Esta é uma conversa que nasce de um acaso. A do prazer que o entrevistador guarda numa paragem matinal para leitura e café num cantinho pacato em Palmela. E a do entrevistado que laborando no restaurante “Retiro Azul”, na vila às portas das serranias da Arrábida, certo dia se acerca de mim. Move-o a curiosidade de saber quem é o cliente de hábitos de leitura regulares. Após 20 minutos de troca de impressões, percebo que estou perante um daqueles empreendedores locais, com uma paixão de escala nacional.

Em Nuno Gil vemos o entusiasmo genuíno de quem cria, atento ao pulsar do seu território. Desde 1992 que este natural de Palmela dedica muitas das horas dos seus dias à doçaria portuguesa, em particular à da sua região. Lendo, pesquisando, cozinhando, conversando com as populações locais, com chefes de cozinha, com gastrónomos. No currículo, Nuno Gil traz um curso na Escola de Hotelaria de Setúbal.

Em mais de duas décadas este pasteleiro de afeição criou, sob a chancela “Confeitaria S. Julião”, um portefólio com sete pastéis, entre outros itens, incluindo um bombom de Moscatel. Este Vinho licoroso, assim como laranja, queijo, mel, ginja, feijão são apenas alguns dos produtos locais que entram na preparação dos pastéis e bolos da “S. Julião”, tudo primorosamente embalado e cintado. Não falta a descrição da História que engendra cada uma destas especialidades.

no “Concurso Nacional de Doçaria Tradicional Portuguesa”
Nuno Gil, na "Confeitaria S. Julião". Nas mãos um exemplar do livro "A Doçaria Portuguesa - Norte", da autoria da jornalista Cristina Castro. No volume dedicado ao Sul do país haverá espaço para contar as história dos doces de Nuno Gil.

Um cuidado e dedicação que já garantiu a um dos pastéis, o D. Filipe, o primeiro lugar no Concurso Nacional de Doçaria de Santarém. Numa tarde de verão sento-me com Nuno Gil tendo como cenário de fundo a cordilheira da Arrábida. E, aqui, desfiamos memórias da região, de quando para Lisboa saíam as ginjas para os licores; das migrações dos “Caramelos”, populações beirãs que chegavam para os trabalhos agrícolas e até do encanto do  escritor dinamarquês Hans Christian Andersen pelos laranjais de Setúbal.

Nuno Gil, temos esta conversa aqui no centro histórico de Palmela com vista para uma região riquíssima em termos de património humano e natural. Como a descreve no que respeita ao produto gastronomia?

Não me parece que seja uma região, em génese, com expressão à escala nacional com pratos emblemáticos como, por exemplo, o Leitão da Bairrada. É, sim, um território mais conhecido em termos de vinhos. Há contudo um fator que marca o carácter desta região, a fixação de populações de outras zonas do país, nomeadamente do Algarve e do Alentejo. Com elas, veio diversidade gastronómica. Em suma, não tendo uma gastronomia muito divulgada, tem variedade.

Sim, mas não podemos esquecer alguns produtos emblemáticos deste eixo que vai de Setúbal, a Palmela e a Azeitão?

É certo. É um território de queijos e de fruta como, por exemplo, a laranja de Setúbal e Palmela. Criei, inclusivamente, um Pastel de Laranja de Setúbal com açúcar, gema de ovo pasteurizada, amêndoa, farinha de trigo, laranja e banha. Historicamente, a Laranja assumiu um importante papel na região. Setúbal, onde se estima que este fruto tenha chegado no século XVI, foi considerada a capital da laranja e era um porto exportador. O escritor dinamarquês, Hans Christian Andersen na visita que fez à região, no século XIX, refere os pomares de citrinos. Já os queijos desenvolveram-se mais na Quinta do Anjo tendo como grande impulsionador uma figura local, o já falecido Isidoro Fortuna. De acordo com este, esta zona sempre teve muita atividade em termos de pastorícia e também se desenvolveu a forma de trabalhar o queijo. Para Azeitão vieram as ovelhas da Serra da Estrela e um método de produção do queijo análogo ao daquela região beirã. E, claro, não nos podemos esquecer da fruta de Palmela, a maçã riscadinha, com Denominação de Origem. Um fruto injustamente desmerecido durante muito tempo.

