Os bons ingredientes têm a capacidade de nos aproximar dos lugares mesmo quando o contexto é díspar, nos encontramos, como é o caso, a mais de 300 quilómetros da origem, no ambiente cosmopolita da capital. Isto mesmo aconteceu, esta química de ligação entre o ponto A e o ponto B, no curso de cozinha Time Out.
A noite prometia cozinha transmontana. Mais de duas dezenas de participantes disseram “presente” no curso orientado pelo foodie Rodrigo Meneses. Duas horas de tertúlia em torno dos tachos provaram que dentro do buliçoso Mercado da Ribeira, na capital, podemos recriar nos sabores, aromas e conversa, parte da complexidade da cozinha transmontana. Como se usa dizer, “para lá do Marão mandam os que lá estão” e, Rodrigo, homem de Trás-os-Montes, mais concretamente do concelho de Chaves, transpôs para o espaço de cozinha da academia Time Out um pouco desta máxima. Aqui não mandando, mas orientando os 22 cozinheiros amadores dispostos a percorrer e recriar parte do receituário do Nordeste português.
O momento foi aproveitado por Rodrigo Meneses, há 15 anos radicado na capital, para fazer a justa apologia do produto transmontano, “zona com pouca influência dos Mouros, só ai permanecendo perto de 20 anos, tempo curto em termos históricos. Dai não encontrarmos, por exemplo, os coentros. É terra rica em batata, couve, cebola, chouriça, salpicão, castanha, azeite”.
É também, por excelência, casa de um produto nacional “muito maltratado”, como referiu o foodie. A alheira, associada a Mirandela e Vinhais, vemo-la país fora, servida frita, acompanhada de batata saída também ela da fritura e de ovo estrelado.
Uma confeção que contradiz a natureza e o tratamento que leva secularmente em Trás-os-Montes. “Esta é a ´barrita energética` de quem trabalhava e trabalha no campo”, sublinhou Rodrigo Meneses, aproveitando para derrubar alguns mitos sobre a história da alheira. “É verdade que foi utilizada pelos Judeus perseguidos pela Inquisição, dado ser um enchido que, na origem, não incorporava carne de porco”. Ou seja, um enchido imaginado e executado com carne de caça ou mesmo de galinha, acrescendo o pão e o alho. Na realidade o que a comunidade judia fez, de acordo com Meneses, foi “adaptar um enchido anterior ao século XV”, a tabafeia (ou tabafeira). Referência a um alimento que encontramos na “Grande Enciclopédia da Cozinha”, de Maria de Lourdes Modesto.
Meneses aproveitou, ainda, para sublinhar uma preferência face às “alheiras de Vinhais, menos conhecidas do que as de Mirandela. Estas últimas beneficiaram do empurrão da ferrovia, ou seja a estação de comboio estava em Mirandela”.
Longe das geografias da raia, à beira tejo, sobre a bancada da academia de cozinha, repousaram 26 quilos de alheiras. “Chegou hoje de Trás-os-Montes, fez quase sete horas de caminho”. Rodrigo convidou-nos a cheirar a alheira. Tem um aroma fumado, fresco, quase floral. “Ainda aguenta bem algum tempo a amadurecer”, referiu o orientador do curso. Uma fumagem que é feita com lume brando de madeira, por exemplo, de oliveira. Isto num período inferior a oito dias. No caso presente, uma substancial parte das quase três dezenas de quilos de alheira tiveram destino imediato, a bancada onde foram confecionadas.
Como confecionar corretamente uma alheira?
Primeira advertência de Rodrigo, “não se frita uma alheira. O resultado é uma espécie de croquete ressequido, sem sabor e sem a gordura do próprio alimento”. Este caminho expresso para a confeção da alheira é fruto da necessidade de servir rápido em muitos restaurantes. “A alheira precisa de tempo para ser produzida, de 40 a 60 minutos, preferencialmente em forno brando nas cozinhas modernas”. Nas origens, nos longos invernos transmontanos, a alheira assava brandamente sobre umas boas brasas.
Ponto número dois: “não se golpeia a pele da alheira. Vamos picá-la com os dentes de um garfo. Seis ou sete golpes de cada lado”. Era chegado o momento de levar o enchido ao lume. No caso vertente, dada a logística do curso, a alheira foi “frita” usando a técnica sauté, ou seja¸ com pouca quantidade de gordura numa frigideira larga.
Dispomos a alheira na frigideira ainda fria. Durante a cozedura o enchido irá libertar a gordura, frigindo nela. “Atenção, não vamos deixar a gordura tomar o pulso dentro da frigideira”, avisou o foodie, “o que vamos fazer é, de-tempos-a-tempos, virar a alheira com muito cuidado para não partir e, com papel absorvente de cozinha, limpar de gordura o fundo do utensílio”. De resto, como advertiu Meneses, “basta deixar a alheira cozinhar por si mesma. Vão à vossa vida enquanto assa esta deliciosa mistura de carnes, alho, colorau-doce, azeite e pão de trigo”. No caso vertente, tratámos do acompanhamento do enchido, muito simples.
Ao tacho com água fervente levámos duas batatas descascadas, um punhado generoso de grelos de nabo (bem lavados) e um ovo. Deixamos cozer, espetando as batatas para comprovar a cocção.
Como entretém de boca, Rodrigo propôs aos participantes neste curso um típico caldo transmontano. Na malga, fumegante, uma sopa substancial: castanha, cenoura, batata, moura (um enchido), feijão, cebola. O resultado é uma pratada de aconchego. Um primeiro encosto à mesa transmontana. Ainda com a alheira fumegante ao lume, mais um petisco de preparação rápida, uma “punheta de bacalhau”.
Não se pense em alarvices, a designação deriva do facto de o “fiel amigo” ser desfiado à mão. Para compormos este petisco apenas precisamos, como referiu Rodrigo de “cem gramas de bacalhau [por pessoa] seco e desfiado, um quarto de cebola, uma pitada generosa de colorau e azeite”. Este bacalhau não se demolha, passa-se, já desfiado, por água para perder parte do sal. Depois, numa taça, acrescenta-se a cebola laminada, uma golpada de azeite e o colorau. Mistura-se tudo e está pronto a servir. Come-se bem, embora seja um prato que combine melhor com os calores estivais.
Bom, bom foi o que se seguiu: estava pronta a alheira. Caiu inteira no prato, onde se juntou os grelos cozidos, ensopadinhos de vapor, umas batatas de sabor generoso e um ovo cozido de gema consistente. Juntou-se-lhes o azeite com travo picante transmontano.
Para rematar a refeição em jeito de curso Rodrigo Meneses brindou os participantes com uns Pitos de Santa Luzia, um ícone de Vila Real, doce regional de massa rústica e áspera, um recheio com doce de abóbora e muitas gemas de ovos. Está visto, imperdível.
No final da ação havia o foodie de voltar à abordagem sobre a alheira. “E nunca, mas mesmo nunca chamem ao bacalhau em enchido uma alheira”. Modernices.
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