É cada vez mais comum que crianças comecem a falar português do Brasil em tenra idade, especialmente devido à exposição crescente à cultura brasileira através da televisão, da música, da internet e da própria globalização, já que este fenómeno social pode ser observado em muitas partes do mundo onde o português brasileiro é ensinado ou é uma língua de imigrantes.

Com o acesso cada vez mais precoce, recorrente e facilitado a dispositivos tecnológicos, como tablets, telemóveis e computadores, as crianças estão expostas a uma variedade de conteúdos online, incluindo vídeos, desenhos animados, jogos, em plataformas digitais onde é dominante o português do Brasil.  A presença predominante de conteúdo brasileiro em plataformas de streaming e nas redes sociais pode aumentar ainda mais a exposição das crianças ao português do Brasil. A natureza atrativa e envolvente desses conteúdos pode influenciar as crianças a adotarem certos termos, expressões e até mesmo sotaques característicos do português do Brasil.

A migração de brasileiros para Portugal também pode contribuir para esta tendência, pois as crianças podem ser expostas ao português brasileiro no seu ambiente social. Em resumo, é possível que algumas adotem certos termos ou expressões do português brasileiro devido à sua popularidade e disseminação na cultura contemporânea e no atual panorama sócio-demográfico.

O tempo gasto em frente aos ecrãs certamente desempenha um papel na exposição das crianças ao português do Brasil, especialmente considerando a quantidade de conteúdo brasileiro disponível na internet e em plataformas como o Youtube ou o TikTok. Esta assimilação pela reprodução continuada de conteúdos leva a que esses modelos sejam absorvidos e repetidos pela criança, que são autênticas "esponjas". No entanto, outros fatores, como a influência dos meios de comunicação social e a presença de imigrantes brasileiros em Portugal, também contribuem para essa tendência. De facto, o tempo em frente aos ecrãs é apenas um dos vários elementos que moldam a linguagem e o comportamento linguístico das crianças.

Os pais muitas vezes permitem que as crianças brinquem com aparelhos eletrónicos, como tablets, telemóveis e computadores, especialmente nos dias de hoje, onde a tecnologia está tão presente nas nossas vidas, e em que a curta disponibilidade diária para as tarefas familiares é inversamente proporcional ao cansaço absorvente quer dos pais, quer dos filhos. No entanto, é importante que os pais equilibrem o tempo que as crianças passam em frente a esses dispositivos com outras atividades importantes, como brincadeiras ao ar livre, a interação social com outras crianças ou familiares, a leitura de livros e outras atividades mais criativas.

Embora os aparelhos eletrónicos possam oferecer benefícios educativos e de entretenimento, o excesso de tempo diante das ditas "telas" pode ter efeitos negativos na saúde física, emocional e no desenvolvimento das crianças, tais como:

1. Atrasos no desenvolvimento cognitivo e linguístico: O tempo excessivo em frente aos ecrãs pode interferir na capacidade da criança desenvolver habilidades linguísticas, sociais e cognitivas adequadas à sua idade;

2. Problemas de saúde física: O uso prolongado de ecrãs pode levar a uma vida sedentária, o que aumenta o risco de obesidade, problemas de visão e distúrbios do sono;

3. Impacto no desenvolvimento emocional: O conteúdo inadequado ou violento nos ecrãs pode afetar negativamente o bem-estar emocional e psicológico das crianças, aumentando a ansiedade e o comportamento agressivo;

4. Dificuldade de concentração e atenção: O uso excessivo de ecrãs pode dificultar a capacidade da criança se concentrar e focar noutras atividades, como brincar ao ar livre, ler livros ou interagir com outras pessoas;

5. Dependência tecnológica: Expor as crianças muito cedo aos ecrãs pode criar uma dependência excessiva da tecnologia, dificultando a sua capacidade de se envolver em atividades offline importantes para o seu desenvolvimento.

Portanto, os pais devem estabelecer limites claros sobre o tempo de exposição aos ecrãs e monitorizar o conteúdo pesquisado pelas crianças para garantir que seja apropriado para a idade e que não promova comportamentos prejudiciais.

