Reportagem de Bruno Horta

Valentim na primeira pessoa

CARTA

Em data incerta da década de 1960, Valentim de Barros escreve uma carta cujo destinatário não se conhece. Apesar das passagens ilegíveis, da grafia antiga e da confusão de ideias, a mensagem parece ser apenas uma: ao falar dos pertences que lhe tiraram, Valentim grita contra a expropriação da sua identidade.

«Lisboa, dia 2 de Novembro de 196[?]

Havendo entrado para o Hospital Miguel Bombarda no ano de 1938 mês de Julho e depois de vários anos de internado havêr obtido alta médica definitiva para eu podêr conservar-me trabalhando na minha profição de bailarino de ópera (Balet) e havendo-me ido a minha casa a polícia buscar-me de novo para êste hospital onde obedecendo ao rigoroso tratamento e electro-choques na 6ª enfª me mandaram para a 8ª enfª donde escrevo esta carta a V.ças Ex.as. Anotaram a roupa boa que eu trazia no corpo mas não (segundo me diceram na secretaria do hospital M.B.) um porta-moedas [?] cor creme com 430$000 dinheiro que me faz bastante [falta] para a minha vida aqui [...] A polícia foi-me a casa buscar mandada pelo Dr. Fernando Ilharco ao hospital Júlio de Matos [?] de me haverem no Júlio de Matos operado a cabeça […] havendo eu ficado com dois côncavos [marcados] para toda a minha [vida]. O Dr. Ilharco escreveu uma [?] para eu e minha irmã [?] (que foi quem me acompanhou na jornada) para entregar ao Dr. Amaral (director do hospital Miguel Bombarda nessa ocasião havendo falecido pouco tempo depois) e que nesse momento não estava de serviço no hospital, então o sr. Chefe Ferreira recebeu a carta que estava fechada e disse que o sr. Dr. Amaral não estava e deteve-me de novo para a enfermaria e opus-me mas em vão alegando que estava com alta definitiva passada pelo médico a minha mãe Dr. Sanctos Freitas. Fizeram-me entregar tudo que trazia incluso o porta-moedas com o dinheiro, que até hoje nunca mais vi, mais [?] enfermeiro chamado Carlos, [natural] de Mirandela que já não trabalhando cá no Miguel Bombarda vai para hanos. [?] peço a V.ª Exª. o favor de [?] deslindar êste assumpto pois [custa-me] muito em cima de tudo [estar] sem aquilo que é meu. [?] Peço desculpa de só agora me queixar a V.ª Exª. disto.

Se digne aceitar meus respeitosos cumprimentos e desde já agradeço respeitosamente.

Bailarino,
Valentim de Barros»

Não perca, AMANHÃ, a última parte da reportagem.

Leia ainda:

Os pais, os primeiros anos e a descoberta da sexualidade
A paixão pela dança, a fuga para  Espanha e a aventura na Alemanha
O regresso rocambolesco a Portugal, o internamento e a operação ao cérebro