Para quem não vê futuro para a profissão de alfaiate não sabe que no nº 22 da Praça Dona Filipa de Lencastre, no Porto, ainda se mantém viva a arte de fazer fatos como poucos sabem. Quem entra pela porta do Ayres Bespoke Tailor são maioritariamente homens, entre os 25 e os 80 anos, que sabem bem aquilo que querem e que não se contentam com nada menos do que a perfeição: um produto final de excelência que prima pela elegância, sofisticação e qualidade. E é isso que Ayres Gonçalo Silva Ferreira se preocupa em oferecer aos clientes que passem pelo seu atelier.

“A minha grande aposta é manter e aumentar a qualidade. Não quero aumentar muito mais a produção porque senão diminuiu-se a qualidade. Os fatos são como os Rolls Royce: não podemos fazer milhares. Temos de fazer poucos senão começamos a esquecer um pouco o pormenor, a qualidade, a querer massificar, a querer ganhar mais dinheiro e esse não é o meu target”, começa por explicar o alfaiate sobre a alma do seu negócio que vai de vento em popa.

Natural do Porto, esta é uma paixão que vem de família e que cresceu durante as tardes passadas na loja do avô, a Ayres Alta Costura, localizada em plena baixa da cidade. Considerado um dos maiores alfaiates portugueses, em 70 anos de carreira passaram pelas mãos de Ayres da Silva Carneiro artistas, desportistas, parlamentares e banqueiros portugueses. “Quando acabávamos os TPC estávamos no atelier do meu avô a ver os alfaiates a trabalhar e eu fui mexendo. Apreciava o meu avô a trabalhar e sentava-me ao lado dele a ver. Fui fazendo experiências e fui ganhando a paixão pela alfaiataria. Quando cheguei à minha adolescência senti que era este o meu caminho.”

Londres, Madrid, Nova Iorque e Hong Kong. O percurso de um alfaiate

Aos 16 anos começou a trabalhar em part-time ao lado do avô e, num ápice aprendeu a pegar na agulha, a manejar a tesoura e a conviver com o calor do ferro. Em 2004, a paixão pela alfaiataria, juntamente com o desejo de crescer profissionalmente e ter uma experiência internacional, levaram Ayres Gonçalo a viajar até Madrid e a matricular-se na Sociedad de Sastres de España. Durante um ano a rotina foi a mesma: de dia trabalhava no Pedro Muñoz, um dos maiores alfaiates madrilenos, à noite ia para o curso de corte. Em 2006 e com o certificado de Cortador de Sastreria pela Sociedad de Sastres de España na mão, resolveu mudar-se para Londres em busca de um sonho: trabalhar na prestigiada Savile Row, a famosa rua londrina onde estão instaladas alfaiatarias com séculos de tradição e savoir-faire.

“Quando cheguei a Londres, passadas três semanas arranjei trabalho na Gieves & Hawkes e a partir do momento em que agarrei esse trabalho comecei a crescer todos os dias. Confesso que estive a sonhar durante os primeiros seis meses porque não queria acreditar que estava a trabalhar naquela rua onde eu desejava, que era a meca dos alfaiates e onde se fazem os fatos mais caros do mundo. Os fatos começam nas cinco/seis mil libras é inacreditável. E havia clientes que faziam seis, sete ou oito fatos de uma vez. E comecei a ver que estava noutro campeonato. Tive a sorte de começar a trabalhar para aqueles homens poderosos”, refere Ayres sobre esta altura da sua vida onde aprendeu a disciplina e a técnica do corte, da forma e da proporção pela mão do mestre Andrés Gomez que, em tempos, teve como aprendiz o desginer de moda Alexander McQueen, falecido em 2010.

Localizada no bairro de Mayfair, a Gieves & Hawkes foi fundada em 1771 e durante séculos distinguiu-se como uma marca de luxo inglesa que, ao longo dos anos, vestiu figuras de renome como Winston Churchill, Charlie Chaplin, Ian Fleming, Michael Jackson, David Beckham, Mikael Gorbachev ou Bill Clinton. A qualidade dos seus serviços valeu-lhe a atribuição, em 1809, de três Royal Warrants: o da rainha Isabel II, o do Duque de Edimburgo e o do Príncipe de Gales. Na prática, são um selo de aprovação atribuído pela realeza a determinadas empresas que forneçam, há pelo menos cinco anos, bens ou serviços à Casa Real.

