«É o alimento mais completo», «tem aminoácidos essenciais», «protege a saúde dos ossos»... Apesar das mais-valias do leite de que sempre ouvimos falar e do seu consumo diário ser recomendado pelos mais reputados organismos nacionais e internacionais, o tema não é consensual entre a comunidade científica, existindo uma corrente de nutricionistas que aponta riscos sobre o seu consumo. Fomos ouvir as duas posições, que nem sempre são coincidentes.

Doses recomendadas

«A generalidade da população deve consumir duas porções, com exceção de crianças e adolescentes, que necessitam de três porções». A recomendação consta da roda dos alimentos e refere-se aos laticínios, um grupo que deve representar 18 por cento dos alimentos ingeridos por dia. A posição é concordante com a da British Nutrition Foundation (BNF), do Reino Unido, e semelhante às Dietary Guidelines dos Estados Unidos da América.

Uma questão de cálcio

O aporte de cálcio está na raiz destas recomendações. A dose diária de referência (DDR) indicada pela National Academy of Sciences, nos EUA, é de 1000 mg para pessoas dos 19 aos 50 anos e de 1200 mg para pessoas a partir dos 51 anos, valores referência para a generalidade dos países ocidentais. No entanto, segundo a Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard (HSPH)  «estas recomendações são baseadas em estudos de muito curto prazo e, provavelmente, são superiores ao que as pessoas realmente precisam».

Saúde polémica

«Alcançar 1200 mg por dia, normalmente, requer beber dois a três copos de leite por dia ou tomar suplementos de cálcio, para além de ter uma dieta globalmente saudável», argumenta a HSPH. No entanto, «atualmente não há boas evidências de que consumir mais do que uma dose de leite por dia, além de uma dieta equilibrada (que tipicamente fornece cerca de 300 mg de cálcio de fontes que não são laticínios) reduzirá o risco de fratura óssea».

A HSPH sugere também possíveis efeitos indesejados. «Devido a preocupações não resolvidas sobre o risco de cancro do ovário e da próstata, pode ser prudente evitar ingestões diárias de laticínios superiores a essa», sublinha este organismo.

Opiniões divididas

«A ingestão de leite materno é muito importante nos primeiros meses de vida. Já o de outros mamíferos não é essencial para crianças nem para adultos, pois com uma dieta omnívora variada é possível ingerir todos os nutrientes essenciais que o leite aporta», afirma Alexandre Azevedo, nutricionista, que não recomenda este alimento aos seus pacientes «por existirem melhores alternativas sem potenciais riscos».

A sua opinião contrasta com a do nutricionista Nuno Borges, da Associação Portuguesa de Nutricionistas. Segundo este, «o leite é um alimento importante na infância devido à sua riqueza em nutrientes fundamentais ao desenvolvimento e crescimento» e «indispensável a uma alimentação saudável ao longo da vida, pelo que deve ser integrado na alimentação, de acordo com as recomendações da roda dos alimentos».

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Os trunfos do leite

A posição de dois especialistas em nutrição, com base em dados científicos, sobre os principais nutrientes deste alimento:

- Vitaminas e mineirais

«É um excelente fornecedor de minerais como o cálcio, o fósforo, o potássio e o ferro e as vitaminas a e d, no caso do leite fortificado com esta vitamina», defende Nuno Borges. «Na típica dieta ocidental (pouco saudável) é a principal fonte de cálcio e contribui significativamente para o aporte de fósforo, potássio, magnésio e vitamina B1. É uma fonte importante de vitamina D nos Estados Unidos, onde é fortificado com este nutriente», refere Alexandre Azevedo.

- Proteínas

Na opinião de Nuno Borges,  o leite «é um alimento portador de proteínas de elevado valor biológico em quantidades significativas. As proteínas do leite fornecem todos os aminoácidos essenciais, que o nosso organismo não tem capacidade de sintetizar, pelo que depende da ingestão alimentar para os obter. Também o queijo, o iogurte, o ovo, o peixe e a carne as fornecem».

Já na perspetiva de Alexandre Azevedo, o leite «contém uma quantidade moderada de proteínas de alto valor biológico, o que apenas é relevante numa dieta isenta de peixe, carne ou ovos. As proteínas do leite contêm todos os aminoácidos essenciais, mas os ovos, a carne e o peixe também os contêm e em maior quantidade que o leite».

- Cálcio

«O cálcio existente no leite tem uma boa probabilidade de ser absorvido com sucesso no intestino, sendo o leite de bovino um dos alimentos cujo cálcio tem melhor biodisponibilidade. A absorção de cálcio depende de outros atores, como a ingestão de vitamina D, a exposição solar que promova a sua síntese ou a ingestão, em simultâneo com o cálcio, de compostos existentes nos alimentos de origem vegetal», defende Nuno Borges.

