Tânia Laranjo, de 39 anos, e Ana Isabel Fonseca, de 24, trabalham juntas na secção de Justiça do Correio da Manhã, no Porto, área que as pôs em contato com os mais incríveis casos de violência doméstica. Quando decidiram escrever um livro sobre o tema, muniram-se de todas as histórias que ouviram contar e atribuíram-nas a Maria, uma das vítimas que matou para não ser morta e que a justiça absolveu. É impossível ficar indiferente a: Obrigaste-me a Matar-te, apresentado esta semana em Lisboa.

Ana Fonseca terminou o curso de Comunicação Social em 2008 e foi estagiar para o Correio da Manha onde começou a trabalhar com Tânia na área da Justiça. Tânia Laranjo tem um percurso mais diversificado: começou no Jornal de Notícias em 1993, em 2005 foi para o Público e está desde 2007 no Correio da Manhã. Ana é solteira sem filhos, Tânia é divorciada e tem uma filha com 11 anos. 

Conhecedora da área de trabalho das jornalistas, foi a editora que as desafiou a pôr em livro as histórias dramáticas que noticiam diariamente. No entanto, foram as jornalistas que optaram por dar protagonismo a uma mulher que mata o marido.

A absolvição de Maria não é caso único. As jornalistas sabem de dois casos e pressentem que está quase a concretizar-se o terceiro num julgamento que está a decorrer no norte do país. Estas mulheres têm em comum o facto de não terem agido em legítima defesa, logo, a hipótese de absolvição é praticamente nula!

Ana e Tânia são confrontadas diariamente com histórias horríveis de violência. Uma violência tão sórdida e absurda a que não conseguem ficar indiferentes. “Às vezes tira-nos o sono, outras, amargura-nos a alma”, desabafam as jornalistas a quem os maus tratos sobre as mulheres as deixa de rastos...

O livro, segundo as autoras, teve a mão das duas em toda a obra. “Íamos construindo os capítulos e mandando uma à outra por email. Cada uma de nós acrescentava texto ou melhorava a história, já que ambas conhecemos de perto todas estas situações”, contam as jornalistas que demoraram cerca de um ano a concluir o livro.

Tânia, que trabalha na área da justiça quase há 20 anos, adianta que se limitaram a consultar processos e a ouvir as mulheres vítimas de violência, pelo que todas as histórias relatadas no livro são verdadeiras. 

Em Obrigaste-me a Matar-te, uma das cenas mais violentas é aquela em que o marido encharca a casa de gasolina e acende um isqueiro no quarto das filhas e ameaça que vai mandar tudo pelos ares... As jornalistas asseguram que esta cena de medo absoluto é a mais vezes repetida. “Ainda recentemente mais uma mulher e as filhas foram regadas com gasolina”, acrescenta Tânia.

As reações ao livro não podem ser mais positivas. “As pessoas ficam muito surpreendidas porque o livro começa com ela a matar o marido.  E, curiosamente, encontramos muitas pessoas que conhecem outras que foram vítimas de violência doméstica”, revela Ana.   |

A cena de violência que mais impressiona Tânia é quando as crianças desde muito cedo desenvolvem sentimentos de proteção da mãe. “Já apanhei dois ou três casos destes e é muito injusto saber que há crianças de quatro anos que vão certificar-se que o pai não matou a mãe. Estes pais não dão o direito aos filhos de serem crianças e isso é completamente inaceitável.”

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Ana ficou particularmente  chocada com o episódio em que uma das filhas guarda a comida que o pai lhe dá para partilhar com as irmãs e com a mãe. “Aquela criança preocupa-se com a mãe e com o resto da família, como se fosse a própria mãe.”
 
As jornalistas ficam igualmente tocadas com a frieza com que estas mulheres lhes falam da violência. “A maioria delas perdeu a capacidade de chorar. Contam as histórias mais incríveis da vida delas como se estivessem a falar de outra pessoa. Nem capacidade têm para se revoltar e muito menos para sair do círculo de violência”, sublinham.

Tânia faz ainda questão de acrescentar que estas mulheres raramente contam estas histórias, porque a maioria morre vítima da violência. “Os jornalistas só são chamados quando estas mulheres são mortas e são as pessoas que lhes estão próximas que nos fazem os relatos!”, lamenta.

Na opinião das autoras do livro, há um círculo de violência que se perpetua na vida destas mulheres. Provavelmente o pai já era agressor e, mesmo quando conseguem libertar-se do marido, o segundo companheiro também é agressor.

Tânia e Ana ficam sensibilizadas com o facto destes filhos, que crescem no meio da violência, continuarem a ter afeto pelos pais. “Defendem as mães, mas continuam a estar ao lado dos pais. Os breves minutos de afeto do pai é tudo o que têm. Estas crianças não conhecem mais nada”, contam.

Sobre as filhas de Maria, as autoras recordam que apesar do apoio que deram sempre à mãe e de terem sido determinantes para a sua absolvição durante o julgamento, continuam a ir ao cemitério no dia do pai.

As jornalistas lamentam ainda o facto de muitos destes jovens que crescem no meio da violência, mais tarde se tornem também violentos. “Começam por agredir as namoradas e, em situação limite, também batem nas mães”, revelam.

A experiência diz-lhes que a agressão começa quase sempre durante o namoro, continua na gravidez e prolonga-se pela vida forma. E, por estranho que pareça, é durante a gravidez, e mais ainda no final do tempo, que o homem se torna mais violento, provocando muitos partos prematuros como o de Maria.

Apesar de ser um crime público, a máxima “entre marido e mulher não metas a colher”, continua a prevalecer. Isto porque até novembro do ano passado morreram 23 mulheres e nos últimos cinco anos as vítimas de violência doméstica foram 173! “Só se acaba com isto se toda a gente denunciar”, defendem as jornalistas.

A maioria destas mulheres é dependente economicamente do marido, vive isolada e não tem qualquer tipo de contacto social.“O agressor tira-lhes tudo: o trabalho, a família e os amigos. Já apanhei várias mulheres que se licenciaram mas nunca trabalharam.”

A primeira experiência literária foi tão gratificante, que as duas jornalistas ficaram com vontade de escrever mais livros e até já têm algumas ideias. “O diretor técnico da APAV disse-nos que este é um dos melhores livros sobre o tema feito em Portugal e essa foi a melhor coisa que nos disseram até hoje”, concluem orgulhosas.

Texto: Palmira Correia

 

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