SAPO Lifestyle: Porquê é que as doenças do aparelho circulatório continuam a ser a principal causa de morte em Portugal? 

João Morais: As doenças do aparelho circulatório isoladamente têm, nos últimos 10 anos, vindo a reduzir o seu peso nas causas de morte em Portugal. Apesar de ainda serem dominantes, a redução que tem havido é manifesta e substancial, o que significa que provavelmente nos próximos anos talvez as doenças vasculares possam desocupar esse lugar.

Médico cardiologista João Morais, diretor do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santo André
João Morais, médico cardiologista e diretor do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santo André créditos: DR

Existem alguns fatores que têm contribuído para que exista esta mudança. O mais importante tem a ver com o reconhecimento do impacto das doenças cardiovasculares em Portugal e, portanto, passaram a ser consideradas uma prioridade em termos de Plano Nacional de Saúde. Um outro aspeto está relacionado com o ritmo verdadeiramente alucinante da investigação nas doenças cardiovasculares nestes últimos 20 anos.

Por último, finalmente foi possível ter uma estratégia organizada no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, em especial para o tratamento do enfarte agudo do miocárdio. Estas são as três grandes razões que levaram a que, nestes últimos dez anos, se tenha conseguido de alguma forma reverter o constante aumento da mortalidade por doenças cardiovasculares.

É preciso investir na educação. As escolas envolvem a família e as crianças são ótimos influenciadores, pois têm muito mais impacto do que o médico, quando chamam a atenção de alguns maus hábitos

SAPO Lifestyle: Em relação a outros países europeus como está Portugal ao nível da prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças cardiovasculares?

João Morais: Podemos dizer que Portugal está melhor numas coisas e piores noutras. Estamos melhores que uma grande parte dos países europeus no que diz respeito ao enfarte agudo do miocárdio (EAM), mas estamos claramente piores no que diz respeito ao acidente vascular cerebral (AVC). Este último tem a ver com algumas razões de natureza genética que vêm do passado, em grande parte relacionadas com a elevada prevalência da hipertensão arterial. A hipertensão arterial tem um impacto muito significativo nas doenças cerebrovasculares e tem um impacto menos importante no EAM.

Do ponto de vista do EAM, Portugal neste momento tem uma prática de organização que está lado a lado com o que melhor se faz na Europa com uma grande cobertura nacional de laboratórios de hemodinâmica indispensáveis para um tratamento atempado e eficaz.

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Em relação à doença cerebrovascular estamos numa fase ainda muito recuada talvez como todos os países europeus, mas a nível nacional ainda estamos mais. Neste momento assistimos a alguns esforços para dar prioridade às doenças cerebrais, no entanto, existe ainda um longo caminho a percorrer. Não é possível ainda colocar lado a lado estas duas realidades.

SAPO Lifestyle: Numa altura que já existe tanta informação e sensibilização para a importância de um estilo de vida saudável, o que falta fazer?

João Morais: Penso que o que falta é investir na educação nas escolas, pois essa é ainda muito frágil. Pode-se dizer que a educação dos doentes e dos familiares tem vindo a ser melhorada cada vez mais e é algo de positivo que devemos destacar. No entanto, é preciso começarmais cedo e é aqui que claramente estamos em dificuldades.

As escolas envolvem a família e as crianças são ótimos influenciadores, pois têm muito mais impacto do que o médico, quando chamam a atenção de alguns maus hábitos. É realmente fundamental começarmos desde cedo a prevenção e a informação. No entanto, as próprias escolas devem estar em consonância com esta premissa, começando por providenciar uma alimentação saudável, abolindo o consumo de refrigerantes e acabar com as máquinas de venda de chocolates, batatas fritas, etc.

SAPO Lifestyle: Considera que os portugueses estão pouco sensibilizados para a importância de ter os valores de colesterol baixos?

João Morais: Não tenho a certeza disso. A temática do colesterol é muito singular porque há um problema de atitude médica e não apenas das pessoas. Sabemos que cerca de 80% dos adultos portugueses estão medicados para a redução do colesterol, o que é muito significativo, o que de alguma forma mostra o reconhecimento que a população tem desta entidade.

A awareness sobre o colesterol parece ser algo bem implementado, no entanto, o que não funciona tão bem e que se trata de um problema do profissional de saúde, é a tomada de decisão correta de quando, como e com que objetivos tratar. Ter o valor de colesterol elevado não deve ser o único fator que leva ao tratamento, um outro igualmente importante é o perfil de risco de cada indivíduo.

Após decidir tratar, o médico tem de saber até onde pretende levar a redução do colesterol. É aqui que reside o grande problema já que, apesar de termos cerca de de 80% dos adultos medicados para o colesterol, a maioria não sabe sequer quais são os seus valores. Isto porque o médico prescreve um medicamento e tanto o profissional de saúde como o doente descansam e pensam que têm o problema resolvido.

Mas, o problema apenas é resolvido se o doente tomar o medicamento certo na dose correta e quando o alvo terapêutico adequado é atingido. Um estudo apresentado este ano no Congresso Português de Cardiologia demonstra que apenas 20% dos doentes de alto risco estão dentro dos alvos terapêuticos recomendados, o que significa que 80% dos doentes não estão bem medicados. Na minha perspetiva, isto poderá resolver-se através da educação médica e organização.

SAPO Lifestyle: O caso da hipercolesterolémia familiar (HF) é mais difícil pois são indivíduos geneticamente predispostos a valores elevados de colesterol. Como são diagnosticados e tratados estes doentes?

João Morais: Não são. A HF é algo que tem uma característica genética muito particular e, infelizmente, não se integra nas preocupações médicas atuais, talvez com a ressalva da área pediátrica. Parece-me que os pediatras estão mais sensibilizados para este problema, pois existem canais definidos para referenciar estas crianças e protocolos para os estudar.

Nas restantes especialidades médicas não acontece o mesmo. E isto por várias razões e uma delas tem a ver com a limitação, até há um tempo atrás, que encontrávamos ao nível das terapêuticas, pois estas não eram entusiasmantes do ponto de vista do tratamento destes doentes.

Em Portugal a HF é um problema indiscutivelmente de educação médica que obriga a um plano de divulgação, de criação de protocolos e de referenciação. Atualmente, tudo isto existe de uma forma muito simples, algo que é iniciativa de algumas pessoas que se têm dedicado a este tema.

À medida que os tratamentos vão sendo mais eficazes no tratamento da diminuição dos valores do colesterol, naturalmente mais preocupados deveríamos estar em diagnosticar estas pessoas. É possível que nos estejamos a aproximar dessa fase, uma vez que estamos a ter fármacos com aprovação específica para a HF.