Palmela: Nuno Gil, o homem que reinventa em doce a identidade da Península de Setúbal
Tarte e pastel Santiago.

Há um bolo que se tornou o ponto de partida desta sua aventura doceira. Quer contar-nos?

Sim, a Tarte de Santiago, por alusão à Ordem Militar de Santiago que teve o castelo de Palmela como sua sede durante séculos. É uma especialidade regional com açúcar, gema de ovo, amêndoa, farinha de trigo, gila e banha. Estávamos no início dos anos de 1990. Uma tarte que nasceu, também, com os conselhos de um mestre, o Chefe Silva. Recordo-me que inicialmente não fazia este bolo em banho-maria. O Chefe Silva aconselhou-me a cozê-lo dessa forma. As paredes do bolo ficam mais douradinhas e cremosas. Transformei, ainda, a tarte em pastel, produzindo-a em ponto pequeno. Assim surgiu a oportunidade de negócio e nascia a "Confeitaria S. Julião".

Uma tarte logo à partida ganhadora, certo?

Sim, quando nasceu o Concurso Nacional de Gastronomia, primeiro com seleção a nível regional e, depois, com apuramento dos primeiros classificados para o concurso nacional, o restaurante “Retiro Azul”, ao qual estou ligado, participou em diferentes categorias. À época pediram-me para criar uma sobremesa. Fiz, então, o bolo conventual da Ordem de Santiago. O restaurante acaba por ganhar na vertente doçaria.

Na realidade o Nuno Gil olhou para a região e percebeu uma oportunidade.

Sim, achei que faltava algo nesta área. Temos a Fogaça de Palmela, ligada ao culto de Santo Amaro, as tortas de Azeitão, mais alguns doces e pouco mais. Havia que criar uma identidade. Acresce que era, ainda, a oportunidade de eu me realizar. Aos poucos vi que esse era o meu caminho e segui-o.

Palmela: Nuno Gil, o homem que reinventa em doce a identidade da Península de Setúbal
Alguns dos doces pecados da "Confeitaria S. Julião".

Neste momento quantas especialidades disponibiliza a “Confeitaria S. Julião”?

Neste momento tenho sete especialidades, a Tarte Santiago, o Pastel de Moscatel, a Queijada do Anjo [Especialidade Regional], os Caramelos – Pastel de Feijão [Especialidade Regional], o Pastel de Ginja, o Pastel de Laranja de Setúbal, o D. Filipe [Doce Típico de Setúbal].Tive que descontinuar o Palmelense por questões de contexto local. Como se percebe, vou buscar os produtos endógenos da região, base de inspiração para as minhas criações. Também pesa aqui a memória e as tradições familiares, nomeadamente a doçaria natalícia da minha avó que vivia na região de Leiria.

Ou seja, quando cria um produto para o acrescentar ao portfólio já existente fá-lo sempre em consideração a uma tradição local?

Sim, em consonância obrigatória com as histórias da região. Desde o Santiago ao Pastel de Moscatel, baseado num vinho licoroso afamado nestas paragens, à Queijada do Anjo, que retrata a importância do queijo, ou à história dos Caramelos, inspirado nas populações rurais que provinham das beiras e se deslocavam sazonalmente para as propriedades agrícolas da freguesia de Pinhal Novo. A sua dieta conjugava os produtos agrícolas com as carnes da matança do porco. Um exemplo é a sopa de feijão, a que se chama “Sopa Caramela”. No caso do Pastel de Ginja, historicamente, em Palmela, Quinta do Anjo e Azeitão, cresciam ginjeiras espontâneas nas vertentes das serranias envolventes. De acordo com pessoas mais velhas que entrevistei, os donos da “Ginginha Espinheira”, em Lisboa, assim como de outras casas, vinham aqui comprar aos pequenos produtores o fruto para fazerem os seus licores. Pontualmente crio, ainda, outros doces como as Brisas do Sado, em homenagem a Setúbal, ou as Delícias de Palmela, aqui com utilização do leite de ovelha da região.

