo homem, disse‑lhe que só havia uma solução: o Nacional pagava a passagem ao miúdo, ele ficava em Alvalade uma semana, nós observávamo‑lo, e depois logo se via. Lá veio ele, com o padrinho. Ao segundo dia, já sabíamos que o queríamos.

Cristiano Ronaldo
créditos: Manuscrito

Tinha traquejo com a bola, velocidade, imaginação. Mas, acima de tudo, reparei na forma como ele dominava completamente o ambiente. Falava, dava ordens, gritava. Todos os outros miúdos olhavam para ele como uma coisa rara, como um talento. E, já se sabe, os miúdos sabem selecionar como ninguém. Não dão descontos, como costumo dizer. São juízes implacáveis, e se eles, ao segundo dia, já sabem o nome de outro miúdo e lhe passam a bola para ele jogar, é porque esse miúdo é bom jogador”.

Pois é, Ronaldo cai no Sporting como um óvni para saldar uma dívida de 5 mil contos. Estávamos em 1997, ainda reinavam os escudos e os contos. Agora, em euros, daria qualquer coisa como 25 mil euros. Quando a hipótese lhe é colocada, Aurélio nem pensa por aí além no sucesso da missão, até porque não vira o tal miúdo. Mas como tem grande respeito por Marques Freitas, um senhor muito educado e sempre presente, e a sua persistência é muita, Aurélio arrisca um estágio de oito dias em Lisboa. “O doutor manda‑me o miúdo e paga as passagens”.

O núcleo do Sporting na Madeira paga as duas passagens de ida e volta, uma para o tal miúdo, outra para o seu padrinho, Fernão Sousa. Não é Aurélio quem o vai receber ao aeroporto nem é Aurélio quem vê o primeiro treino de Ronaldo, no campo do Sporting da Torre. Essa honra cabe à dupla Osvaldo Silva e Paulo Cardoso, responsáveis técnicos desse escalão sub‑15.

Escreve Paulo Cardoso o seguinte: “Organizámos um jogo. Fisicamente, Cristiano não chamava a atenção. Além disso, havia alguns rapazes mais velhos. Na primeira vez em que apanhou a bola, descartou‑se logo de dois ou três adversários. Olhei para o Osvaldo Silva e disse‑lhe: “Viste? O que foi isto?” Passam uns minutos, e a ação repete‑se: velocidade, dribles, coordenação. Como nos chamou a atenção, no dia seguinte fizemos uma segunda prova, nos nossos campos ligados ao Estádio José Alvalade, para que o Aurélio Pereira e outros técnicos pudessem observá‑lo com mais tranquilidade e comodidade”.