É da responsabilidade dos adultos que lidam com as crianças incentivar uma variedade de atividades saudáveis e estimulantes para a criatividade, a imaginação e a exploração através de brinquedos que não envolvam tecnologia, promovendo um desenvolvimento equilibrado e saudável das crianças.

Mais cativante

Os conteúdos em português do Brasil podem ser mais apelativos para algumas crianças pequenas devido à sua natureza mais descontraída, à música animada, às cores vibrantes e aos personagens atraentes presentes em muitos programas e desenhos animados brasileiros, youtubers e artistas de música, em comparação com a oferta existente em português europeu. Além disso, o sotaque brasileiro pode soar eventualmente mais animado e cativante para algumas crianças, tornando os conteúdos em português do Brasil mais atrativos. No entanto, a preferência por esse tipo de conteúdo pode variar de criança para criança, e algumas podem preferir conteúdos em português europeu ou de outras origens, como espanhola ou coreana. A verdade é que a geração atual está em contacto constante com múltiplos estímulos provenientes de diferentes partes do mundo, seja por contacto direto ou via internet. À família e à escola compete ajudar a criança a construir a sua identidade e a compreender o mundo ao seu redor. Assim, deve ver-se esta situação como uma oportunidade de alargar conhecimentos e potencializar a empatia e o respeito e alertar as famílias para a educação que está a ser veiculada por estes canais digitais, com a sua permissão e aval.

Nos anos 70, os portugueses assistiam às telenovelas brasileiras por diversos motivos, como entretenimento, interesse cultural e pela qualidade da produção, em comparação com as nacionais. O facto de não terem começado a falar português do Brasil pode dever-se à exposição limitada, já que embora fossem populares em Portugal, a exposição ao português do Brasil através da televisão era apenas uma parte do tempo de exposição linguística dos portugueses, na verdade, a maior parte da sua interação diária ocorria em português europeu, seja na escola, no trabalho ou em casa. Por outro lado, muitos portugueses têm uma forte identidade linguística ligada ao português europeu, que é a variante da língua falada em Portugal. Por isso, mesmo que assistissem a telenovelas brasileiras, poderiam preferir manter o seu próprio dialeto. Ao assistir a conteúdo em português do Brasil, os portugueses poderiam ver isso como uma forma de "código alternativo" de entretenimento, separado da sua língua materna. Assim, não necessariamente incorporariam os termos e expressões brasileiras no seu próprio discurso diário.

Pandemia pode ser responsável

É possível que a pandemia e o confinamento tenham contribuído para o aumento dos casos de crianças a falar português do Brasil, especialmente devido ao aumento do tempo passado em casa e, consequentemente, em frente a ecrãs como a televisão, os telemóveis, os computadores e os tablets. Com mais tempo disponível para consumir conteúdos online, as crianças podem ter sido expostas a uma maior quantidade e variedade de conteúdos em português do Brasil, como desenhos animados, jogos e vídeos educativos do Youtube e do TikTok, o que pode ter influenciado o seu desenvolvimento linguístico. Além disso, o aumento das interações sociais online durante o confinamento também pode ter exposto as crianças a mais falantes nativos de português do Brasil, o que pode ter impactado a forma como elas falam e se comunicam. Uma exposição precoce pode contribuir para que as crianças desenvolvam habilidades linguísticas que refletem as características do português brasileiro, numa fase determinante da aprendizagem da escrita e do desenvolvimento da linguagem.

Aprimorar o português

Com disciplina e consistência, é possível ajudar as crianças a recuperarem ou aprimorarem o uso do português europeu, se for essa a vontade da família. Os pais e educadores podem incentivar a exposição das crianças ao português europeu através de livros, músicas, filmes e programas de televisão em português europeu. Isso pode ajudar as crianças a se familiarizarem com a variante linguística predominante em Portugal. Por outro lado, reduzir o tempo que as crianças passam em frente aos ecrãs pode ajudar a limitar a exposição a conteúdos em português do Brasil e permitir que elas se envolvam em atividades que promovam o uso do português europeu, por exemplo, interagir com familiares, amigos e colegas que falam português europeu pode ajudar a reforçar o uso dessa variante linguística. Sem repreender, os adultos devem corrigir gentilmente as crianças quando utilizarem termos ou expressões do português do Brasil, incentivando-as a utilizar o português europeu, bem como serem modelos de linguagem ao falar consistentemente em português europeu com as crianças, mostrando-lhes a importância e a versatilidade dessa variante linguística, mas também da tolerância e respeito pelas diferenças.

