Professor de Genética na Universidade de Ferrara, o italiano Guido Barbujani, autor do livro Como Éramos (edição Vogais), entrega-nos uma história das nossas origens. O livro do especialista em questões da evolução da população humana aborda como “é importante olharmo-nos de frente. Literalmente: o nosso álbum de família, os restos e os rostos de quem passou pelo planeta antes de nós, contêm uma mensagem que ao longo das gerações chegou até nós e conta como éramos”, sublinha o cientista na introdução à obra, para acrescentar: “a capacidade que adquirimos de analisar a fundo o ADN de tantas pessoas, passadas e presentes, e de interpretar as suas diferenças, aqueles restos dão-nos uma ideia das migrações, dos intercâmbios, dos processos de adaptação ao ambiente que fizeram de nós o que somos”

Graças ao trabalho de arqueólogos e paleontólogos que reconstruíram pacientemente os esqueletos dos nossos antepassados, e também com a contribuição dos geneticistas que estudaram o seu ADN, três artistas conseguiram criar esculturas hiper-realistas que revelam as características físicas dos primeiros homens, desde Lucy, a famosa Australopithecus afarensis, à múmia “gelada” de Ötzi.

Através de 14 rostos – aos que se junta o de Charles Darwin, o Homo sapiens que abriu a porta para o longo caminho da descoberta de onde vimos -, o geneticista italiano conta-nos o dia a dia desses homens e mulheres. Para cada um, traça-lhes o percurso de vida, indica a sua origem, revela o mundo onde viveu e para onde viajou, sem nunca também esquecer os, muitas vezes surpreendentes, pormenores da descoberta da sua sepultura.

De Como Éramos publicamos o excerto abaixo:

Pequenininhos: Homo floresiensis

Flo - há 60 mil anos

Descoberta por uma expedição australiano-indonésia em 2013, na caverna de Liang Bua, na ilha das Flores, na Indonésia.

Flo é um esqueleto quase completo, privado de caixa torácica.

No seu conjunto, na caverna de Liang Bua, apareceram os restos de 14 indivíduos.

No dia 27 de outubro de 2004, a revista Nature publicou um artigo assinado, entre outros, por Peter Brown e Mike Morwood, paleoantropólogos da University of New England, em Armidale, na Austrália. O título era «Um novo hominóide de pequena estatura do Pleistoceno Superior das Flores, Indonésia». Tinha sido descoberta uma nova espécie humana. A Nature é uma revista inglesa e naquele dia estava nos Estados Unidos. Quando acordei, o artigo tinha saído no máximo há cinco horas, tantas quantas separam o fuso horário de Londres do de Tampa. Escrevi de imediato a Brown, perguntei-lhe se lhe interessava que colaborássemos, para ver se no seu fóssil havia ficado ADN utilizável. Respondeu-me gentilmente que não. Alguém me tinha precedido e o precioso achado já estava em viagem para outro laboratório. Não foi uma viagem feliz: dos fósseis, encontrados em condições extremamente precárias, não se conseguiu extrair o ADN da nova espécie, Homo floresiensis.

Evitei até aqui utilizar termos geológicos para não sobrecarregar o relato, mas, para nos compreendermos, o Pleistoceno vai de há 2,5 milhões a 11 700 anos. O homem das Flores ou, melhor, a mulher de Flores, pois o primeiro esqueleto encontrado na caverna de Liang Bua pertence a uma mulher que morreu com cerca de 30 anos (o mais completo, ao que se seguiriam fragmentos de outros 13) que parecia ter apenas 18 mil anos.

Porém, a pequena senhora das Flores, tal como lhe chamaram ou, mais resumidamente, Flo, tem características espantosas para a sua tenra idade: a altura, de 106 cm e o volume craniano, de 400 cm3, são as de um pequeno chimpanzé. No seu tempo, na Europa o sapiens dedicava-se há milénios a maravilhosas atividades artísticas (falaremos disso no próximo capítulo), tais como as pinturas rupestres de Chauvet, com os seus rinocerontes e os seus leões. Já na Indonésia, movimentavam-se, talvez em contacto com populações de sapiens, seres humanos semelhantes a Lucy, isto é, a alguém que viveu três milhões de anos antes.

