Os custos indiretos anuais da dor crónica são de 738,85 milhões de euros. Além deste valor elevado, que pode ser evitado com o correto tratamento e prevenção da doença, há ainda o sofrimento de milhares de pessoas.

Por Maria Santos

Imagine-se com uma dor constante durante 24 horas, afetando cada passo da vida. É assim que vivem 80 milhões de europeus – um quinto da população portuguesa, de acordo com um estudo epidemiológico realizado na Europa.

À parte a falta de qualidade de vida do doente, os custos indiretos anuais da doença ascenderam aos 738,85 milhões de euros, sendo 280,95 milhões devidos ao absentismo gerado pela incapacidade de curto prazo e 458,90 milhões o resultado da redução do volume de emprego por reformas antecipadas e outras formas de não participação no mercado de trabalho, de acordo com um estudo da Universidade Católica Portuguesa (UCP).

Os custos e a (não) valorização da dor
Os custos indiretos da dor crónica são significativos, de acordo com um estudo coordenado por Miguel Gouveia. O economista referiu que 19.890 mulheres deixam de trabalhar devido a dor crónica, sendo que o valor no sexo masculino é de 11.966 indivíduos. Quanto à faixa etária, a mais representativa é a dos 50-60 anos.

O Estado perdeu, assim, em média, 160,59 euros por cada trabalhador, isto é 0,43% do PIB, em 2010.
Face a estes números, o responsável pelo estudo defende que a nível económico “o ideal será promover uma alocação mais eficiente dos recursos e um maior esforço na prevenção”. A mesma opinião tem Duarte Correia, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED), que alertou para “a necessidade de se valorizar mais o problema da dor crónica”.

Mas, o problema não se cinge, apenas, ao impacto económico-financeiro. O sofrimento e a falta de qualidade de vida são o maior desafio a enfrentar. “Interfere no mais íntimo do ser humano, provocando vários traumas, depressão e, inclusive, a sensação de inutilidade na vida”, frisa Cristina Catana. E continua: “A vida da pessoa vai ter um antes e um depois da dor crónica, o que conduz a ruturas alargadas em todos os aspetos da vida”. “Há quem se negue a viver”, alerta a psicóloga.

Mas não se pense que a crise é a responsável pela atual situação da dor crónica. “Não se trata de um problema de dinheiro, mas da sua pouca valorização por parte dos profissionais de saúde, assim como dos doentes, que silenciam, muitas vezes, o seu sofrimento”, salienta Beatriz Craveiro Lopes, conselheira da European Federation of IASP Chapters (EFIC).

A mesma opinião tem Rui Cernadas, da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte. “Os doentes ainda não têm um acesso fácil, principalmente no que diz respeito à referenciação hospitalar. As pessoas sentem-se perdidas”. Este responsável da ARS Norte considera que a dor, atualmente, é subinvestigada e subregistada, “porque, apesar das melhorias ocorridas na área das tecnologias da informação e comunicação nos cuidados de saúde primários (CSP), o Sistema de Apoio ao Médico (SAM) ainda não tem um instrumento de avaliação da dor”.

Rui Cernadas defendeu, também, que a maneira de resolver o problema é apostar na prevenção, evitando-se o sofrimento causado diretamente pela dor crónica, assim como as multimorbilidades daí adjacentes e as questões económico-sociais e psicológicas.


A realidade portuguesa

Apesar das questões com que Portugal se confronta atualmente no domínio da dor, “Portugal é um dos poucos países da Europa que já implementaram oficialmente o controlo e tratamento da dor no seu sistema nacional”, salienta Beatriz Craveiro Lopes.
E, de fato, esta questão já é debatida desde meados da década de 1990.

Na altura foi convocada uma reunião constituída por um grupo de trabalho multidisciplinar com a responsabilidade de criar a competência em Medicina da Dor concedida pela Ordem dos Médicos (OM) e de se assumir como um veículo privilegiado de troca de informação a estabelecer entre a OM o Ministério da Saúde (MS).

Como a dor é transversal às diversas especialidades médicas, a reunião contou com a participação das sociedades de anestesiologia, neurologia, neurocirurgia, fisiatria, ortopedia, oncologia e reumatologia.
A partir de então, têm sido realizadas várias iniciativas, como a implementação do Dia Nacional Contra a Dor (14 de outubro), a aprovação do Plano Nacional de Luta Contra a Dor, o reconhecimento da dor como o «5.º sinal vital», o reconhecimento da dor como uma competência médica pela OM, a aprovação do Programa Nacional de Controlo da Dor e a criação do Centro Nacional de Observação da Dor (ObservDor).