As crianças que são expostas principalmente ao português do Brasil podem ter dificuldades em compreender e expressar-se em português europeu, especialmente em contextos formais, como a sala de aula. Isso pode afetar o seu desempenho académico e a sua participação nas atividades escolares. O uso frequente do português do Brasil pode influenciar os padrões de escrita e gramática das crianças, levando-as a adotar certas características linguísticas do português brasileiro que podem não ser aceites ou valorizadas no contexto educacional em Portugal. O aumento do uso do português do Brasil pode levar as crianças a se afastarem da sua identidade linguística e cultural como falantes nativos de português europeu e isso pode resultar numa desconexão com as suas raízes linguísticas e uma perda do sentido de pertença à sua própria comunidade linguística. Se as crianças que falam português do Brasil se destacarem significativamente dos seus colegas que falam português europeu, isso pode criar barreiras de comunicação e integração social na escola, afetando negativamente as suas relações com os colegas e o seu desenvolvimento social e emocional. Para mitigar essas consequências, é fundamental que as escolas adotem uma abordagem proativa para promover o português europeu como a variante padrão da língua portuguesa em Portugal, valorizando e incentivando o seu uso correto e apropriado em todos os contextos educacionais. Além disso, é importante fornecer oportunidades para que as crianças desenvolvam e fortaleçam as suas habilidades linguísticas em português europeu, tanto dentro como fora da sala de aula.

Terapia da fala

O terapeuta da fala pode realizar uma avaliação abrangente das habilidades linguísticas da criança em português europeu, identificando áreas de dificuldade e estabelecendo metas de tratamento específicas. Se a criança tiver dificuldades com a pronúncia de sons específicos do português europeu, o terapeuta da fala pode fornecer exercícios e técnicas de treino de pronúncia para ajudá-la a melhorar a sua articulação. O terapeuta da fala pode trabalhar com a criança para expandir o seu vocabulário em português europeu, introduzindo novas palavras e frases e praticando o seu uso em diferentes contextos. Pode igualmente fornecer oportunidades para a criança praticar habilidades de conversação em português europeu, simulando situações da vida real e oferecendo feedback e orientação para melhorar a sua comunicação. Os pais desempenham um papel crucial no processo de terapia da fala, por isso o terapeuta da fala pode trabalhar em estreita colaboração com eles, fornecendo estratégias e recursos para apoiar o desenvolvimento linguístico da criança em casa. Com consistência, paciência e apoio adequado, é possível ajudar as crianças a recuperarem ou aprimorarem o uso do português europeu como forma predominante de comunicação. Em resumo, a Terapia da Fala pode ser uma ferramenta eficaz para ajudar as crianças a recuperarem o uso do português europeu e a melhorarem as suas competências de expressão linguística.

Monoitorizar

Bloquear completamente os conteúdos em português do Brasil não é considerada a melhor medida psicopedagógica, pois pode privar as crianças de acesso a uma variedade de conteúdos educativos e de entretenimento. No entanto, os pais podem ensinar a gerir as escolhas e monitorizar de perto o tipo de conteúdo que as crianças consomem e tomar medidas para limitar a sua exposição digital, especialmente se isso estiver a afetar negativamente o seu uso do português europeu. Em vez de bloquear completamente os conteúdos em português do Brasil, os pais podem definir limites claros sobre o tempo permitido de exposição aos ecrãs e explicar quais tipos de conteúdo permitidos e apropriados para assistir. Os pais devem monitorizar de perto a atividade online das crianças, usando ferramentas de controlo parental para acompanhar os sites visitados e o conteúdo consumido. Devem conversar com as crianças sobre a importância de manter o uso correto do português europeu e como isso está relacionado com a sua identidade linguística e cultural, incentivando ativamente as crianças a consumir mais conteúdo em português europeu, oferecendo-lhes acesso a programas de televisão, filmes e vídeos educativos nessa variante da língua. Os pais podem oferecer oportunidades regulares para que as crianças pratiquem e aprimorem as suas habilidades linguísticas em português europeu, seja através de leitura, escrita, teatralização, conversação ou jogos interativos. Em resumo, os pais podem desempenhar um papel importante na orientação e no apoio às crianças para que mantenham o uso correto do português europeu, mesmo que isso signifique tomar medidas para limitar a sua exposição ao português do Brasil em certos contextos, com a cautela necessária para não promover a discriminação, mas sim a multiculturalidade.

