“Porque é que evitamos expressar as nossas ideias e ir contra a ordem estabelecida? Porque tememos o inconformismo e amedronta-nos que nos chamem de idealistas? Se há coisa que a história nos mostrou é que precisamos de pessoas rebeldes e contestatárias, que pensem e ponham em causa a opinião da maioria, para que o mundo progrida e as ideias evoluam. A timidez, o medo ao ridículo, a pressão social e a hierarquia são fardos pesados que afetam a nossa autoconfiança e que gradualmente sufocam a nossa criatividade e capacidade de insubordinação”. Estas palavras servem de apresentação ao livro Atreve-te a Pensar pela Tua Própria Cabeça (edição Planeta), obra assinada por Todd Kashdan, psicólogo na Universidade George Mason, nos Estados Unidos.

Todd Kashdan quer ajudar-nos a perder o medo, a pensarmos pela nossa própria cabeça e expressarmos a nossa opinião, seja na esfera pública ou numa reunião de trabalho.

Na introdução que faz ao seu livro, o autor deixa-nos uma manifestação de intenções sobre as páginas que escreveu: “Este livro é para qualquer pessoa que acredita que pelo menos alguns elementos da sabedoria e prática convencional requerem melhoramentos urgentes. É para quem anseia por mais justiça no mundo. Mais liberdade. Mais estabilidade financeira. Mais propósito. Mais sentido de comunidade. Mais humanidade. É para quem compreende o valor da inconformidade e reconhece que precisamos desesperadamente de pensadores livres dispostos a romper com normas inúteis em nome do progresso. (Ah, sim, e também é um livro para quem não se leva demasiado a sério e não se importa de rir, praguejar e divertir-se enquanto muda o mundo)”.

Kashdan, depois de receber o grau de Doutoramento em Psicologia Clínica em 2004, fundou a Well-Being Lab na Universidade George Mason, que produziu mais de 210 artigos científicos sobre temas como bem-estar, resiliência, propósito de vida, ansiedade, entre outros.

A importância vital de fazer a roda na biblioteca

Ao contrário do que aprendeu na escola, Charles Darwin não inventou a teoria da evolução. OK, talvez tenha inventado, mas não o fez sozinho. No prefácio de A Origem das Espécies, o livro de título estranho que viria a mudar o mundo, Darwin enumerou trinta homens que tiveram a coragem de questionar ortodoxias intelectuais e religiosas sobre a natureza.

Estes homens pagaram um preço alto pela sua ousadia. Já ouviu falar de Abu Uthman Amr ibn Bahr al-Kinani al-Fuqaimi al-Basri (apelidado Al-Jahiz)? Boa sorte para encontrar um íman de frigorífico com este nome. Os estudiosos muçulmanos referem-se a Al-Jahiz como “o pai da teoria da evolução» e com razão: ele chegou à conclusão da “sobrevivência do mais forte” mil anos antes de Darwin, no ano de 860.

Al-Jahiz questionava-se por que razão certos animais importados de África e da Ásia para onde hoje é o Iraque se adaptavam facilmente ao novo ambiente, enquanto outros adoeciam e morriam. A sua recompensa pela descoberta biológica foi a detenção e exílio da sua terra natal. E teve sorte. O governante muçulmano que reinava em Bagdade agiu de forma cruel sobre o patrono abastado que financiava a investigação de Al-Jahiz. Oficiais militares detiveram o patrono e executaram-no dentro de uma dama de ferro (um caixão de metal cheio de espigões que empalava as vítimas quando as portas se fechavam).

“A sociedade banalizou a palavra génio. A maioria dos prodígios não são génios e nunca serão” - Craig Wright, professor emérito em Yale
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Era de esperar que os cientistas percebessem a indireta e guardassem para si as suas teorias estranhas e perigosas. Cerca de setecentos anos mais tarde, nos anos de 1500, um cientista francês de nome Bernard Palissy atreveu-se a questionar a declaração da Igreja Católica de que a Terra tinha apenas alguns milhares de anos de existência. Ao reparar que as marés e os ventos precisavam de longos períodos de tempo para alterar visivelmente a paisagem, Palissy argumentou que o nosso planeta era muito mais antigo do que apenas alguns milhares de anos (quão mais antigo, recusou-se a referir). Palissy também sugeriu que um elefante de há milhares de anos não seria igual a um elefante dos nossos dias. Este conceito da transformação das espécies ao longo de gerações era heresia. A sua recompensa: várias detenções, uma avalanche de açoites e todos os seus livros destruídos. Ah, e foi queimado no poste.

Outros na lista de Darwin receberam melhor tratamento – as autoridades pouparam-nos à morte e ao ostracismo –, mas ninguém descreveria as suas vidas como pera doce. Foram denunciados como

infiéis. Controlados pela polícia. Excomungados pelas famílias. Censurados. Agredidos. Ameaçados de morte. Tudo por duvidarem das afirmações bíblicas de que animais e humanos foram realmente criados em seis dias, que Deus era realmente a única entidade responsável pela sua evolução e que os humanos eram realmente o zénite dos feitos de Deus (um degrau abaixo dos anjos). Questionar as crenças ortodoxas fazia deles profanos, ameaças, heréticos que mereciam a tortura e a morte.