Outros passos essenciais foram tomados como a prescrição de opioides por via eletrónica, com o objetivo de se evitar as receitas “amarelas”, que colocava em causa a privacidade dos doentes, e a criação da primeira Cátedra de Medicina da Dor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP).
Falta ainda cumprir a priorização da investigação em ciência básica da dor, o envolvimento de grupos de doentes em programas de cuidados, bem como a adoção de abordagens que suportam a gestão autónoma da dor.

Ainda no âmbito dos opioides, Beatriz Craveiro Lopes alerta para o fato de este tipo de medicamentos nem sempre ser receitado, havendo uma baixa taxa de prescrição, que se destaca dos restantes países europeus.

A importância da qualidade
Apesar dos avanços que se têm feito sentir em Portugal e que coloca o País como um exemplo de boas práticas na Europa, será que os doentes têm acesso a cuidados que vão ao encontro das suas necessidades?

Beatriz Craveiro Lopes refere, com base num estudo da FMUP, que 82% das pessoas têm acesso a tratamento, mas destes 19% não estão satisfeitos com o mesmo, quer por causa da terapêutica, quer pela falta de atenção do seu médico, segundo o que referem.
Torna-se, assim, essencial avaliar a qualidade dos atos médicos.

Contudo, é precisamente na avaliação que se centra o problema. Alice Cardoso, colaboradora externa da Direção Geral de Saúde (DGS), considera que se tem de melhorar esta vertente, devendo-se investir em auditorias clínicas, que também são fulcrais para os processos de certificação e acreditação.

“A avaliação obriga-nos a colocar no terreno as boas práticas e a ver os indicadores que nos ajudam a compreender a evolução do processo e a verificar o efeito da mudança”, apontou a responsável.
A mesma opinião tem Diana Pereira, administradora hospitalar e coordenadora do Gabinete da Qualidade do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa.

Esta responsável alertou, ainda, para a necessidade de se investir na acreditação e na uniformização da educação para o doente, já que “as pessoas não sabem lidar com a dor”, assim como na definição de normas para os conteúdos das avaliações a realizar pelos profissionais de saúde.


O exemplo de Itália e Espanha

Como a troca de informação é um ponto crucial para melhorar a prática clínica, no simpósio foram apresentados dois casos internacionais, um italiano e outro espanhol. Em Itália, a Lei 38/2010 de março de 2010 permite o acesso a tratamentos e cuidados para a dor.
E, dois anos após a sua publicação, os resultados são “entusiasmantes”, segundo Guido Fanelli, presidente da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos e Terapia da Dor do Ministério da Saúde de Itália.

“Esta lei «obriga» o médico a gerir convenientemente a dor que o doente sente, independentemente da sua causa etiológica”, refere.
E acrescenta:” Uma legislação com traços tão inovadores leva o seu tempo. Muitos obstáculos têm que ser ultrapassados e é necessária uma formação adequada e uma revolução cultural.” Guido Fanelli revelou que cerca de 85% do que está determinado na lei foi alcançado, como a monitorização ao consumo de opioides e anti-inflamatórios não esteroides (AINES).
D

e Espanha foi apresentado o caso prático da região da Andaluzia. A Agência de Qualidade em Saúde da Andaluzia, através do Observatório para a Segurança do Doente, tem publicado uma série de critérios e padrões de qualidade dirigidos às várias tipologias das unidades de saúde, “com a finalidade de abordar de uma forma integrada a dor dos doentes e melhorar assim os cuidados prestados”, segundo António Torres Olivera, diretor da Agência de Qualidade em Saúde de Andaluzia.

O Plano Andaluz de Cuidados das Pessoas com Dor tenta abordar de forma integrada este problema e tem desenvolvido, entre outras iniciativas, a acreditação de centros contra a dor. Até ao momento foram desenvolvidos 53 projetos (dor crónica, dor peri-operatória, dor associada a procedimentos e dor em ambiente de urgência), procedentes de 29 unidades de saúde distintas.

O futuro da dor crónica
Portugal está no bom caminho, mas é necessário continuar a trabalhar, como referiu Alexandre Diniz, em representação do diretor-geral de saúde, Francisco George, e do secretário de Estado e Adjunto da Saúde, Fernando Leal da Costa. “As mudanças não são rápidas e ainda não é fácil considerar a dor crónica como uma doença, mas Portugal está a trabalhar nesse sentido e estamos a trabalhar para que todos os hospitais tenham uma unidade de dor”.

João Carvalho das Neves, presidente do Conselho Diretivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), também realçou o trabalho que tem sido feito e os projetos que se preveem na área das tecnologias em saúde, como a melhoria da interligação entre o SAM e o Sistema de Apoio à Prática da Enfermagem (SAPE). Mudanças que podem vir a mudar a vida de quem vive diariamente com dor.