Palmela: Nuno Gil, o homem que reinventa em doce a identidade da Península de Setúbal
Bombom de Moscatel de Setúbal. Diz-nos Nuno Gil sobre este doce criado em parceria com a Quinta do Piloto: "Uma fina e estaladiça camada de chocolate crocante com um leve aroma a baunilha, confere a esta peça um sabor rico e intenso. Contrastante com o delicado sabor aromático e cremoso recheio de Moscatel". créditos: Quinta do Piloto

Hoje em dia o capital frutícola que referiu, ligado à ginja, perdeu-se?

Sim porque as zonas foram urbanizadas. Um dos produtores chegou-me a dizer que vendia várias toneladas de ginja e hoje se quiser um ou dois quilos tem dificuldade em encontrar.

Moscatel, feijão, laranja, ginja, estamos perante um portefólio de produtos que nos deixa “água na boca”. Onde podemos encontrar os seus pastéis?

O primeiro espaço onde disponibilizei os meus produtos foi a Casa Mãe da Rota dos Vinhos, em Palmela. Felizmente, uma responsável pela instituição considerou que se eu deixasse uma dúzia de Santiagos à consignação nenhuma adega se iria opor. Volvidos dois dias estavam a pedir-me mais pastéis. Hoje encontra os produtos da “Confeitaria S. Julião” na referida Casa, na Casa da Baía, em Setúbal, ainda outras lojas na zona e também em Lisboa, na Lisbon Shop, na Pastelaria Ferrary e em casas na rua Guerra Junqueiro. Preocupo-me muito com a correta divulgação da história de cada um destes produtos pelo que ofereço sempre, às casas que os irão vender a terceiros, uma brochura para que a narrativa ligada a cada produto seja explicada em português e inglês.

As pastelarias da zona têm acarinhado esta sua iniciativa?

Sim, dentro da pastelaria regional tenho tido boa aceitação em locais que de alguma maneira recebem clientes/turistas que gostam de conhecer a História. Posso dizer-lhe que muitas pessoas ainda têm a tradição antiga de levar uma caixa de pastéis ao médico, quando vão a uma consulta ou, no Natal, oferecer ao “senhor Advogado”. Algumas caixas com os meus pastéis já foram para o Dubai e para a Suíça.

Um dos seus pastéis, o D. Filipe é outro caso de sucesso que extrapolou as fronteiras do concelho de Palmela…

Em 2011 participei num concurso da Câmara Municipal de Setúbal com o D. Filipe, um bolo que considero o mais completo, e que faz síntese de alguns dos produtos da região como o queijo, a laranja, o moscatel, o mel da Arrábida. Um doce típico que faz a homenagem ao monarca que ordenou a construção da Fortaleza de S. Filipe, na cidade de Setúbal. Em 2016 apresentei-me com o D. Filipe no “Concurso Nacional de Doçaria Tradicional Portuguesa”, no âmbito da Feira Nacional de Agricultura, em Santarém. Ganhei a Medalha de Ouro.

Palmela: Nuno Gil, o homem que reinventa em doce a indentidade da Península de Setúbal
Pastel da Aldeia Galega.

Qual dos seus produtos considera que tem mais sucesso?

É difícil eleger, pois considero-os a todos quase como filhos. Em termos de aceitação comercial o que terá mais potencial é o Pastel de Moscatel. Em 2016 fiz, inclusivamente, uma parceria com a Quinta do Piloto [produtor de vinho] para fornecimento exclusivo do vinho licoroso que serve de base a este pastel.

Em termos gerais já tem uma produção considerável?

Sim, já tenho uma produção considerável. O meu objetivo é fazer disto a minha vida, dedicar-me a tempo inteiro exclusivamente à doçaria.

