“O amor não deve doer. Não deve fazê-la sentir-se esgotada, em constante estado de alerta, ofuscada nas suas vitórias e definida pelas suas derrotas. Não deve pensar que é tudo culpa sua, que é imperfeita, que está estragada ao ponto de nunca mais voltar a ser feliz. Isso não é amor – é uma relação tóxica”. As palavras atrás transcritas a partir da apresentação ao livro da psicóloga clínica Diana Cruz, sintetizam as razões subjacentes à escrita de Não é Amor, é Uma Relação Tóxica (edição Manuscrito). Nas páginas do livro prefaciado pelo psiquiatra Daniel Sampaio, encontramos um roteiro rumo à libertação. O guia escrito por Diana Cruz ajuda as leitoras (e também os leitores) a identificarem e eliminarem a toxicidade das suas vidas, numa alusão aos regimes detox que encontramos na alimentação: “há alguns anos, ouvíamos esta palavra [“tóxica”] quando se referia alimentos ou compostos químicos. Com o passar do tempo esta ideia de “toxicidade” alastrou-se ao campo emocional e relacional e começámos a compreender a importância de cuidar as emoções e como viver um relacionamento não é garantia de bem-estar emocional ou físico”, sublinha a psicóloga.

Com Diana Cruz conversamos sobre relações carentes de respeito e que confundem amor com um estilo de comunicação hostil, culpabilizante e volátil, que gera ansiedade, medo, dúvida ou angústia. Também apontamos novas metas, aquelas que permitem ultrapassar o sofrimento. Este, de acordo com a nossa entrevistada, “não precisa de ser, nem é eterno. Com muito trabalho, coragem e ajuda, é possível transformar esse grande sofrimento em algo verdadeiramente importante”.

De muito repetirmos palavras e expressões arriscamos destituí-las de sentido. Como podemos definir uma relação tóxica?

Relações tóxicas são aquelas em que o respeito, os afetos e o bem-estar do outro não são considerados, apesar de ser frequente ouvir, quando está numa relação destas que o Amor “está acima de tudo e não importa que não seja como os outros o esperam”. Esta justificação de um Amor intenso e diferente de todos alberga em si, no caso das relações tóxicas, comportamentos que instrumentalizam o parceiro, alimentam o seu medo e o esgotam emocionalmente. É uma relação onde, no fundo, só há lugar para as necessidades de um dos elementos e o outro parece ter a responsabilidade de corresponder a todas essas necessidades, ignorando as suas próprias. Ao ler Não é Amor, é Uma Relação Tóxica, os leitores poderão compreender como é que isto acontece na prática, intoxicando a relação e a pessoa que experiência uma relação com estas características.

No seu livro, a Diana Cruz trata as relações tóxicas numa analogia com a alimentação, nomeadamente com uma dieta de perda de peso. O primeiro capítulo do livro denomina-se “Relação Tóxica: os quilos a mais a eliminar”. Porque procurou esta analogia?

De um modo geral, a minha busca foi fundamentalmente por analogias que pudessem ser facilmente compreendidas pelos leitores. Este é um tema difícil de expor, na medida em que, a maioria das pessoas que têm estas experiências consideram quase impossível de descrever o contexto da relação “dentro de portas” e o sofrimento que se vai agravando com o passar do tempo.

A analogia com a alimentação surgiu em si mesma do termo “tóxica”:  há alguns anos, ouvíamos esta palavra quando se referia alimentos ou compostos químicos. Com o passar do tempo esta ideia de “toxicidade” alastrou-se ao campo emocional e relacional e começámos a compreender a importância de cuidar as emoções e como viver um relacionamento não é garantia de bem-estar emocional ou físico.

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Acredito que estas ideias se tornaram mais claras porque a sociedade tem vindo a encarar de outra forma o estado civil de cada um, a independência das mulheres e a evolução do conceito de Amor, numa sociedade que permite que cada pessoa escolha com quem quer estar e durante quanto tempo, por exemplo.

Então, pareceu-me uma boa analogia, precisamente porque é algo com que todas as pessoas se podem identificar: conseguimos compreender como um alimento nos pode fazer tão mal, ou mesmo adoecer, como também compreendemos quais os alimentos que nos nutrem sem nunca nos trazerem mal-estar. O amor pertence a estes últimos, que nutrem e dão energia – não prejudicam, nem envenenam.

Para além disso, esta analogia permite também pensar nos casos em que a comida e a alimentação deixam de ser comportamentos adaptativos e de autopreservação, para serem problemas psicológicos dolorosos e graves, associados à identidade da pessoa que os sente e à aceitação de si mesma. Também nas relações tóxicas a identidade pessoal e a aceitação podem ficar comprometidas, como tive a oportunidade de mostrar ao longo da obra.

Tem o prefácio do seu livro escrito pelo psiquiatra Daniel Sampaio. Daquilo que aí escreveu, o que mais a tocou?

