Vem isto a propósito dos 400 anos das mortes de Cervantes e Shakespeare, comemorada em 2016, e também da intolerância à lactose. Parece que não têm relação, mas têm. Morreram os dois há quatro séculos, um em Espanha, outro em Inglaterra, no mesmo ano – 1616.

Olhando para os retratos que na época os pintores lhes fizeram percebe-se que ambos usavam uns casacos com uma carreira cerrada de botõezinhos à frente, mas na gola Shakespeare usava ou uma gola de virados ou uma renda fininha, delicada, talvez macia. Já Cervantes usava aquelas golas em harmónio aos canudos e em ziguezague, bem altas. Isto é, o atrevido Cervantes, que não se coibiu de escrever um romance de cavalaria a desconstruir e a gozar com os romances de cavalaria, tinha que se sujeitar a uma roda de canudos engomados à volta do pescoço, que hoje podia ser um colar ortopédico. Tal como na época usaram os Filipes que foram reis de Portugal. Era a moda. Houvesse Internet ou pelo menos correios céleres e Cervantes saberia que o outro escritor andava de pescoço mais liberto e mais rendilhado. E talvez mudasse a gola.

Isabel do Carmo, Médica e Professora da Faculdade de Medicina de Lisboa

Hoje usamos o mesmo em todo o lado do chamado mundo desenvolvido. E as modas alimentares correm no tempo de um click. E é assim que as intolerâncias à lactose e ao glúten têm corrido mundo, transformando em intolerantes os que o não são.

Visitei há algumas semanas um Centro de Dia, com que simpatizo, com ambiente familiar e um ou outro centenário. Sempre achei que era um local agradável e mais uma vez falei com uma das cozinheiras. E então ela disse-me: "Isto está muito mais complicado. Agora algumas das pessoas que comem aqui têm intolerância ao glúten. E algumas têm intolerância à lactose. Uma delas, no outro dia, comeu um iogurte e caiu logo para o lado, desmaiada". E aqui está como alguns destes idosos sofreram mutações genéticas…

Vejamos então a lactose. Há 8.000 anos quando os primeiros humanos se começaram a sedentarizar lá para o Médio Oriente, na Anatólia, tinham rebanhos. E de facto, não tinham a lactase no adulto, enzima que só possuíam na infância para digerir o leite materno. Eram intolerantes à lactose. Por isso transformavam o leite em iogurte, que, apesar do desmaio da senhora idosa do Centro de Dia, tem pouca lactose, e em queijo, que também não tem. O queijo flamengo, por exemplo, tem zero de lactose.

Têm origem nessa época os iogurtes e queijos tradicionais turcos e gregos. Quando esses povos migraram para o Centro da Europa, uns pela orla do Mediterrâneo, outros pelo vale do Danúbio, levaram os seus rebanhos e deles foram vivendo. Passaram-se mais uma vez milhares de anos para serem selecionados os que digeriam bem a lactose e que portanto podiam digerir não só o queijo e o iogurte como também o leite. Estes foram mais pelo vale do Danúbio e instalaram-se nas zonas ao centro e norte da Europa.

As zonas mediterrânicas ficaram com mais intolerantes, talvez tivessem outros recursos. E é assim que nos países da Europa a intolerância vai de menos de 10 por cento a 60 por cento.

Como saberei eu então se sou intolerante? Posso desconfiar, porque tenho digestões difíceis, porque “sinto” os intestinos, porque tenho meteorismo, porque às vezes estou enjoada. Mas tudo isso pode ser causado por tantas coisas. E sobretudo por um clima de grande crispação no trabalho…

Há que fazer então um teste de tolerância à lactose, o qual é executado nos melhores laboratórios. É parecido com o que se faz para ver a tolerância à glicose, durante a gravidez. Mas neste caso não se bebe água com glicose. Bebe-se água com lactose. Ora a lactose, que é um açúcar composto por glicose e galactose, quando há lactase, a enzima que permite que ela se divida nestas duas partes e seja digerida, vai portanto originar mais glicose no organismo.

Como se doseia a glicose (glicémia) antes de tomar a lactose, em seguida vai-se dosear 30, 60, e 90 minutos depois. Se a glicémia subir mais do que 30mg/dl é porque se forma glicose – não há intolerância. Se for entre 20 e 30 é inconclusivo.

Se a glicémia não subir, então sim há intolerância. Não deve beber leite. Mas pode comer iogurte e queijo como faziam os nossos antepassados na Anatólia. Era também aí que eles iam buscar proteínas e cálcio. Tal como nós.

O artigo foi escrito por Isabel do Carmo, médica e professora da Faculdade de Medicina de Lisboa