Guido Barbujani
O italiano Guido Barbujani, professor de Genética na Universidade de Ferrara. créditos: Wikipédia Commons

Observemos bem Flo. A mão esconde a parte inferior do rosto, onde, porém, se vê que não há queixo. É apenas uma das muitas características arcaicas do seu esqueleto. Até os seus dentes são particulares: os caninos e os pré-molares assemelham-se aos de formas humanas muito antigas, enquanto os molares já são modernos. Esta combinação de coisas antigas e coisas novas está presente em todos os seis indivíduos de Homo floresiensis para os quais dispomos de dentes, mas em nenhuma outra forma humana. Tinham braços longos e pernas curtas, tais como os macacos e os australopitecos; também tinham os pés com um tamanho desproporcionado em relação ao resto do corpo.

Os australianos que trouxeram à luz o esqueleto de Flo começaram de imediato a chamá-los hobbit, a ela e aos seus 13 compadres, em homenagem aos pequenos protagonistas do romance fantástico homónimo de J. R. R. Tolkien. Pensaram mesmo em batizar a nova espécie Homo hobbitus, embora depois tenham mudado de ideias. No entanto, em 2012, os herdeiros de Tolkien advertiram qualquer um contra o uso da palavra hobbit para anunciar a nova descoberta. Conseguiram mesmo bloquear a distribuição de um filme intitulado A Idade dos Hobbit que uma produtora americana tencionava lançar. Assim, oficialmente, o Homo floresiensis não pode ser chamado hobbit, embora todos o façam. Um episódio estranho, pouco simpático. Que, como veremos, não será o único nesta história.

A primeira questão que se levantou foi se Flo era um expoente normal de uma nova espécie ou, talvez, um sapiens com graves defeitos congénitos. Os outros esqueletos são muito fragmentários, pelo que o debate se centrou no único relativamente completo.

Foram propostas diversas hipóteses: que Flo sofria de microcefalia, de síndrome de Down ou de uma disfunção da tiroide. Qualquer uma tinha algum fundamento, porém, por fim, foram todas descartadas. A microcefalia é uma doença em que o crânio não se desenvolve adequadamente. Pode ter diversas durante a gravidez, tais como a toxoplasmose, a rubéola e a varicela. Em todos os casos, as reduzidas dimensões do crânio impedem que o cérebro se desenvolva como deveria e, muitas vezes, provoca um grave atraso mental. No entanto, um estudo mais cuidadoso do crânio de Flo, demonstrou que os lobos frontais e temporais do cérebro sã, pequenos, sim, mas proporcionais em relação aos outros, em contraste com o que se observa nos pacientes com microcefalia.

A presença de um cromossoma a mais em relação à condição normal, o cromossoma 21, provoca a síndrome de Down. De facto, os indivíduos com síndrome de Down são realmente de baixa estatura e podem ter, embora nem sempre, uma leve microcefalia. Em nenhum caso, porém, são privados de queixo,

como Flo, e têm dentes como os seus. Até a hipótese de que fosse um sapiens com alguma anomalia cromossómica foi abandonada, assim como a de que as suas pequenas dimensões pudessem depender de um défice de iodo, provocado, por sua vez, por um mau funcionamento da tiroide. No final, poucos duvidam de que o Homo floresiensis seja uma espécie à parte e não uma variante patológica do sapiens. Ian Tattersall está até convencido de que deveria ser atribuído a um género diferente do nosso, que não Homo. Confio nele, mas, de momento, é este o seu estatuto.

Formas animais de pequenas dimensões não são raras e, muitas vezes, encontram-se em ilhas. Da Sicília e de Malta chegam-nos os restos de um elefante extinto — Palaeoloxodon falconeri —, com uma altura no dorso de menos de um metro; a sua grande abertura nasal trocada pela de um olho, poderia ter inspirado o mito dos ciclopes. Esqueletos de outros elefantes anões foram encontrados em Chipre, em Malta, nas ilhas Cíclades, em Sulawesi na Indonésia e, vejam só, também nas Flores: o Stegodon. Na Sardenha e nas ilhas do Canal da Califórnia, ao largo da costa californiana, havia, por sua vez, pequenos mamutes.

