HealthNews (HN)- Acaba de ser reeleito presidente da APMGF. O que vai mudar neste mandato face à conjuntura atual da profissão e o funcionamento do SNS?

Nuno Jacinto (NJ)- Este é um mandato de continuidade. Os órgãos sociais são, muitos deles, os mesmos que já estavam na Direção Nacional, no Conselho Fiscal e na Assembleia-Geral anterior. Portanto, a nossa ideia é consolidar aquilo fomos construindo nos últimos três anos e, sobretudo, manter-nos como a voz de todos os médicos de família. Queremos continuar a afirmar a Medicina Geral e Familiar como um pilar central do sistema de saúde, reforçando a importância que lhe é devida. Infelizmente, muitos dos problemas do sistema resultam precisamente por não haver uma aposta clara nos Cuidados de Saúde Primários.

HN- A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) anunciou que o concurso para a formação de médicos especialistas terminou com 1.836 das 2.242 vagas preenchidas. Muitas das vagas de MGF ficaram por preencher. Como lê esta realidade?

NJ- O resultado deste concurso é catastrófico, mas isto é fruto daquilo que tem sido a política dos últimos anos… Não há valorização do trabalho dos médicos de família. Para além da questão salarial, não tem havido um respeito adequado pelo esforço destes profissionais. Tudo isso em conjunto faz com que não consigamos reter profissionais de saúde nem reter logo à partida. Temos mais de um quarto das vagas por preencher em MGF e temos centenas de colegas que preferem não escolher nenhuma especialidade e não iniciar a sua carreira no Serviço Nacional de Saúde. O nosso trabalho é muito pouco considerado e as condições de trabalho são muito más.

HN- Os médicos de família são maltratados? Isso explica a falta de vontade demonstrada em participar nestes concursos?

NJ- Sim. Os médicos sentem que são maltratados. A pandemia obrigou a um esforço enorme de todos nós e, quando se pensava que no pós pandemia estariam reunidas as condições para valorizar de outra forma o trabalho dos médicos de família, nada mudou. Andamos em negociações com o Ministério da Saúde há quase dois anos sem que saia fumo branco e as condições de trabalho nas unidades degradam-se dia após dia. Os médicos não são ouvidos e quando são, são ignorados. Veja-se o que aconteceu com o sistema eletrónico de prescrição de medicamentos que só veio criar mais constrangimentos. Em vez de nos facilitarem a vida, só complicam mais… Há um conjunto de situações que fazem com que os médicos se sintam esquecidos pela tutela. Nós não somos bem tratados. É uma realidade. Isto não pode continuar a acontecer a não ser que assumamos que não queremos ter um SNS tal como o conhecemos até agora.

HN- Quais as consequências que isto acarreta nos índices de saúde?

NJ- Esta situação vai fazer com que daqui a quatro anos tenhamos menos médicos de família. Isto vai significar maior sobrecarga para os que continuarem no sistema e mais utentes sem médico atribuído, assim como vamos ter um acesso mais limitado aos cuidados de saúde primários. Por sua vez, isto vai levar a que os doentes recorram a outro tipo de cuidados, levando à pressão dos hospitais. Vai ainda provocar diagnósticos mais tardios e mais doenças crónicas descompensadas.

HN- Quais as soluções que a APMGF propõe para atrair e fixar mais médicos de família, especialmente em zonas carenciadas?

NJ- Tem de haver uma valorização e respeito do nosso trabalho. A questão salarial é incontornável e tem de ser resolvida. Quando falamos em salário, falamos em salário-base. Não podemos estar sempre a basear esta questão em suplementos, incentivos e horas extra. Estas questões não devem criar desigualdades entre os médicos. Quando falamos nos incentivos para as zonas carenciadas tem que se salvaguardar todos os profissionais que trabalham naquelas unidades.

Por outro lado, a carreira médica é essencial. É uma questão que poderia ser um fator diferenciador do Serviço Nacional de Saúde quando comparado com o setor privado e social. Isto não existe. Tem de haver uma respetiva diferenciação entre os médicos com progressão na carreira, nomeadamente com tarefas e responsabilidades diferentes.

Seria também importante uma efetiva autonomia das equipas, em especial na forma como organizam o seu horário.

Em último lugar, temos que ter sistemas de informação que nos facilitem a vida.

HN- Qual a posição da associação relativamente à presença da Medicina Geral e Familiar no setor privado?

NJ- A Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar não tem nada contra, muito pelo contrário consideramos que o setor privado tem de garantir uma Medicina Geral e Familiar forte. O importante é que os níveis de exigência sejam garantidos.

HN- Como olha para as declarações do presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares que diz que “o sistema de saúde tem de estar preparado para a ausência de acordo entre Governo e sindicatos”?

NJ- É verdade que, muito provavelmente, não exista um acordo a curto prazo… O problema é que é muito difícil preparar um sistema sem médicos. Se tivermos uma carência de profissionais no SNS é impossível responder às necessidades dos doentes. É muito complicado perceber como é que vamos sair desta crise se não houver um acordar para a realidade por parte da tutela. Se continuarmos a antagonizar estes profissionais e a chegar a acordo com outras classes profissionais, que não os médicos, tudo vai ser mais difícil. Também para os administradores hospitalares não sei como é que vão conseguir organizar as suas unidades sem os médicos necessários.

Entrevista de Vaishaly Camões