“Os nossos filhos aprendem com a realidade. Para poderem captá-la e interiorizá-la, necessitam de relações interpessoais, contacto com a natureza e com a beleza, e a motivação para agir com sentido e consciência. Precisam de sensibilidade, empatia, espírito crítico e criativo. Mas, neste mundo cada vez mais dominado pela artificialidade dos ecrãs, é fácil que sofram de um perigoso défice de realidade”. Este é o ponto de partida para o livro Educar na Realidade (Planeta de Livros), obra da canadiana, radicada em Barcelona, Catherine L’Ecuyer, especialista em Educação e Psicologia.

A autora – uma das vozes mais respeitadas relativamente à educação, em Espanha – desmonta uma série de mitos e mostra que a melhor maneira de educar os nossos filhos, perante (e para) as novas tecnologias, acontece na realidade. Ou seja, que a melhor preparação para o mundo online é o mundo offline.

Em Educar na Realidade, Catherine L’Ecuyer procura responder a perguntas como as razões subjacentes a encontrarmos cada vez mais crianças mais impacientes e agitadas? Crianças que perguntam: “A que é que brinco agora?” e que dizem, com o quarto repleto de brinquedos: “Não tenho nada para fazer!...”

Um livro que “não demoniza as novas tecnologias (NT)”. “Não somos nem tecnofóbicos nem refratários do progresso tecnológico. É claro que o bom uso das NT numa pessoa adulta e madura pode trazer numerosos benefícios. Mas se nos afastarmos dos lugares‐comuns que reduzem tudo ao absurdo e simplista dilema de estar ‘a favor ou contra’ as NT, podemos abrir‐nos a gradações mais ricas e questionarmo‐nos quanto às consequências do seu uso na infância e na adolescência”, assim sublinha a autora na introdução à obra.

Ecrãs na primeira infância?

“Não há dados que fundamentem a tese segundo a qual as crianças pequenas necessitam, para poder aprender, de familiarizar‐se com a tecnologia. O facto de as crianças gostarem de algo, ou de os pais pensarem que algo lhes agrada, não quer dizer que esse algo seja educativo, nem sequer que esse algo seja bom para eles. As crianças também gostam de rebuçados”.

Linn & Poussaint

Um estudo realizado no Reino Unido em 20121 com crianças dos zero aos quatro anos revela que 27% delas usam um computador e 23% usam internet. A atividade principal dos que usam a internet consiste em jogos na rede (74%) e o principal site da web visitado é o Cbeebies (61%), no qual podemos encontrar conteúdos que, segundo este portal, “permitem divertirem‐se e, ao mesmo tempo, fomentar a aprendizagem”.

Aprendem através do ecrã? Os estudos demonstram que as crianças pequenas não aprendem palavras ou outros idiomas com os DVD, por muito “educativos” que aleguem ser. Vários estudos reportam o efeito deficitário do vídeo – chamado Video Deficit Effect –, que equivale a uma espécie de défice de realidade nas aprendizagens através dos ecrãs, comparando‐as com uma demonstração em direto.

Vários estudos estabelecem, inclusivamente, uma relação entre o consumo dos DVD pretensamente educativos e uma diminuição no vocabulário dos bebés e no seu desenvolvimento cognitivo. Também há estudos que estabelecem uma relação entre o consumo de ecrã durante os três primeiros anos e problemas de atenção aos sete. Mesmo prestigiados pediatras norte‐americanos lançaram a mensagem Primum non nocere (“Primeiro, não prejudicar”), máxima atribuída a Hipócrates, aplicada no campo da medicina, para consciencializar a comunidade científica sobre a importância de desincentivar o consumo de ecrã durante a infância.

“A capacidade de os nossos filhos raciocinarem sobre a informação na internet resume-se a uma palavra: desoladora” – Michel Desmurget, neurocientista
“A capacidade de os nossos filhos raciocinarem sobre a informação na internet resume-se a uma palavra: desoladora” – Michel Desmurget, neurocientista
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Quando começaram a publicar‐se estes estudos, um grupo de pais pediu à Baby Einstein que retirasse dos DVD dirigidos a crianças pequenas as alegações de que eram educativos. A Baby Einstein concordou em fazê‐lo, devolvendo o dinheiro aos pais que tinham comprado os seus produtos.

