A Lei nº 45/2023 de 17/08 veio reforçar a proteção das vítimas de violência sexual, procedendo à alteração do Código Penal e do Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais e alteração ao Estatuto de Vítima aprovado pela lei nº 130/2015, de 4 de setembro.

Agora importa perceber qual o real significado destas alterações legislativas.

No que diz respeito ao procedimento criminal quanto aos crimes de natureza sexual, continuam os mesmos a depender de queixa da vítima, mas agora foi introduzida a possibilidade de o Ministério Público avançar com o procedimento criminal sempre que o interesse da vítima o aconselhe, podendo fazê-lo no prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento dos factos. O que significa que, esta tipologia de crimes não tem natureza pública porque continua a depender de queixa, mas o Ministério Público, tendo conhecimento da factualidade pode, tendo em conta as circunstâncias concretas da vida da vítima, avançar com o processo-crime. Ou seja, o procedimento criminal passou a ficar dependente da notícia do crime e da avaliação que o Ministério Público faz do caso concreto para o que conta inevitavelmente a sensibilidade e sensatez de quem conduz a ação penal. Assim, o legislador persistiu sem atribuir natureza pública aos crimes de natureza sexual praticados contra pessoa adulta, mas avançou timidamente com a possibilidade da existência do procedimento criminal sem queixa da vítima nos casos em que se entenda dever acautelar o interesse da mesma. Nesta senda, cabe a questão de refletir se todas as vítimas não deveriam ter direito a uma igualdade de tratamento, independentemente da idade e das sequelas do próprio crime praticado, para além das diferenças de sexo, género, nacionalidade condição económica, etc.

Por outro lado, ao ter sido atribuído o prazo de um ano para o Ministério Público instaurar o procedimento criminal quando o interesse da vítima assim o exige, para além da possibilidade já existente quanto aos crimes sexuais praticados contra menores e também quando resulte o suicídio ou morte da vítima, a alteração legislativa traduz-se numa maior possibilidade temporal de exercer a ação penal por parte do Ministério Público e de se fazer Justiça quase sempre difícil de alcançar nesta tipologia de crimes, mas que na verdade deveria também ter sido contemplada para as próprias vítimas por forma a terem mais tempo para refletir e decidir quanto à apresentação da queixa, mas que continuam confinadas ao prazo de seis meses para exercerem o seu direito de queixa.

Foi ainda prevista a presunção da insuficiência económica para as vítimas de crimes sexuais, possibilidade já anteriormente existente para as vítimas de violência doméstica, o que é um claro reconhecimento da necessidade de acesso ao Direito e à Justiça por parte das vítimas desta tipologia de crimes e de que esse acesso seja assegurado com carácter de urgência, prescindindo-se assim da prova da carência económica com toda a morosidade que lhe estava inerente.

Relativamente à alteração do Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável, foi também explicitamente assegurado o acompanhamento prioritário para seguimento por técnico de apoio às vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, tal como já existia para as vítimas de violência doméstica, o que se afigura de extrema importância face à gravidade e impacto que esta tipologia de crimes tem nas suas vítimas, que necessitam de ser esclarecidas por técnicos devidamente qualificados para o efeito de modo a serem informadas dos seus direitos, na/s forma/s como devem adotar procedimentos básicos e elementares para a recolha de prova e outras práticas que devem assumir para sua proteção, bem como no pedido de aplicação de medidas de coação que contenham o agressor da prática de novo crime contra a mesma e/ou outra vítima, entre outras.

Em suma, continua-se a verificar uma frontal violação do princípio da igualdade constitucionalmente previsto, já que não se percebe a diferenciação entre a natureza jurídica desta tipologia de crimes quando praticado contra crianças, situação em que o crime é público, e quando praticado contra pessoas adultas, situação em que o crime tem natureza semipública.

Acresce que, as tímidas alterações legislativas refletem a persistência em não se reconhecer que estamos perante crimes maioritariamente praticados contra mulheres e que exigem um conjunto de medidas legislativas capazes de pôr termo à cultura patriarcal existente, já amplamente reconhecida pela Convenção de Istambul a que Portugal se vinculou em defesa dos Direitos Humanos das Mulheres, mas que não é capaz de tomar uma política legislativa capaz de inverter o paradigma até hoje existente.

Na verdade, estamos ainda muito longe de alcançar um conjunto de medidas efetivas que protejam as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, pois, a alteração legislativa teima, entre outras coisas, em manter a natureza jurídica do crime e procede a pequenas alterações, mas, ainda assim, relevantes para o apoio às suas vítimas que podem e devem pedir ajuda sempre que sejam alvo desta tipologia de crime verdadeiramente hedionda.

Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.