“A falta de investimento, no nosso caso, ainda não se repercute de forma significativa nos cuidados que prestamos. Conseguimos prestar cuidados de saúde satisfatoriamente próximos do que de melhor se faz na nossa área. Contudo, se a falta de investimento persistir, este poderá não ser o caso no futuro”, alertou.

HealthNews (HN) – Em que é que consistiu este seu trabalho que foi premiado no passado dia 21 de setembro?

Miguel Quintas Neves (MQN) – Permita-me começar por dizer que foi uma honra enorme ter recebido esta distinção e queria deixar bem claro que tal só foi possível por estar inserido numa equipa extremamente competente do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS) da Escola de Medicina da Universidade do Minho, onde estou atualmente a fazer a tese de doutoramento. Embora desta vez seja eu a dar a cara no contexto de 1.ª autoria do artigo, já noutras ocasiões, felizmente, fomos premiados por variações deste e por outros trabalhos, nomeadamente através do investigador principal e coordenador da equipa, Professor Tiago Gil Oliveira, o que vem atestando a qualidade do nosso trabalho.

Respondendo agora à pergunta que me colocou, aquilo que procurámos fazer foi melhor enquadrar, no mundo das doenças neurodegenerativas, uma condição neuropatológica que foi descrita há cerca de nove anos, nos Estados Unidos da América, por um neuropatologista que colabora connosco, o Professor John F. Crary, denominada tauopatia primária relacionada com a idade, mais conhecida na literatura pelo acrónimo PART. Após observação e caracterização de vários cérebros de doentes idosos já falecidos, com prévios distúrbios cognitivos (grande parte deles diagnosticados clinicamente como tendo doença de Alzheimer), este neuropatologista constatou que, ao contrário do que se observa na doença de Alzheimer, em que há deposição anormal de agregados de duas proteínas necessárias para se estabelecer esse diagnóstico, nomeadamente proteína tau e beta-amilóide, no caso da PART, apenas havia deposição de agregados de proteína tau.

Ele propôs o termo tauopatia primária, pelo facto de ter apenas a proteína tau depositada sem nenhum aspeto secundário que motivasse essa deposição, e que estaria relacionada com a idade porque os indivíduos, de uma forma geral, eram idosos e quanto maior a idade, maior a quantidade de proteína tau. Quando ele fez essa descrição, a tendência predominante dos cientistas que se dedicam a esta área foi a de dizerem que este termo não era mais do que um estadio pré-Alzheimer. Isto é, a PART, com o tempo, acabaria por evoluir para Alzheimer – ainda não tinha a depositação de beta-amilóide, mas iria ter. A literatura, nesta última década, foi muito no sentido de distinguir se, de facto, a PART era diferente do Alzheimer ou se estava no espectro do Alzheimer. O nosso trabalho surge precisamente neste contexto.

No fundo, tentamos procurar aspetos diferenciadores ou aglutinadores entre as duas condições. Aquilo que fizemos foi recorrer a uma base de dados dos Estados Unidos que reúne informação de doentes com sintomas neurodegenerativos que já faleceram e que tiveram o diagnóstico definitivo estabelecido após observação e caracterização dos seus cérebros por neuropatologistas. Nós fomos a essa base de dados, reunimos doentes que tinham o diagnóstico de doença de Alzheimer e que tinham o diagnóstico de PART, separámos esses doentes e fomos fazer uma espécie de viagem no tempo, aquilo a que chamamos análise retrospetiva, em que fomos ver, durante a vida desses doentes, o que é que eles tinham em termos de características clínicas e imagiológicas, ou seja, como é que era a parte cognitiva deles, se tinham problemas de memória, se tinham problemas de linguagem, etc. E fomos também ver e classificar as ressonâncias magnéticas cerebrais desses doentes em termos de padrões de atrofia.

Portanto, fomos comparar os dois grupos e dessa comparação obtivemos dois resultados principais, relativamente inovadores. O primeiro consistiu na demonstração de que o padrão de atrofia da população de doentes com a condição neuropatológica PART era relativamente semelhante ao padrão de atrofia do estadio moderado da doença de Alzheimer, o que não seria expectável se se tratasse de um estadio pré-Alzheimer. O segundo grande resultado foi que, ao contrário do que é observado na doença de Alzheimer, em que há correlação significativa entre a atrofia que se estabelece nas diferentes regiões cerebrais e os distúrbios cognitivos que se instalam, na PART parece haver uma considerável dissociação entre os padrões de atrofia que se estabelecem, nomeadamente no lobo temporal medial, e a disfunção cognitiva que os doentes adquirem. Isto é, globalmente, os doentes parecem ter mais atrofia do que disfunção cognitiva.

HN – Porque é que decidiu desenvolver este trabalho?