Percebo que para si é muito importante uma abordagem telúrica, muito ligada às origens.

Tudo isto nasceu de forma muito natural, mas com muito trabalho, pesquisa documental e junto das populações. Houve muitas tentativas/erro. Costumo dizer que todos os meus receituários não estão fechados, estão abertos e estou sempre atento ao pormenor apesar de saber que nunca vou chegar à perfeição, mas é um caminho de afinação que percorro. Repare, não sou o único a associar os produtos à região. Outras empresas também contam a história dos seus produtos, apesar de em alguns casos essa história ser verdadeira e noutros casos ser um “Era uma vez…”

Inclusivamente toda a parte do design é pensada e idealizada por si, certo?

Sim, trabalho com um designer e ele opera de acordo com os meus pedidos. Esta peça [Nuno Gil apresenta um material cartonado de divulgação da confeitaria] podia ser mais simples mas preferi incluir o cortante com o castelo e as ameias. São apontamentos, mas fazem a diferença. Vai encontrar o brasão do último Grão-Mestre da Ordem de Santiago, a cruz de Santiago e até mesmo a concha dos peregrinos, porque Palmela era zona de passagem destes no caminho para Santiago de Compostela, na Galiza.

No fundo toda esta iconografia nasce em relação estreita com a região?

Sim, não estou aqui a criar valor, estou a ir buscar valores que estavam perdidos ou esquecidos e desta forma vou relembrá-los para que tenham mais visibilidade.

Palmela: Nuno Gil, o homem que reinventa em doce a indentidade da Península de Setúbal
Brisas do Sado.

A uniformidade do produto é muito importante. É algo que o preocupa?

Evidentemente. As pessoas que consomem os produtos hoje querem que estes saibam ao mesmo daqui a alguns meses e que conservem as mesmas características. O que seria de alguns doces afamados se não mantivessem ao longo das décadas os seus predicados? O cliente sentir-se-ia defraudado. É claro que estamos, aqui, a falar de um labor artesanal, não é um produto industrial. Mas é controlado em todas as suas etapas. Os meus produtos são artesanais e atualmente estou a tratar desse processo junto da entidade competente em Coimbra. Acresce que todos os meus produtos têm marca registada.

Sente-se acarinhado pelas instituições da região?

Sim, pelas autarquias de Palmela e Setúbal. Recentemente também fiz um novo produto, o Pastel da Aldeia Galega, que apresentei na Bolsa de Turismo de Lisboa, em Março último. Aldeia Galega era a antiga designação de Montijo. Um lugar em termos históricos de importância relevante. No século XVI, dada a sua localização, foi inclusivamente a sede da Mala Posta do Sul. Quis, neste caso, produzir um pastel que homenageasse os produtos da região associados à suinicultura. Desta forma, a especialidade tem um pouco de toucinho e farinha de bolota.

Tem encontrado na região produtores que revelam interesse em serem seus parceiros?

Sim, inclusivamente há um produtor de maçã riscadinha que todos os anos me pergunta quando desenvolvo um pastel baseado neste fruto. Sendo um produto sazonal que só está disponível entre Agosto e Setembro é difícil. Mas, fica a promessa, um destes dias vai surgir alguma coisa com maçã riscadinha [risos].

Alguns chefes de cozinha e nutricionistas dizem que, na generalidade, os estrangeiros consideram a nossa doçaria muito doce. Nas especialidades tradicionais é difícil alterações no receituário por forma a reduzir o açúcar?

Exato, mas considero que na doçaria regional, o estrangeiro aprecia. Adora também o Pastel de Nata. No que respeita à doçaria conventual o estrangeiro não está muito habituado às quantidades de açúcar e ovos que são utilizados e, corroboro, é um choque. Penso que sem desprimor pela produção é nas quantidades apresentadas que podemos alterar. Ou seja, não oferecer uma fatia de Pão de Rala, mas um quarto de fatia, em jeito de degustação.

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