Tanto os pais quanto os professores têm um papel importante a desempenhar no auxílio às crianças portuguesas que deixaram de falar corretamente o português europeu devido à influência dos conteúdos digitais em português do Brasil. Os pais podem monitorizar a exposição das crianças ao português do Brasil e promover o uso do português europeu em casa, estabelecer regras claras sobre o tipo de conteúdo que as crianças podem aceder online, oferecer oportunidades para a prática do português europeu em diferentes contextos, como leitura de livros, conversas em família e jogos de palavras, modelar o uso correto do português europeu ao conversar com as crianças. Os educadores e professores podem identificar as dificuldades linguísticas das crianças e oferecer apoio individualizado para melhorar o uso do português europeu, integrar atividades em português europeu no currículo escolar, como leitura de textos autênticos, produção escrita e debates em sala de aula, promover um ambiente de aprendizagem inclusivo que valorize e respeite a diversidade linguística dos alunos, colaborar com os pais para garantir uma abordagem consistente e eficaz para a promoção do português europeu dentro e fora da escola, e sugerir o acompanhamento de Terapia da Fala. Os professores devem ser cuidadosos com os alunos de naturalidade Brasileira e cautelosos para não promoverem a xenofobia ou a rejeição, nunca considerando que estes estão a falar de maneira errada.

Em resumo, a colaboração entre pais e professores é essencial para ajudar as crianças a recuperarem o uso correto do português europeu, proporcionando um ambiente de aprendizagem rico e o suporte linguístico adequado. Sem descurar a questão de base, a variedade como forma de tornar o sistema educacional mais inclusivo deverá sempre ser valorizada.

Tablets e telemóveis

1. Definir limites claros de tempo para o uso de tablets e telemóveis, garantindo que as crianças tenham oportunidades suficientes para se envolverem em atividades offline que promovam o uso do português europeu, como leitura de livros, jogos de tabuleiro em família e conversas;

2. Monitorizar de perto o tipo de conteúdo que as crianças acedem online, limitando a exposição a conteúdos em português do Brasil e priorizando aqueles em português europeu. Os pais podem utilizar ferramentas de controlo parental para restringir o acesso a sites e apps não apropriados ou adequados;

3. Incentivar ativamente as crianças a consumirem mais conteúdo em português europeu, oferecendo-lhes acesso a programas de televisão, filmes, vídeos educativos e outras formas de media nessa variante da língua. Os pais podem ajudar as crianças a descobrir conteúdos em português europeu que sejam interessantes e envolventes;

4. Envolver-se ativamente nas atividades digitais das crianças, participando de jogos, assistindo a vídeos e explorando recursos juntos. Isso permite aos pais monitorizar mais de perto a exposição das crianças ao português do Brasil e fornecer orientação sobre o uso correto do português europeu;

5. Oferecer oportunidades regulares para que as crianças pratiquem e aprimorem as suas habilidades linguísticas em português europeu, seja através de leitura, escrita, conversação ou jogos interativos. Os pais podem criar um ambiente favorável à prática do português europeu em casa, incentivando conversas em família e jogos de palavras em português europeu.

Seguir estas regras pode ajudar os pais a promover um ambiente linguístico saudável em casa e apoiar as crianças na transição de volta ao uso correto do português europeu.

Ressalve-se que é fundamental reconhecer e celebrar todas as formas de português, incluindo aquelas que podem ser consideradas diferentes da nossa norma padrão. Nesse sentido, devemos encorajar as crianças a explorar e entender as diferentes nuances da nossa língua mãe, sem qualquer tipo de preconceito ou discriminação e de forma a promover a inclusão e o respeito pela diversidade linguística.

Um artigo de Marta Calado, psicóloga de crianças e adolescentes na Clínica da Mente.