MQN – De facto, sou um apaixonado pela neurorradiologia, em todas as suas manifestações. Gosto muito de todas as áreas. Tenho, contudo, mais apetência para três grandes áreas: a neuro-oncologia, a cabeça e pescoço, e as demências/doenças neurodegenerativas. Estas últimas sempre foram algo que me cativou pelo facto de achar, e isto é relativamente consensual, que, por vezes, é muito difícil chegarmos a um diagnóstico clínico, em conjunto com os neurologistas, por poderem, numa percentagem relativamente considerável de casos, ter padrões mistos, isto é, terem, por exemplo, uma componente vascular e uma componente de Alzheimer, e isso vai dificultar muito o diagnóstico. Foi neste âmbito que quis ler mais sobre este tema e participar ativamente em investigação nesta área. Claro que ajudou imenso, não posso negar, ter no Serviço de Neurorradiologia do hospital onde trabalho o atual presidente da Sociedade Portuguesa de Neurociências, o Professor Tiago Gil Oliveira. Pelo meu interesse constante enquanto interno de especialidade, ele sempre me motivou e incentivou a fazer investigação nesta área, tendo esse sido o mote para que me inscrevesse no doutoramento em 2021 e que me conduziu até ao ponto em que agora estou.

HN – A investigação é um prazer que tem cultivado? É algo que gosta de juntar à prática clínica ou é algo que acha necessário fazer pelos doentes?

MQN – De uma forma geral, o ideal seria haver mais estímulo por parte da tutela – o Ministério da Saúde – mas também dos próprios hospitais, no sentido de mais programas de investigação e pós-graduação. Este estímulo poderia ser, por exemplo, mais tempo de horário dedicado para trabalhos de investigação e não apenas para carga assistencial, tanto para os médicos especialistas como para os médicos internos, para que, desta forma, planeassem e fizessem mais investigação, quer básica, quer, como no meu caso, clínica. Acrescentar que quer uma quer outra são pilares fundamentais para o refinamento da prática clínica e, no nosso país, salvo raras exceções, não lhes é dado o devido valor por quem chefia, não é feito o devido investimento, porque depreendo que não produza números imediatos, não tenha impacto imediato no dia-a-dia, como tem o número de consultas, o número de cirurgias, o número de exames, que é o que as administrações hospitalares mais têm valorizado, e parcialmente posso aceitar, mas nunca com a falta de investimento assertivo e sustentado que se tem observado.

Quando comparamos com os nossos congéneres europeus e americanos, nomeadamente norte-americanos, há uma diferença gritante. Nos países mais desenvolvidos da Europa e nos Estados Unidos, não só tem havido estreita colaboração entre as universidades e os hospitais, como, por exemplo, é relativamente habitual um médico que trabalha num hospital ter a possibilidade de dar aulas na faculdade associada, mesmo sem frequentar pós-graduações como o doutoramento, e ter, paralelamente, horário dedicado a investigação científica. O que devemos ter em mente é que este investimento promove maior satisfação, mais conhecimento e, no final do dia, melhores cuidados prestados aos doentes, sendo que, potencialmente, aumentará o rendimento a médio e longo prazo nas consultas, exames e cirurgias.

No meu caso, dada a falta de tempo dedicado para investigação durante a especialidade, decidi no final do internato começar o doutoramento porque já tinha grande parte da minha formação realizada. Antes, acho que seria muito difícil porque não nos é dado o tempo necessário para nos dedicarmos devidamente à investigação, embora haja colegas que o façam e com qualidade, muitas vezes com prejuízo para a sua vida familiar.

HN – Esses entraves refletem-se em lacunas no tratamento dos doentes?

MQN – Se me perguntar a minha opinião pessoal, isto é, numa avaliação subjetiva, e que eu acredito que seja a opinião de alguns colegas meus, eu diria que, se houvesse mais investimento em investigação, o nosso nível de satisfação aumentaria, o nosso know-how acerca das patologias que diariamente tratamos aumentaria ou melhoraria, estaríamos mais na crista da onda, teríamos mais tempo para fazer aquilo que gostamos (obviamente que é opcional), e haveria uma translação benéfica para os cuidados de saúde que diariamente prestamos. Sendo uma análise subjetiva, não tenho dúvidas neste aspeto.

HN – O que é que sentiu quando soube que tinha vencido o prémio?

MQN – Foi, de facto, um tremendo êxtase. Sou introvertido, pelo que não fiz um espetáculo, mas senti-me verdadeiramente perto disso – mesmo muito orgulhoso. Uma sensação única. Agora, claro, era o que lhe dizia no início, sempre tendo presente, e com os pés bem assentes no chão, que, sim, é um prémio, é um reconhecimento, mas tudo só foi possível pela equipa excelente em que estou inserido, montada pelo Professor Tiago Gil Oliveira. Cada um de nós tem características diferentes, sabemos bem o nosso papel e capacidades, e damos uma parte para que depois o todo sobressaia, e a nossa equipa tem demonstrado, sobretudo nestes dois últimos anos, que tem bastante valor, pelos prémios que tem recebido. Mas, mais uma vez, obviamente que não o vou negar, foi um orgulho tremendo, mais a mais sendo atribuído pela Sociedade Europeia da minha especialidade de eleição.

