Para os mais distraídos, a Lavradores de Feitoria pode passar por mais um produtor do Douro. Mas não se trata de um produtor qualquer, até porque, ao contrário da maioria, não fazem vinho do Porto, apenas vinho do Douro. A empresa extravasou o significado de cooperativa e foi fundada por um grupo de 15 pequenos produtores de diversas sub-regiões do Douro – de Mesão Frio a Foz Côa -, em setembro de 2000, como forma de fazer a diferença. O slogan de “juntos somos mais fortes” levado ao pé da letra, muito antes deste ter sido concebido.

“O objetivo foi, desde o início, criar vinhos equilibrados, elegantes e com potencial de envelhecimento, tendo por base um compromisso declarado com a excelência e tradição do Douro”, diz-nos a introdução do site do consórcio. Quase 24 anos depois, a empresa cresceu, tem até uma adega, enoturismo e uma quinta própria – a de Medronheiro - comprada com dinheiro dos capitais da Lavradores de Feitoria. Também não será do conhecimento geral que o atual Presidente do Conselho de Administração é Dirk Niepoort, um dos produtores do Douro mais conhecidos, e um dos membros fundadores.

É com esta informação que nos sentamos à mesa para uma prova de vinho comentada por Paulo Ruão, Diretor de Enologia da Lavradores de Feitoria. A proposta é ficarmos a perceber melhor “O poder do tempo nos vinhos brancos”. A prova, à partida, tanto pode servir de aula, como ser uma provocação. Afinal, o vinho branco tem o Fado de ser aquele que se quer fresco, mineral, consumido sobretudo jovem, a acompanhar pratos leves e, de preferência, sem madeira. Nesta prova, todos os vinhos que nos apresentam são “vinhos brancos de guarda, para envelhecer em garrafa”, assegura Paulo Ruão.

Um disparate diriam, talvez, os mais puristas, se esta mesma prova tivesse acontecido há meia dúzia de anos. Mas neste segmento, não há impossíveis.

Fica a pergunta no ar: o poder do tempo, faz bem ou mal? “Claro que se perde frescura, mas acho que se ganha muito em paladar. Como eu gosto dos vinhos para beber – e não para cheirar – prefiro o paladar. É o que me dá mais prazer”, afirma o enólogo, enquanto arranca risos da plateia. À mesa de prova comparecem sete vinhos, um deles uma novidade, e as suas respetivas histórias. Porque um vinho é muito mais do que uma bebida.

3 Bagos Reserva Branco 2022

Viosinho, Gouveio e Rabigato compõem o conjunto de castas deste vinho, ainda jovem. “É como se fosse um quadro, posso usar várias cores. Misturamos exposições e altitudes. Daí o nome três bagos – de três regiões e três castas.

Uma nota do diretor de enologia: “A Viosinho é, na minha opinião, uma das melhores castas do Douro. Desde o século XVIII que vem descrito nos livros que esta casta é ótima para a produção de vinho e que tinha excelente capacidade de envelhecimento, daí a sua utilização no vinho do Porto”.

A Viosinho está em maioria e é a única casta que estagia em madeira de carvalho francês, durante seis meses a sete meses, com bâtonnage – termo francês que reflete o mexer das borras que se depositam no fundo da barrica e que depois de agitadas conferem melhor textura ao vinho –, para, segundo Paulo Ruão, “dar a gordura”, para o tal potencial de envelhecimento. Depois, entra na equação a Gouveio, para estrutura, e cerca de 10% de Rabigato para um toque de frescura, acidez e mineralidade. O resultado é um vinho bastante gastronómico que funcionará melhor à refeição do que como aperitivo.

3 Bagos Reserva Branco 2016

Aparentemente trata-se do mesmo vinho, mas o tempo em garrafa e o clima particular de cada colheita fazem toda a diferença, apesar de "a receita ser sempre a mesma, desde que comecei a fazer este vinho em 2009”, explica Paulo Ruão. Ao contrário do vinho anterior, que teve a colheita antecipada para agosto devido ao facto de o ano de 2022 ter sido pouco chuvoso, a colheita de 2016 cumpriu o calendário – em setembro.

O envelhecimento em garrafa tornou-o num vinho mais complexo e “mais favo de mel”. Fica a sugestão: antes de o beber deixe o vinho respirar para abrir.

3 Bagos Reserva Branco 2013

A primeira coisa que salta à vista, mal o vinho é vertido no copo, é a sua cor mais carregada, diferente dos anteriores. O aroma também é distinto, onde se sente mais acidez e menos fruta. Parte da explicação pode dever-se ao facto de esta ser a única colheita em que a casta Rabigato foi substituída por Malvasia Fina, o que lhe confere mais riqueza na boca. Segundo Paulo Ruão, é um vinho que mostra o poder do tempo nas vinhas do Douro.

