O tom é delicado e a mensagem forte. O ritmo tem pausas mas sem dar espaço a hesitações. Júlia Pinheiro, 52 anos, diretora de gestão e de desenvolvimento de conteúdos da SIC, é também a apresentadora que aprendeu a usar o humor para ler melhor o mundo e que cresceu a ouvir que seria capaz de fazer tudo aquilo a que se propusesse. Assim foi e assim é. «Acho que me olham como alguém com uma posição de liderança», reconhece, sem nunca o desmentir. «Sou aquilo a que se chama uma mulher forte», assume mesmo a mulher da televisão, que começou pela rádio.

Estreou-se na televisão com 19 anos, depois de ter sido selecionada num casting. Porque acha que foi escolhida? Desse tempo até hoje, o que é que ainda hoje não perdeu?

O facto de ser muito atrevida… [risos] O facto de mostrar uma paixão imensa por esta profissão. Isso mantém-se até hoje. É absolutamente demencial e, quando surge alguém que tem a mesma chama, comovo-me e, só se não for possível, é que não a coloco debaixo da minha asa.

Hoje é líder. Ter-se-ia sentido realizada de outra forma, sem este cargo e sem este grau de responsabilidade?

Sim. Teria tido muita pena de não ter experimentado este caminho, mas o meu primeiro objetivo profissional não podia ter sido mais ao lado. Queria ser arqueóloga desde os nove anos e mantive esse objetivo até o dia em que a minha mãe, muito pragmática, me disse que, se fosse por aí, não ia arranjar emprego. Há dias em que digo «Porque não fui arqueóloga»… [sorri] Mas tenho sido muito feliz nesta profissão.

Agora mais do que no tempo em que se sentava em estúdio com a Rita Blanco, o Miguel Esteves Cardoso, o Manuel Serrão e o Rui Zink?

Esse programa [«A Noite da Má Língua»] foi marcante para nós, disruptivo. Corremos riscos tremendos e, durante muito tempo, fomos muito mal-amados. A popularidade do programa não foi imediata. Nessa altura, só fazia isso, portanto era muito feliz e não sabia… [risos] Era um luxo que hoje não tenho, mas não posso dizer que sou menos feliz porque o crescimento faz-se de coisas diferentes. Agora, se me dissessem «Hoje fazes tudo o que já fazes e ainda esse programa» seria o pleno. Quem sabe...

Em 2011, disse ao jornal Público que, no futuro, «os apresentadores serão cada vez mais uma marca» porque as pessoas já não vão ver o canal mas sim o apresentador. Quais são os valores da sua marca?

Credibilidade, algum prestígio acumulado, proximidade, assertividade… Acho que me olham como alguém com uma posição de liderança. Sou aquilo a que se chama uma mulher forte. Tenho sentido de humor, capacidade de desconcertar, uma língua afiada. Penso que as pessoas me consideram uma mulher inteligente, que tem uma leitura das coisas marcada pela sensatez e experiência. E tenho pena que a natureza não me tenha dotado da beleza necessária para a ter na minha marca.. [sorri] A beleza faz falta!

Sente mesmo isso?

Sinto, sinto… A beleza é importante na minha atividade e é, cada vez mais, valorizada porque o imediatismo da imagem está mais presente.

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Cresceu a ouvir a sua mãe dizer-lhe que não haveria nada que não conseguisse fazer. Sem esse amor teria chegado onde chegou?

O amor dos meus pais, a forma como o expressavam, foi importantíssimo. Sentia que teria sempre uma retaguarda, mesmo que tudo corresse mal. E houve o modelo da minha mãe. Empresária, ela era, e é, muito forte. É uma líder natural, uma referência nesse bater do pé num mundo de homens.

O espírito de liderança trabalha-se?

Sem dúvida. Estou gratíssima às pessoas que me dirigiram por me terem dado carta-branca, o mandato do «Toma e resolve». Fui obrigada a ir resolvendo as coisas e, a determinada altura, não só resolvia as minhas coisas como liderava equipas. Eu sempre tive uma estratégia definida. Preparar a minha saída do ecrã e formar-me como executiva de televisão porque, um dia, não poderei continuar a estar na antena. Gosto de sair quando acho que já não faço falta e os projetos seguintes me estimulam.

Um bom líder é o que não cessa de querer aprender?

E é aquele que tem a orelha aberta. Tem de ter a humildade de aprender com quem tem mais experiência. Foi o que fiz com o José Eduardo Moniz e é o que faço com o Luís Marques.