Costumo dar o exemplo dos antecessores de Darwin para evidenciar o preço que muitos, se não a maioria, dos desafiadores, pervertidos, revolucionários, rebeldes e fora da norma pagam pelo progresso. Por vezes o progresso acontece por feliz acaso, mas é mais comum que uma pessoa corajosa desafie as normas sociais. Alguém reparou que a ortodoxia existente era, em maior ou menor escala, pouco saudável, estagnante mesmo perigosa e defendeu uma ideia contrária. E um membro da maioria decidiu dar a essa nova ideia uma receção justa ao invés do dedo do meio. É frequente que a divergência gere progresso.

Proíbam a divergência e irão abrandar a velocidade da evolução cultural. Os antecessores de Darwin são importantes na medida em que inspiram uma questão: porque foi bem-sucedido, enquanto eles falharam? Sim, Darwin recebeu mensagens de ódio e trolls do século XIX chamaram-lhe ignorante, mas as suas ideias atraíram uma grande audiência.

Os melhores cientistas europeus do século XIX elegeram-no fellow da Royal Society, a mais antiga academia científica do mundo; e atribuíram-lhe a prestigiada Royal Medal pela sua investigação que explicava a formação de recifes de coral. Leitores populares adoraram o seu livro de aventuras de viagem, apelativamente intitulado Narrative of the Surveying Voyages of His Majesty’s Ships Adventure and Beagle, between the Years 1826 and 1836. Num mundo onde não existia o Travel Channel nem a National Geographic, o livro de Darwin estimulou a imaginação e animou muitas conversas à mesa. Se existissem painéis publicitários à beira da autoestrada, o que não é o caso, a sua cara estaria neles em anúncios de ténis e leite com chocolate. Então porque foi esta insubordinação tão mais eficaz que a dos outros, de ideias semelhantes, por todo o mundo ao longo dos séculos?

lâmpadas
créditos: Dstudio Bcn/Unsplash

Uma resposta completa a esta questão daria para escrever muitos livros, requerendo uma extensa análise histórica tanto de Darwin como dos seus antecessores. Mas podemos colocar algumas possibilidades

interessantes se nos voltarmos para a psicologia social. Nas décadas recentes, os investigadores que estudaram uma série de tópicos – emoção, autorregulação, criatividade, persuasão, influência de minorias, conflitos entre grupos, psicologia política, dinâmicas de grupo – revelaram como podemos divergir e discordar com sucesso. A ciência também nos ajudou a perceber como membros da maioria se podem tornar recetivos aos divergentes, aumentando as probabilidades para que as ideias preciosas, mas subversivas dos insubordinados sejam implantadas.

A Darwin faltava a vantagem deste conhecimento, mas intuitivamente adotou algumas estratégias eficazes de insubordinação. Sabemos, por exemplo, que os divergentes aumentam as probabilidades de convencer outros se avaliarem cuidadosamente os preconceitos da sociedade e assim calibrarem o seu discurso e atos de acordo com os mesmos. Darwin compreendeu o quão provocador seria sugerir que a vida teve origem em algo que não a divina centelha de Deus. O próprio avô, Erasmus Darwin, viu os seus livros banidos do Vaticano por expor uma teoria da evolução. Para preservar a própria saúde mental, o jovem Darwin esboçou a sua teoria da evolução e depois esperou não dois, não cinco, não dez, mas 15 anos antes de a publicar. Só aí, depois de outro trabalho controverso, Vestiges of the Natural History of Creation, que se tornou um êxito internacional, ele percebeu que a sociedade estava finalmente pronta – ou tão pronta como algum dia podia estar – para digerir ideias tão controversas como as suas. “Na minha opinião”, escreveu, Vestiges “prestou um excelente serviço, eliminando o preconceito… preparando o terreno para a receção de ideias análogas”.

Os psicólogos realçam o quão importante é para os rebeldes de bons princípios comunicar de forma a vencer a resistência emocional dos ouvintes. Darwin pensou em como fortalecer a sua tese. Redigiu-a num estilo acessível, sem termos incompreensíveis para o comum leitor, e não apenas para cientistas. Baseou-se em analogias como exemplo. Os leitores vitorianos deliciaram-se com as descrições vívidas de Darwin sobre “cães sem pelo” e “pombos com patas cheias de penas”, sobre a mistura de formigas obreiras com as rainhas, o que acontecia quando os pintainhos perdiam o medo de cães e gatos (e não era bonito) e as obras de engenharia das abelhas. Além de entreter os seus leitores, Darwin tornava-os participantes ao usar frases como “podemos ver”, “podemos perceber” e “teremos de descobrir”. Pedia o envolvimento do leitor ao colocar questões como: “O que diremos agora perante estes factos?” Não era um jogo de computador interativo, mas, para os padrões da época, era viciante.