De facto, a Academia Americana de Pediatria recomenda que se evite que as crianças vejam ecrãs até aos dois anos, por considerar que os estudos indicam que estes produzem mais efeitos negativos do que positivos. A Academia realça, por outro lado, que os estudos recentes não encontraram provas de que, do ponto de vista educativo, seja benéfico em crianças menores de dois anos de idade; pelo contrário, vários estudos alertam para o perigo potencial dos ecrãs para a saúde e para o desenvolvimento das crianças deste grupo etário. Para crianças acima dos dois anos, a Academia recomenda limitar o tempo de ecrã a menos de duas horas por dia, tendo o máximo de cuidado com os conteúdos que os jovens e as crianças veem. É preciso acrescentar que as regras apontadas pelas associações de pediatria são critérios sanitários de saúde pública, não critérios educativos, pelo que devem ser considerados “regras de mínimos”, não de excelência.

Para um bom desenvolvimento das suas personalidades, nos seus primeiros anos as crianças pequenas precisam de relações interpessoais com o seu principal cuidador. O tempo passado no mundo virtual é tempo que se retira a essas experiências humanas. O ecrã converte‐se, por isso mesmo, num obstáculo à criação do laço da vinculação. A questão do uso das NT por parte das crianças não se pode reduzir a um “é bom?” ou “é mau?”. Temos de compreender que, quando uma criança está diante de um ecrã, está a deixar de fazer uma série de atividades, algumas das quais podem ser necessárias para o seu bom desenvolvimento e podem oferecer‐lhe mais como pessoa. Não se pode reduzir a questão tecnológica a “não causar demasiado prejuízo”. Temos de nos questionar sobre se a criança sai a ganhar com essa troca.

As crianças precisam de realidade. E precisam de uma educação humana. Em 2011, a Academia Americana de Pediatria alertava1 que as crianças pequenas aprendem com as interações com humanos, não com ecrãs. Necessitam que o olhar dos seus pais e dos professores faça a calibragem da realidade. Por exemplo, imaginemos que um homem adulto entra numa sala de infantário para arranjar a luz, sobe a um escadote e solta um palavrão ao deixar cair uma ferramenta ao chão. Para onde olham todos os miúdos? Para a ferramenta? Para o homem? Não. As crianças vão olhar para o rosto da sua professora, para interpretar o que aconteceu. Se a professora não lhe der importância, eles não darão importância; se franzir o sobrolho a indicar que aquilo não se faz, eles vão chegar à mesma conclusão; se esta se rir, eles farão o mesmo. E à noite vão contar o sucedido aos pais, adotando as mesmas reações da professora. O principal cuidador da criança é o intermediário entre a realidade e ela. Dá sentido às aprendizagens. Um ecrã não pode assumir esse papel, porque não faz a calibragem da informação à criança. A criança recebe tal como é, sem filtro, o que o ecrã emite.

Estudos mais recentes sugerem que a regra dos dois anos poderia, eventualmente, passar a ser de três ou quatro anos. Por exemplo, um estudo longitudinal (realizado ao longo de dez anos) estabelece uma relação entre o consumo de televisão em crianças de 29 e de 53 meses e uma diminuição na motivação para aprender na escola, uma diminuição nos resultados de matemática, um aumento das vítimas de assédio escolar e da massa corporal das crianças de dez anos. Noutro estudo, faz‐se a relação entre o consumo de televisão em miúdos de cinco anos com problemas de atenção e concentração aos 11. Esses estudos indicam que os efeitos da televisão não são apenas prejudiciais em crianças abaixo dos dois anos, mas podem perdurar no tempo.

Portanto, o ecrã não contribui para o bom desenvolvimento das crianças pequenas. Muito pelo contrário. Os neuromitos, alimentados pelas empresas que comercializam produtos dirigidos a um público infantil, afastaram‐nos da realidade da aprendizagem das crianças.