Homo floresiensis.
créditos: Vogais

Ainda nas ilhas do Canal da Califórnia vive até agora o canídeo mais pequeno, o urocyon, enquanto em algumas ilhas das Filipinas é típico um cervo anão, o sambar-malhado-das-Filipinas. Poderíamos continuar por aí fora. Por exemplo, o mais pequeno de todos os tigres conhecidos, extinto no início do século XX, era o tigre de Bali, numa outra ilha. São todos exemplos de nanismo insular, isto é, da tendência, sobretudo dos mamíferos, para assumir dimensões reduzidas em regiões isoladas. Há diversas explicações para isso acontecer. Quando se vive em terra continental e não se encontra alimento suficiente, pode-se deslocar para qualquer outra parte, mas nas ilhas não, especialmente se são pequenas.

Assim, reduzir o seu volume corpóreo (através da seleção natural, como é óbvio) permite sobreviver com poucos recursos: um elefante africano tem necessidade de muito alimento, o elefante anão siciliano necessitava de muito menos. Por outro lado, também é possível que indivíduos mais pequenos sejam o produto de uma deterioração genética; significa que quando restam quatro gatos (ou quatro mamutes), no final, são constrangidos a reproduzir-se entre si, com todas as consequências negativas da consaguinidade. Se esta história soa familiar, é porque tal fenómeno foi discutido, no Capítulo 6, a propósito das últimas comunidades neandertalenses. Até a última espécie humana identificada, o homem de Luzon, descrito em 2019, por Florent Détroit e colaboradores, e extinto há talvez 67 mil anos, vivia numa ilha, nas Filipinas, e era, pelo que os pouquíssimos vestígios nos permitem afirmar, muito baixo: menos de 1,50 metros.

Por isso, pouco há a fazer: Flo não era uma bizarria isolada da natureza, mas fazia parte de uma população de gente como ela. Gente, porém, que, na sequência de estudos mais precisos, situámos mais atrás no tempo do que se pensara inicialmente, há cerca de 60 mil anos. Porém, mesmo que desloquemos a data alguns milénios, os termos da questão não mudam: de onde vieram, de que modo evoluíram, como viviam e porque se extinguiram estes seres humanos tão próximos de nós no tempo, mas de aspeto ainda tão primitivo? Uma coisa de cada vez.

Ninguém põe em dúvida que tivessem vindo de África, como todos: viemos todos de lá. A verdadeira questão é de saber quando vieram e, assim, de qual das outras formas humanas derivaram. A presença de características arcaicas, especialmente nos ossos do pulso, fez suspeitar que os seus antepassados fossem precisamente australopitecos. Seria estranho, no entanto. Todos os restos de hominóides encontrados fora de África, a partir de há pouco menos de dois milhões de anos, pertencem ao géneroHomo, logo, ao contrário dos australopitecos, fabricavam ferramentas de pedra.

É difícil imaginar que algum australopiteco tenham conseguido deslocar-se para tão longe, sem outra proteção contra os perigos da viagem senão as mãos para lançar pedras e as pernas para fugir, e sem deixar vestígios da sua passagem por toda a Ásia. Pelo contrário, parece mais lógico pensar que se trata de um grupo que se tenha desprendido de algumas formas arcaicas de Homo e que, chegado à ilha, se tenha reduzido em dimensão e, assim, desenvolvido localmente as suas características peculiares. Esta forma arcaica poderia ser o Homo erectus, que está igualmente documentado nas próprias Flores. Na verdade, o erectus tinha uma dentadura muito semelhante ao floresiensis, embora pudesse ter 1,80 metros de altura e, por isso, não parecendo exatamente o antepassado ideal para gente com pouco mais de metade da altura.

Homo floresiensis
Caverna na Indonésia, na ilha das Flores, onde foi descoberto o esqueleto do Homo floresiensis. créditos: Wikimédia Commons

Em alternativa, segundo uma análise recente dos dentes e do crânio por parte de Mana Dembo e colaboradores, o antepassado poderia ser uma espécie africana mais antiga e não conhecida, talvez a mesma da qual derivou o Homo georgicus de Dmanisi, do qual falámos no Capítulo 3. Este antepassado poderia já ser, por si, pequeno, e assim, para explicar a baixa estatura de Flo não haveria necessidade de pensar numa forma particularmente marcada de nanismo insular. De qualquer forma, a ilha das Flores era já uma ilha quando foi habitada pela primeira vez. Assim, teremos de admitir que os antepassados de Flo haviam encontrado uma maneira de superar um troço de mar de pelo menos 24 quilómetros para a alcançar, talvez agarrados a troncos flutuantes.

