É comumente trazido a público o enorme esforço impregnado pelas vítimas para denunciarem o crime de violência doméstica atendendo à dinâmica das relações abusivas e à exigência do processo penal no que tange ao rigor da prova já que o sistema processual penal português assenta no princípio constitucional de que todos os cidadãos são inocentes até prova em contrário.

O respeito por este princípio conduz a uma exigência e rigor na apreciação da prova existente difícil de suportar para as vítimas ao longo de todo o processo penal que para as mesmas se afigura moroso e revitimizante para as próprias, pois são invariavelmente impelidas ao relembrar e justificar os factos ocorridos e denunciados e ainda a juntar meios de prova que corroborem e demonstrem a veracidade dos seus depoimentos.

Certo é que, ultrapassado o calvário de um processo judicial e conseguida a condenação do agressor, algumas vítimas questionam a final do que valeu a Justiça que foi feita.

O questionamento tem que ver com a capacidade que alguns agressores têm de passar pelo sistema judicial, serem condenados e continuarem a agir como se nada lhes tivesse acontecido.

Efetivamente existem agressores condenados que se refinam com o decurso do processo judicial, pois estando atentos às exigências da prova e outras questões formais, incluindo as lacunas da lei, passam a tirar partido das vicissitudes do sistema judicial usando-as para se apresentarem eles como vítimas do sistema e das verdadeiras vítimas de violência.

Por isso, assistimos a vítimas, familiares, pessoas amigas e até profissionais próximos das vítimas que são confrontados com processos-crime apresentados pelos agressores em que estes se apresentam como vítimas como forma de retaliação. Da mesma forma, assistimos ao habitual argumento da alienação parental utilizado pelos agressores que abordam a violência doméstica nos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos menores como sendo um facto pretérito utilizado maioritariamente pelas mães para se vingarem e consequentemente afastarem os filhos. Num ápice, os agressores passam a vítimas e diabolizam quem verdadeiramente sempre sofreu e continua a sofrer nestas suas manobras.

Este modo de agir dos agressores é bem conhecido das vítimas que percorrem o sistema judicial e, bem assim, das pessoas que as apoiam, sendo que é e será sempre necessária uma correta identificação, interpretação e valoração desta outra forma de violência por parte dos Magistrados do Ministério Público e dos Juízes, pelo que é crucial continuar a apostar na formação dos profissionais de modo a termos cada vez mais um sistema judicial efetivamente preparado para combater a violência doméstica.

De igual forma, é crucial que as vítimas sejam apoiadas pelos familiares, amigos e profissionais que acompanham os casos, porque só assim será possível acreditar que é possível continuar a demanda judicial, fazer valer a verdade e fazer-se Justiça.

Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.