Acidez ou paladar? A prova dos nove da Lavradores de Feitoria para nos mostrar que os brancos também têm potencial de envelhecimento
3 Bagos Reserva Branco créditos: Divulgação

Meruge Branco 2021

“Chama-se Meruge por ser um vinho de localidade, se quiserem, de terroir”, explica-nos Paulo Ruão, “vinhos diferentes, fora da caixa, que vivem por si só”. Trata-se de um monocasta de Viosinho. A primeira colheita aconteceu em 2019 e a ideia passava por divulgar as castas autóctones do Douro. “Quando me perguntaram que casta seria eleita, obviamente que disse Viosinho”. Com origem em duas vinhas velhas, situadas a 500 metros de altitude, na quinta de Meruge, o mosto teve um ensaio em madeiras de carvalho português, francês e húngaro até chegar ao resultado que hoje provamos.

“O efeito da madeira é apenas para criar complexidade, gordura. Queria manter o aroma da casta. Por essa razão, o único que o permitiu foi o carvalho português”, afirma o enólogo, que acrescenta que a barrica não teve a chamada "tosta". O estágio em barrica aconteceu durante seis a sete meses, com batônnage, seguido de um tempo em inox, antes de ser engarrafado. Depois deste processo, repousa em garrafa durante um ano antes de sair para o mercado – ou quando o gosto a madeira já não é tão intenso.

A colheita de 2021, em particular, é fruto de um dos anos mais quentes do Douro. “O que salvou a vindima foi a chuva no final de agosto”, explica-nos Paulo Ruão, acrescentando que “dois dias no Douro fazem toda a diferença”, em alusão à falta de mão de obra que assola a região. “Temos a sorte de esta quinta, de onde são provenientes as uvas, ter mão de obra própria. Assim conseguirmos fazer a colheita no dia certo”, conclui.

Meruge Branco 2016

Apesar de ter um processo de vinificação igual ao vinho anterior, o facto de ser uma colheita com mais anos em garrafa faz com que este ganhe em paladar, uma vez que o gosto da madeira vai-se desvanecendo com o tempo, o que lhe confere frescura em boca. “O ganho deste vinho é o paladar, onde sobressaem as especiarias”. De acordo com o enólogo, o Meruge Branco 2016 tem ainda capacidade para evoluir um pouco mais em garrafa.

Meruge Branco 2010

Quando chegamos a este momento, deixam-nos o aviso: este vinho foi aberto para prova, às 10h da manhã, (no relógio já passa das 12h). Na opinião de Paulo Ruão, o vinho podia ficar a respirar ainda mais tempo. Trata-se da segunda colheita de Meruge alguma vez feita.

O enólogo deixa a nota: “Um vinho quando é engarrafado tem de estar equilibrado. A garrafa vai encaminhá-lo, nunca melhorá-lo”.

Acidez ou paladar? A prova dos nove da Lavradores de Feitoria para nos mostrar que os brancos também têm potencial de envelhecimento
Meruge Branco créditos: Divulgação

Bagos Riesling 2017

Para o fim fica a mais recente novidade, que chegou ao mercado no passado mês de novembro, com um PVP de 18€. E de uma nova marca Lavradores de Feitoria. Esta nasce com o objetivo de destacar monocastas ou, de acordo com os responsáveis, “vinhos mais experimentalistas”.

“Temos um sócio que gosta de experimentar e então fizemos esta colheira em pequenas quantidades”, elucida Paulo Ruão. “Temos o privilégio de ter na Casa de Mateus, em Vila Real, uma espécie de campo de ensaios, onde vamos experimentando várias castas brancas, resultando em vinhos que refletem o compromisso entre o terroir do Douro e a qualidade das variedades eleitas, quando não autóctones”, acrescenta. O objetivo é claro: partir à conquista do mercado internacional.

Trata-se de um vinho com estágio em inox, sem madeira, complementado depois com um tempo em garrafa. “Fica guardado até acharmos que está pronto para ir para o mercado”, assegura o enólogo, que informa também que a colheira se resume a sete mil garrafas.

Com origem em vinhas cultivadas a 700 metros de altitude, em termos aromáticos tem aquilo que podemos considerar um "caracter Riesling", com o típico sabor “apetrolado”. “A ideia é fazer duas vindimas: por um lado um Riesling mais ácido, por outro um Riesling mais maduro. Depois é feito o lote”. Na boca destaca-se a frescura natural desta casta, onde já se nota alguma estrutura em boca, sendo um vinho muito gastronómico.

Na opinião do enólogo, o tempo em garrafa é necessário para que este mostre toda a sua complexidade.

Acidez ou paladar? A prova dos nove da Lavradores de Feitoria para nos mostrar que os brancos também têm potencial de envelhecimento
Bagos Riesling 2016 créditos: Divulgação