Interessante como o paradigma de saúde pública sofreu uma evolução considerável desde Janeiro de 2020. Na altura, ninguém acreditaria que apenas dois anos volvidos, estaríamos a inverter a transição epidemiológica, voltando a dedicar esforços e recursos para combater doenças transmissíveis. Mais difícil de acreditar, que estaríamos a efetuar análises de risco sobre a possibilidade de a poliomielite regressar a Portugal.

As elevadas taxas de vacinação nacionais protegem-nos contra eventuais surtos. A cobertura vacinal ronda os 95%, sendo ligeiramente inferior no Algarve, onde é cerca de 92%. No entanto, persiste o ligeiro risco de alguns casos isolados, como consequência da elevada exposição a territórios onde há circulação do vírus.

Como chegamos até aqui? A verdade sobre saúde global, “ninguém está seguro até todos estarem seguros”, é hoje tão atual como nunca. Um surto na Ásia Central, provocado pela versão inativada do vírus chegou à Ucrânia, onde as taxas de vacinação são reduzidas, fruto da enorme influência dos movimentos anti vacinas. Em 2021, a Ucrânia apresentou o primeiro caso de paralisia devido à poliomielite. Em junho de 2022, já ascendia a 20, o número de crianças com sequelas da doença. Antes da guerra, a taxa de vacinação global situava-se nos 70%, com algumas regiões apresentando valores inferiores, sendo bastante expectável que a invasão tenha agravado este indicador.

Poucas semanas após os primeiros casos ucranianos, ocorreram dois casos em Israel, também da versão inativada do vírus. Baixas taxas de vacinação explicam a fragilidade que o vírus aproveitou. Uma campanha extensa de vacinação conseguiu superar a ameaça. Com pouco tempo de intervalo, o vírus foi detetado nos esgotos de Londres. Resultado de uma boa política de vigilância ambiental, foi possível identificar precocemente a presença do vírus numa cidade onde a média de cobertura vacinal ronda os 85%, mas com algumas regiões abaixo dos 80%. Mais preocupante, a análise genética demonstra que o vírus circula há tempo e hospedeiros suficientes para apresentar mutações. Se nada for feito, é uma questão de tempo até surgirem os primeiros casos de paralisia.

Por fim, chegamos a Nova Iorque, onde a média de cobertura vacinal ronda os 70%, e onde, novamente, há comunidades cuja cobertura é bem inferior à média. Seja por influência dos movimentos anti vacinas ou por efeitos colaterais da gestão da pandemia, onde o acesso aos cuidados de saúde esteve condicionado, a taxa de cobertura da vacina da poliomielite está muito longe do ideal. Tal como em Londres, as análises de saúde ambiental indicam transmissão comunitária, tornando apenas numa questão de tempo, até surgirem novos casos graves.

Uma combinação de movimentos anti ciência, efeitos secundários da pandemia e guerras, trouxeram-nos até uma situação que seria verdadeiramente impensável apenas há 3 anos. A UNICEF afirma que em 2019, 7 milhões de crianças em todo o mundo perderam a 3ª dose da vacina contra a poliomielite. Em 2021, este número ascendeu a uns impressionantes e preocupantes 25 milhões.

O tratamento para esta doença não é muito melhor em 2022, que aquele que estava disponível em 1950. A prevenção continua a ser a melhor forma de combater a doença. A vacina é barata, eficaz, segura e bastante disponível. As autoridades de saúde, devem trabalhar em conjunto com as escolas e os pais, de forma a garantir que todas as crianças estão seguras e protegidas contra os terríveis efeitos desta doença.

Não podemos ignorar a dimensão de saúde global que esta doença apresenta. Em Moçambique, além da versão inativada, a versão selvagem que circulava apenas no Paquistão e Afeganistão, conseguiu migrar até ao território. Em Angola, há anos que a versão inativada circula e provoca doença. Por motivos morais, culturais e de segurança, temos o dever de ajudar na erradicação deste vírus. A saúde é construída e fortalecida em conjunto. A segurança das crianças angolanas e moçambicanas, tem como consequência, a melhoria da saúde e segurança das nossas crianças.

Não há ilhas na saúde global. Temos de manter os elevados níveis de vacinação e vigilância ambiental, mas também é indispensável ajudar para que outros consigam fazer o mesmo. Só é suficiente quando conseguirmos chegar à ambiciosa, mas necessária meta: nem mais uma criança com sequelas da pólio!