HN – Gostaria de acrescentar alguma outra informação relativamente ao trabalho?

MQN – Posso acrescentar um pormenor, uma coisa um bocado específica, mas acho que é importante uma vez que a entrevista é dirigida a colegas. Aquela dissociação de que eu falava, que nós observamos entre a disfunção cognitiva e os padrões de atrofia na PART, será explicada por outros fatores e há alguns que estão a ser colocados como hipótese na literatura. Estamos a trabalhar num deles, englobado também na reta final da minha tese de doutoramento, que são os fatores vasculares. Tem havido já descrições de que a doença vascular poderá justificar, pelo menos em parte, não diria tudo porque isto é um conjunto de fatores, essa dissociação que se observa nesses doentes, e estamos a trabalhar precisamente nisso: avaliar a carga vascular cerebral nestes dois grupos de doentes, para verificar se há diferenças e perceber essa discordância.

HN – A que grupo da sociedade deixaria uma mensagem final?

MQN – Se calhar, com o devido respeito pelos restantes grupos que referiu, dirigia-me aos meus colegas, por estarmos a passar um momento particularmente tumultuoso, pelas negociações das condições de trabalho entre o Ministério da Saúde e os sindicatos médicos. Queria dizer que, mesmo perante todas as dificuldades que nos colocam – e os meus colegas sabem isto, obviamente, mas é sempre bom dizê-lo –, em que nos é pedido mais e mais em termos de carga assistencial e entrega, com falta de recursos e muito pouco tempo para a nossa vida pessoal e, como tinha dito, para a investigação, o médico português tem, de facto, muito valor. Nós não temos menos capacidade que os nossos congéneres europeus ou norte-americanos, nós temos é piores condições e menos incentivos para criar ciência e para que façamos as coisas de uma forma mais pautada e regrada. Mas nunca duvidemos da nossa qualidade, sendo prova disso mesmo os vários prémios que diferentes colegas têm ganho internacionalmente. Mesmo com menos investimento, nós temos valor e devemos sempre acreditar que não somos inferiores aos colegas de fora, pelo que devemos exigir condições de trabalho e remuneratórias condizentes com a nossa diferenciação. Devemos lutar sempre contra a falta de investimento. Em relação à investigação, é preciso também ter um pouco de sorte, não o vou negar, mas com o valor que temos, temos tudo para atingir o sucesso, nacional e internacional.

HN – Em relação à neurorradiologia, neurocirurgia e neurologia, apesar das dificuldades, conseguem fazer o melhor trabalho possível e têm as ferramentas e os equipamentos necessários para tratar estas doenças tão complexas?

MQN – Neste momento há dois tipos de saúde em Portugal, ou dois grandes acessos à saúde em Portugal: pelo sistema privado e pelo público. Aquilo que se vê na prática é que há ainda uma disparidade considerável entre os hospitais privados e os hospitais públicos em termos de investimento nos materiais que usamos no dia-a-dia. Eu posso falar da minha especialidade, a neurorradiologia; da neurocirurgia e da neurologia já não estou tão a par. Na parte da neurorradiologia sente-se um pouco isso.

Por exemplo, no meu hospital temos aparelhos de ressonância que funcionam bem, estão bem otimizados e permitem-nos responder às questões clínicas, dando, globalmente, resposta bastante capaz à população que servimos. Mas não vou negar que alguns aparelhos e softwares estão desatualizados, nomeadamente com mais de uma década de uso. Esta falta de investimento acaba por se sentir na prática clínica. Algo que, pelo que tenho falado com colegas, será transversal à maior parte dos hospitais públicos. Uma das desvantagens é nós termos que despender mais tempo, por exemplo, por cada exame, por não termos os softwares mais atuais.

Contudo, no Hospital de Braga temos a vantagem de existir colaboração com o Centro Clínico Académico, associado à Escola de Medicina da Universidade do Minho, que nos permite ter acesso a aparelho de ressonância magnética de 3 Tesla, sendo este o nosso melhor aparelho e que é dividido com o Centro referido. Essa ainda é a nossa sorte. Aí já estamos a falar de um aparelho que está bastante atualizado e que nos permite dar o melhor cuidado possível ao doente.

A falta de investimento, no nosso caso, ainda não se repercute de forma significativa nos cuidados que prestamos. Conseguimos prestar cuidados de saúde satisfatoriamente próximos do que de melhor se faz na nossa área. Contudo, se a falta de investimento persistir, este poderá não ser o caso no futuro.

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Entrevista de Rita Antunes