O Professor Daniel Sampaio é um mentor e, sobretudo, um amigo de longa data, com quem tenho o privilégio de partilhar o meu caminho profissional, mas também uma importante parte da minha vida pessoal. A escolha do Professor para prefaciar este livro foi simplesmente natural, não poderia ser de outra maneira; no meu pensamento não havia outras hipóteses e estou certa de que ele sente do mesmo modo.

Sobre a autora

Diana Cruz é psicóloga clínica e terapeuta familiar formada pela Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar e doutorada em Psicologia Clínica da Família pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Grande parte da sua atividade clínica é dirigida a adultos e famílias. Tem-se dedicado à investigação e publicação de artigos científicos em livros na área da psicologia e saúde mental. Está empenhada na divulgação destes temas, assim como no desenvolvimento pessoal, junto do público geral, sobretudo através da escrita.

Nesse sentido, não lhe posso dizer que parte do seu prefácio me comoveu mais. Posso sim, assumir que me comoveu muito a alegria e satisfação com que leu um livro escrito por mim, remetendo para o seu conhecimento da pessoa que sou e do trajeto que tenho feito, reconhecendo a sua solidez.

Comoveu-me acima de tudo, enquanto autora, mas sobretudo pessoa, a conversa telefónica que tivemos quando terminou a sua leitura, ainda antes de me enviar o prefácio, em que discutimos as relações tóxicas, o gosto comum pela escrita e sugestões de leituras para as nossas férias de verão, o que é já uma tradição.

O título do seu livro diz-nos “não é amor, é uma relação tóxica”. Em si, “amor” e “relação tóxica” parecem-nos estar nos antípodas dos afetos. Podem ser confundíveis?

A principal mensagem que quero transmitir com o meu livro é precisamente a de que uma relação onde alguém se sente desrespeitado nos seus valores, crenças e necessidades, não é uma relação de amor. Assim, como não podemos chamar de amor a uma relação marcada por um estilo de comunicação hostil, culpabilizante e volátil, que gera ansiedade, medo, dúvida ou angústia. “Amor” e “Relação Tóxica” não são conciliáveis e essa é a dolorosa descoberta de quem começa um relacionamento considerando-o maravilhoso para logo descobrir que ele tem estas características.

Que traços são subjacentes ao agressor? O narcisismo prepondera?

As principais características do parceiro tóxico são a dificuldade em considerar o parceiro como alguém igual, que também tem desejos, motivações e necessidades ou limites. Isto é, nestas relações existe pouca empatia por parte do parceiro tóxico e este tende a instrumentalizar o companheiro, exigindo que ele corresponda às suas expectativas e necessidades com disponibilidade total e imediata ainda que isso o prejudique diretamente.

Para além disso, a fraca tolerância à frustração, a instabilidade emocional, por vezes até uma certa imaturidade emocional, a comunicação crítica e culpabilizante e a negação repetida da responsabilidade por qualquer erro ou acontecimento negativo na relação.

O egocentrismo e características narcisistas habitualmente são muitíssimo comuns, e como a leitura pode clarificar, responsáveis pelas características do ciclo relacional tóxico, tal como o proponho.

As principais características do parceiro tóxico são a dificuldade em considerar o parceiro como alguém igual, que também tem desejos, motivações e necessidades ou limites.

Rejeita que “este jogo interativo de aproximação e distância”, assim lemos no livro, seja um problema de dependência e codependência. Porquê?

Esta expressão é do Professor Daniel Sampaio no prefácio e não minha, embora sinta que retrata bem o que descrevo. As relações tóxicas, sobretudo, as mais traumáticas, são marcadas por várias tentativas rutura e reaproximações constantes, que podem tomar meses ou mesmo anos. Isto acontece porque estas relações começam com uma fase de grande idealização e, posteriormente, se degradam através de padrões de comportamento que geram dúvida e insegurança, deixando as vítimas confusas, angustiadas e com dificuldade em compreender o que verdadeiramente se passa e qual a responsabilidade de cada elemento do casal para esse degradar relacional.

Lemos no livro que “parte da proliferação das relações tóxicas associa-se ao modo como encaramos o amor na atualidade”. De que forma estamos presentemente a encarar o amor?

Vivemos numa época muito polarizada. Nunca se falou tanto em liberdade individual e nunca se utilizou tanto o “ver” o “ter” e a força da imagem superficial e do que é “publicável”. Isto pode gerar muita pressão social e, em sentidos contrários.

Por um lado, prezamos a liberdade individual e por outro queremos “ter” um amor e “ter” uma relação; isso, aliás, continua a ser o “esperado”, o suposto. O que pode fazer com que algumas pessoas interpretem isso como tendo de fazer tudo para “pertencer” a uma relação; e a outras, consoante as características, interpretam como tendo a liberdade total para submeter o seu companheiro ou companheira a todas as suas vontade e necessidades. Ora o Amor e as relações não são perecíveis, nem são objetos.

As expetativas sociais também nos podem “empurrar” para uma relação tóxica?

As expetativas sociais têm e terão sempre um papel na formação da nossa identidade e do nosso percurso de desenvolvimento, já que estamos sempre mergulhados nesses sistemas maiores do que nós e as nossas famílias, que são a sociedade e a cultura.