Os investigadores que estudam a divergência bem-sucedida descobriram que os aliados têm um papel fundamental na promoção de ideias pouco convencionais. Aqui, Darwin foi brilhante. Um ano antes de publicar A Origem das Espécies, recebeu um manuscrito de Alfred Russel Wallace descrevendo uma teoria da evolução concorrente. Tendo adiado a publicação do seu livro, Darwin temeu que só Wallace recebesse os louros pela descoberta da evolução. Para reivindicar a sua própria teoria, Darwin permitiu que amigos tomassem as rédeas e preparassem uma apresentação numa reunião pública iminente. A reunião divulgava o manuscrito de Wallace e uma carta datada e carimbada que comprovava que Darwin tinha chegado primeiro às suas conclusões.

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Nem Darwin nem Wallace estiveram presentes, mas uma infantaria de quatro colegas cientistas de Darwin – Charles Lyell, Joseph Dalton Hooker, Asa Gray e Thomas Henry Huxley (mais tarde conhecido como “o buldogue de Darwin”) – lutou valorosamente em nome dele, atestando a credibilidade da sua teoria. Darwin não era grande orador. Os amigos, contudo, eram suficientemente hábeis para discutir com os críticos e conquistar especialistas e leigos. Darwin utilizou estratégias específicas para “vender” a sua teoria ao público em geral e radicalmente mudar a forma como as pessoas pensam atualmente sobre as origens do comportamento humano. Estas estratégias, aliadas a uma posterior investigação, podem ajudar os inconformados entre nós a tornar-se mais resilientes, persuasivos e a mobilizar outros eficazmente. Sei que sim, porque na última década conduzi, colaborei e sintetizei estudos que exploram a forma como pessoas com ideias novas podem tornar-se corajosas. Delineei estratégias práticas para levar a bom porto ideias que outros viam como bizarras, ameaçadoras ou mesmo só estranhas. Ensinei estas estratégias a executivos em empresas, agentes de serviços secretos governamentais, líderes financeiros à escala global e outras pessoas relevantes em todo o mundo. Estas intervenções resultam, e estudos publicados fornecem evidências científicas que explicam porquê. Com um pouco de esforço extra, podemos todos ser mais bem-sucedidos na nossa tentativa de ajudar os elementos da maioria descrente a ultrapassar a sua resistência interna e a dar oportunidade à mudança, quer as nossas ideias sejam pequenos ajustes da sabedoria convencional ou novos caminhos revolucionários, como eram as de Darwin.

Obviamente, o sucesso ou fracasso de uma ideia subversiva depende de mais fatores do que apenas o mérito. Nós, humanos, somos criaturas tribais que frequentemente sacrificam argumentos sólidos para reforçar as relações de grupo, sejam estas referentes a partidos políticos, equipas desportivas, religiões, géneros, grupos raciais, países de origem ou géneros musicais. O pensamento tribal leva-nos a exigir uma “multa por invulgaridade” aos pensadores não ortodoxos, sobretudo se os virmos como “estranhos” ou intrusos. Para abrir caminho a mais insubordinações bem-sucedidas, eu e os meus colegas criámos estratégias baseadas em investigação para ajudar as pessoas a pensarem de forma mais flexível quando confrontadas com ideias desconhecidas – e por isso potencialmente perturbadoras. Estas estratégias potenciam a tolerância e o discurso cordial, criando ambientes onde os pensadores inconformados podem prosperar e os elementos da maioria podem obter mais valor do pensamento divergente.

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Os rebeldes com bons princípios têm mais importância agora do que algum dia na memória recente. Dignos de nota são Malala Yousafzai (que arriscou a vida defendendo a educação das meninas no Paquistão), Peter Neufeld e Barry Scheck (que ajudaram a exonerar mais de 375 condenados injustamente nos Estados Unidos) e Alexey Navalny (que cumpriu pena na prisão e enfrentou diversas tentativas de assassinato apenas por proteger os votos dos cidadãos da interferência de Vladimir Putin). Cada um deles se manifesta e exige mudança, tal como inúmeros menos conhecidos ativistas. Mas muitos de nós não resistem com sucesso. Nem a sociedade recebe a nossa resistência de forma saudável.

Em 2020, circulou na Internet uma foto que mostrava uma mulher mais velha num comício segurando um cartaz que dizia “Não acredito que ainda temos de protestar contra esta merda”. Muitos de nós compreendem esse sentimento. Mas por muito lenta que possa ser a mudança, e por pouco animador que possa por vezes parecer o mundo, não estamos todos condenados a ver as nossas ideias controversas ignoradas, repudiadas ou banidas. Ao aprender a praticar e a responder ao desafio mais eficientemente, podemos ultrapassar o medo e a desconfiança, substituir ideias aceites na generalidade por outras superiores e construir equipas, organizações e sociedades mais funcionais.