Em 2015, para procurar perceber mais alguma coisa, Serena Tucci, hoje docente em Yale, na época doutoranda no nosso grupo em Ferrara, foi pessoalmente às Flores. Haviam-nos dito que ainda há pessoas muito baixas na ilha. Esperávamos que, ao estudar o seu ADN, pudéssemos identificar alguma variante ausente nas outras populações, talvez um legado evolucionista de Homo floresiensis. Foi uma viagem aventurosa, cheia de acontecimentos inesperados. Na fase inicial de negociações com os habitantes, indispensáveis para estabelecer um clima de confiança e colaboração, ofereceram a Serena uma misteriosa bebida e ela, por gentileza, não pôde eximir-se a dar uns goles; ficou doente.

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Tratou-se e regressou às Flores. Graças às ótimas relações criadas na primeira viagem, obteve amostras de 32 pessoas, cuja estatura média é de 145 centímetros. Os seus genomas são interessantes, mas não nos revelaram cenários evolucionistas inéditos. Contêm pequenos vestígios de ADN denisovano, tal como aliás os de todas as populações vizinhas, mas nada que faça pensar numa herança específica de Homo floresiensis. No entanto, são os genomas de gente muito baixa e, por isso, fomos ver se continham as variantes do ADN estudadas noutras populações de pigmeus, em África e em outros lugares. A resposta é um pouco sim e um pouco não. A nossa estatura depende de muitos fatores, em parte genéticos e em parte ligados à alimentação e ao ambiente em geral: não há um ou dois genes claramente reconhecíveis e responsáveis pela nossa altura, mas muitos genes que se combinam de muitas maneiras diferentes. Em suma, geneticamente, existem muitos modos diferentes de sermos altos ou baixos.

Aparentemente, porém, as pessoas de pequena estatura de Flores evoluíram sob uma forte pressão seletiva. Podemos reconhecer os efeitos desta pressão no genoma, embora não possamos dizer exatamente em que genes em particular se exerceu, nem quando ocorreu. No entanto, poderia ser uma outra evidência, indireta, do facto de que sobreviver nas ilhas é mais fácil se não se for muito grande. Se, no futuro, não se conseguir obter ADN dos fósseis do Homo floresiensis, e tal parece francamente difícil, nunca saberemos se alguns fragmentos do seu ADN chegaram até nós, nem se isso tem algo que ver com a baixa estatura de muitos dos atuais habitantes das Flores.

Aquela expedição a Flores de Serena Tucci é uma história estranha, mas a mais estranha de todas ainda irei contar. Parece que houve desavenças entre a componente australiana e a indonésia do grupo que desenterrou os restos mortais de Flo. Parece que os australianos atuaram com excessiva autonomia, pelo menos, segundo os indonésios. Por exemplo, não reconheceram entre os autores do artigo alguns investigadores que também haviam participado no trabalho de campo. É um facto que, em 2005, um influente paleontólogo indonésio, Taeku Jacob, levou para casa os achados para os estudar à vontade; Jacob era um dos mais convictos defensores da hipótese de que Flo não era um membro de uma nova espécie humana, mas um sapiens com alguma grave doença congénita. Quando os restituiu, faltavam duas pernas, sem contar que numerosos ossos, especialmente da bacia, estavam danificados. Jacob defendeu-se, dizendo que haviam sido danificados durante o transporte, mas a imprensa anglófona não acreditou nele e surgiu a polémica. No meio daquele sarilho, o governo indonésio decidiu restringir o acesso aos fósseis e não permitiu que fossem prosseguidas as escavações na caverna de Liang Bua. Apenas após a morte de Jacob, dois anos depois, os cientistas não indonésios puderam retomar o trabalho acerca do Homo floresiensis.