Todavia, a análise das relações tóxicas exige um olhar mais próximo e individualizado pois as relações tóxicas, como terão oportunidade de verificar, dependem largamente da contribuição – diferente, claro – de ambos os parceiros em relação e das suas próprias histórias de vida.

Uma relação tóxica pode perpetuar-se no tempo. Porque aceitam as mulheres este prolongar doloroso e sofrido?

Essencialmente porque as relações tóxicas deixam as mulheres isoladas, a sentirem-se incompreendidas, incapazes de confiar em si mesmas e no amor, qualquer que ele seja. Não devemos descurar que são mulheres que ouvem a todo o instante que “nunca ninguém as vai amar” como o parceiro as ama, que são inúteis, ou ridículas, ou feias, ou incompetentes. Este tipo de violência é paralisante e, pelo facto, de a sua rede de suporte estar afastada e não conseguirem validação daquilo que estão a pensar e a sentir, em espaço seguro algum, é frequente que sintam que já nem se conhecem a si mesmas.

É doloroso tomar uma decisão de sair de um relacionamento, nestas condições, por mais tóxico que ele seja. Como qualquer outro veneno, as relações tóxicas retiram a estas mulheres a capacidade de agir.

Há características de personalidade transversais às mulheres vítimas de relações tóxicas?

Existe aqui alguma diversidade, mas há consenso quanto ao facto de serem mulheres extremamente empáticas, emocionalmente inteligentes, e orientadas para as emoções e relacionamentos, o que as torna especialmente compreensivas do sofrimento humano. Claro que isto é também o que faz com que tenham dificuldades em estabelecer os limites do comportamento aceitável numa relação pois, tendem a racionalizar os comportamentos do agressor como consequências da sua dura história de vida. Muitas destas mulheres sentem o ímpeto da ajuda, querem reparar as vivências traumáticas destes homens, podem querer “salvá-los”, o que claramente, como sabemos, não acontece.

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Na obra, a Diana Cruz refere-se a uma “roda de alimentos emocionais”. A expressão subentende uma espécie de roda alimentar de emoções para uma autoadministração equilibrada?

A roda de alimentos emocionais acompanha a analogia alimentar e refere-se a um conjunto de conhecimentos, crenças, estratégias e comportamentos que podem ajudar as mulheres que viveram estas relações a regenerarem-se emocional e socialmente, reconectando-se com a sua identidade, com os seus projetos de vida e objetivos e com as pessoas significativas na sua vida. Todos estes fatores são compreendidos e identificados ao longo do livro para que as mulheres compreendam quais os seus pontos fortes e pontos a melhorar para se “desintoxicarem” emocionalmente e se protegerem de relações prejudiciais como estas, futuramente.

Neste livro fiz questão de criar um espaço de reflexão, que funciona como uma interação entre mim e o leitor, que permite identificar o melhor conjunto de “alimentos”, ou seja, os fatores que cada pessoa deve desenvolver melhor em si, para poder prosseguir com o seu plano de detox emocional e ultrapassar o sofrimento da relação tóxica.

Como qualquer outro veneno, as relações tóxicas retiram a estas mulheres a capacidade de agir.

O seu livro carrega uma mensagem de esperança para estas mulheres. Em síntese, que mensagem é esta?

A mensagem é que as relações tóxicas são traumáticas e, de facto, é expectável que seja difícil terminar a relação completamente e, sobretudo recuperar das consequências por ela geradas. Muito frequentemente, é necessária ajuda especializada.

Não são as mulheres que são “fracas” ou “frágeis” – estas relações são catastróficas nas suas vidas e têm um impacto que se estende mesmo após a relação estar definitivamente terminada.

Porém, o sofrimento não precisa de ser, nem é eterno, com muito trabalho, coragem e ajuda, é possível transformar esse grande sofrimento em algo verdadeiramente importante. E, neste caso, isso representa a compreensão do papel que tem na relação, do que verdadeiramente é o Amor e do que é realmente importante para que se sinta amada, realizada se sinta numa relação onde existe acolhimento e liberdade.

Que argumentos utilizaria para levar um homem a ler o seu livro?

Em primeiro lugar, existem vários homens que também são vítimas de relações tóxicas e que, certamente, conseguem adaptar as ideias deste livro à sua experiência e, sem dúvida, conseguem tirar proveito das reflexões e exercícios pessoais propostos.

Para além disso, estou absolutamente crente de que tanto as mulheres como os homens, na generalidade, sentem que as relações tóxicas “contaminam” aquilo que deveria ser o Amor, e não o desejam. Não querem ser vítimas, nem querem ser eles quem intoxica. Não podemos esquecer que muitos já estiveram ao lado de mulheres que sofreram este tipo de relações, sejam elas suas companheiras atualmente, suas amigas, irmãs, filhas. Com este livro, conseguirão certamente sentir-se mais bem preparados para apoiar e ajudar essas mulheres e, lá está, a si próprios, se necessário for.