Já Alexandre Azevedo tem outra perspetiva sobre este aspeto. «Existem alimentos de origem vegetal, como couves e brócolos, que têm uma elevada taxa de absorção intestinal de cálcio, que até supera a dos lácteos. Uma elevada ingestão de proteína (quer animal, quer vegetal) incrementa a produção de ácidos, o que aumenta a excreção urinária de cálcio. Quando se junta a fontes de proteína (como carne, peixe, ovos, lácteos e cereais) quantidades generosas de hortaliças, fruta e tubérculos, mantém-se um adequado balanço de cálcio», refere.

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Prós e contras do leite na saúde:

- Dentes

«O consumo diário de leite, nas quantidades recomendadas, poderá contribuir para a prevenção de doenças ósseas, como a osteoporose, existindo também estudos científicos que mostram uma relação com a prevenção de cáries dentárias, quando combinado com uma boa higiene oral, da hipertensão arterial e da diabetes mellitus tipo 2», refere Nuno Borges, nutricionista e membro da direção da Associação Portuguesa de Nutricionistas.

- Sono

Segundo Nuno Borges, «está também demonstrado que a quantidade de triptofano presente no leite permite melhorar a qualidade do sono».

- Cancro

Segundo Alexandre Azevedo, nutricionista, «devido ao seu teor em cálcio, o leite parece diminuir o risco de cancro do cólon». Paralelamente, «a evidência epidemiológica» «aponta de forma consistente para uma relação entre a ingestão de leite e a incidência de cancro da próstata, ovários e testículos.»

- Acne

«Existem pelo menos quatro estudos epidemiológicos a encontrar relação entre leite e acne», refere Alexandre Azevedo. A causa poderá estar no «facto de o leite aumentar as concentrações de IGF-1», uma hormona de crescimento que também «conduz a uma maturação sexual mais prematura e aumenta o crescimento vertical», acrescenta.

- Doenças autoimunes

Em pessoas geneticamente predispostas e quando outros fatores estão presentes, como défice de vitamina D, «existem proteínas no leite que podem despoletar doenças autoimunes». No caso de pessoas com doença autoimune ou alergia às proteínas do leite, o nutricionista defende a eliminação dos laticínios.

- Diabetes

«Existem estudos epidemiológicos que associam a ingestão de laticínios (em especial magros) a menor incidência de diabetes tipo 2 e síndrome metabólica, mas existem outros a não revelar associação e outros a mostrar o contrário», argumenta Alexandre Azevedo. Segundo o especialista, «o único estudo de intervenção dietética (em crianças) a analisar o efeito isolado do leite na sensibilidade à insulina revelou que o aumento da ingestão deste alimento provocou resistência à insulina».

No entanto, «aumentar a insulina recorrendo a um alimento rico em proteína logo após o exercício com pesos aumenta a massa magra e acelera a recuperação muscular», salvaguarda. Em caso de resistência à insulina e síndrome metabólica, o nutricionista recomenda a substituição do leite por queijos com baixo teor de lactose.

- Intolerância à lactose

Muitos adultos não produzem a enzima (lactase) necessária para digerir a lactose, açúcar do leite. A solução pode passar por ingerir leite sem lactose, queijos com baixo teor de lactose ou leite fermentado (kefir ou iogurte).

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Doses de laticínios recomendadas

As indicações da Roda dos Alimentos sobre o consumo diário de leite e seus derivados indicam que as crianças e adolescentes devem consumir três porções, enquanto que as outras pessoas devem beber apenas duas porções. Uma porção equivale a uma chávena almoçadeira de leite (250 ml) ou a  um iogurte líquido ou 1,5 iogurtes sólidos ou a duas fatias finas de queijo ou a  ¼ de queijo fresco (50 g) ou a  ½ requeijão (100 g).

Beber leite é sinónimo de ossos (mais) fortes?

As opiniões dividem-se. Há quem defenda que sim mas também há especialistas que apresentam algumas reservas:

- O que dizem os adeptos do sim

«Por ser rico em cálcio e fósforo, fundamentais ao desenvolvimento e manutenção do osso, é um bom aliado na prevenção de problemas ósseos, como a osteoporose. Para se assegurar um bom funcionamento do osso, necessitamos paralelamente de um correto aporte de vitamina D, obtida através de alimentos como o peixe gordo ou o leite fortificado com vitamina D, mas sobretudo através da síntese desta vitamina após exposição solar» , explica Nuno Borges.

- O que dizem os defensores do talvez

«Apesar de o cálcio ser um dos vários nutrientes necessários para uma adequada saúde óssea, tem sido o único grande foco nutricional na prevenção da osteoporose. Existem estudos de intervenção de curto prazo a demonstrar que o leite pode aumentar a densidade mineral óssea. No entanto, diversos estudos prospetivos de longo prazo e
meta-análises recentes não encontraram relação entre ingestão de leite e a prevenção de fraturas osteoporóticas», defende Alexandre Azevedo.

Texto: Rita Miguel com Nuno Borges (nutricionista e membro da direção da Associação Portuguesa de Nutricionistas) e Alexandre Azevedo (nutricionista)