Imagine que estou a conversar não consigo mas com um elemento da sua equipa. O que acha que pensam sobre si?

Trato muito bem as minhas equipas. Envolvo-as. Mas tanto posso ser gentil e maternal como uma fera. Sou muito exigente e, quando me zango, zango-me muito. Provavelmente serei injusta uma vez ou outra e, quando não gosto, sou de uma franqueza absoluta. Sou muito protetora, só parto para o conflito quando não tenho alternativa e todos os truques que sei ensino. Quem trabalha comigo aprende um código de exigência e, espero, de excelência e de grande respeito pela televisão. Pensar que serve para sermos célebres é um dos piores dos músculos que podemos adquirir.

O que ainda impede as portuguesas de chegarem a cargos de topo?

A questão económica. Por exemplo, se tivesse nascido noutro país, teria a minha empresa de produção. Seria rival de uma Oprah e tinha a capacidade de gerir os meus interesses no negócio. Para além disso, passamos parte da nossa vida a criar pessoas, os filhos, a exercer a capacidade única multitask do «Tens que…». Mais tarde, acontece outra fase, a de cuidar dos mais velhos. Entre uma e outra, sobra pouco tempo para nós e, se temos um foco profissional marcado, andamos sempre a correr. Eu tive sorte! Tenho um marido fantástico que me ajudou sempre, contei com a família e tenho tido bons chefes que não veem ameaça no facto de ser mulher.

A diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, diz que o nosso pior inimigo somos nós próprias, que nos pomos em causa ainda antes dos outros sequer o fazerem. Concorda?

Até certo ponto. Na televisão, graças às audiências, todos os dias analisamos o nosso desempenho e certezas. Portanto, todos os dias me ponho em causa. Tal como os meus colegas, sou obrigada a isso. É o exercício da minha profissão. Sou feita de betão, pouca gente tem acesso à minha verdadeira pele, estou sempre em sentido e tenho de ter autoconfiança, senão desfaço-me. Compreendo o que diz, mas o corporate nos EUA é feito de outras estratégias. Cá ainda temos uma dimensão de humanização muito razoável nas empresas. As pessoas cuidam umas das outras.

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A forma desempoeirada como encara a câmara, o humor que usa... Que vantagens lhe têm trazido?

O humor é uma manifestação de inteligência, de boa leitura da realidade, ajuda a desvalorizar o que não é relevante. O mais importante é acharmos que não somos o centro do mundo. A televisão pode ter o efeito desagradável das pessoas ficarem muito focadas em nós. Quando acontece, brinco para voltarmos à normalidade. Aprecio profundamente a normalidade.

Como foi o seu 2014 antes do problema de saúde que a atingiu mais para o final?

Foi um ano bom, em que ninguém ficou doente, até essa altura. Foi um ano de muito trabalho. Na SIC, estamos numa fase muito estimulante, com conquistas importantes. Tive o privilégio de trabalhar com dois companheiros masculinos [João Baião e João Paulo Rodrigues] que me enriqueceram muito. Os meus filhos estão bem. Não posso pedir muito mais. E levei a sério a mudança do meu estilo de vida. Passei a correr uma hora, quatro quilómetros, quatro dias por semana. Se, em 2015, continuar tudo igual já será maravilhoso, mas quero ainda correr uma meia-maratona e terminar um romance.

O que conta o que poderá ser o seu novo romance?

É sobre uma expetativa frustrada. As mulheres são seres de grande complexidade, de alguma perversidade e, quando provocadas para fora da sua zona de conforto, podem fazer coisas terríveis. Acho isso fascinante.

6 coisas que (ainda) não sabe sobre Júlia Pinheiro

1. À mesa, cumpre rotinas militares. Come de duas em duas horas (um iogurte ou uma maçã), almoça sopa e salada e janta, sobretudo, peixe. À sexta-feira tudo lhe é permitido.

2. Não se maquilha quando não está a trabalhar.

3. O marido, Rui Pêgo, «é o romântico da relação», como faz questão de frisar.

4. Devora livros, acha extraordinária a obra «Memórias de Adriano» de Marguerite Yourcenar, e descobriu recentemente «O Pecado de Porto Negro», de Norberto Morais.

5. Antes de ir trabalhar, corre uma hora, nas margens do rio Tejo, com um personal trainer.

6. Quando, há pouco tempo, se juntou para um especial de «A Noite da Má Língua» pensou que ia correr mal, mas logo que se sentou no estúdio «foi magia pura». «Fiquei outra», confessa.

Texto: Nazaré Tocha