Em 2009, o destino quis que o seu caminho se cruzasse com o da Família Real Inglesa naquele que, nas palavras do alfaiate, veio a ser um dos momentos mais altos da sua carreira: fazer um fato para o príncipe Carlos. “O príncipe Carlos foi convidado para ir comemorar os 200 anos dos Royal Warrants. Na altura decidiu fazer um fato e quem estava ao lado dele era eu. Tive essa sorte. Fui eu que lhe tirei as medidas e fui eu que arranquei. Nesse momento as mãos tremiam, suavam e toda a equipa estava tensa. Sem dúvida que foi uma experiência inacreditável. Estamos a falar do futuro rei de Inglaterra”, recorda com um sorriso na cara.

Em 2010 é convidado para ir para trabalhar para a Michael Andrews Bespoke em Nova Iorque onde fica sensivelmente durante um ano e onde as viagens entre a big apple e Hong Kong são uma constante. Tendo em conta que grande parte da produção da marca era feita em Shenzhen, uma cidade industrial chinesa, isso obrigou Ayres Gonçalo a trabalhar durante um mês no continente asiático. Não foi por acaso que foi aqui que veio a ter um encontro com o passado e que, curiosamente, acabou por ser determinante para o seu futuro.

“Quando chego a Shenzhen, vou a um shopping, entro numa loja de pronto-a-vestir da Gieves & Hawkes e vejo uma fotografia minha com a Camila, a mulher do príncipe Carlos. Na altura fiquei a olhar e a pensar: ‘Como é que é possível? Estou no outro lado do mundo e está aqui uma fotografia minha com a Camila.’ Eu tinha 29 anos e chegar ao outro lado do mundo e ver uma coisa destas num continente onde eu nunca tinha estado foi uma prova de que estava mesmo no caminho certo”, explica.

Na viagem que de regresso a Nova Iorque, tomou uma das decisões mais importantes da sua vida: regressar a casa e começar o seu negócio. Chegou a Portugal em junho e decidiu que só ia começar a trabalhar em outubro. Mas o destino trocou-lhe as voltas. “Fiz um fato de casamento para um amigo e depois para o padrinho desse meu amigo. Automaticamente comecei logo a trabalhar, a ganhar dinheiro e fui obrigado a arranjar um atelier porque os clientes foram aparecendo uns atrás dos outros.”

Trazer a tradição e a mestria da Savile Row para Portugal

Ayres Bespoke Tailor. Foi assim que, em 2011, Ayres Gonçalo batizou a sua marca direcionada para o luxo que se destaca pela confeção de fatos, camisas e sapatos feitos à medida do cliente. Devido à entrada da Troika em Portugal e ao facto do fato e da gravata terem praticamente sido substituídos pelos jeans e pela t-shirt, seria de esperar que o negócio não prosperasse. “Comecei logo a crescer. Tinha já alguns clientes em Lisboa e estava a ir todas as semanas visitar os clientes ao escritório e começou a haver necessidade de abrir um espaço na capital.”

Recorde-se que esta não é uma profissão em ascensão como era durante o Estado Novo, época em que os alfaiates prosperavam pelas ruas de Lisboa e do Porto e iam buscar inspiração ao que de melhor se fazia lá fora: o corte conservador do fato inglês masculino. “Os alfaiates inspiravam-se sobretudo na moda inglesa, que era conhecida pelo rigor em termos de modelagem, tornando a apresentação masculina impecável, com bom cair e sem rugas, dando um aspeto cuidado, mas ao mesmo tempo sóbrio, que inspirava confiança”, refere a professora universitária Isabel Cantista em entrevista ao SAPO Lifestyle. Apesar de ser uma arte em vias de extinção, há algo que se mantém até aos dias de hoje: a clientela que aprecia a alta-alfaiataria e não dispensa os seus serviços nas mais diversas ocasiões. “A procura de vestuário costumizado, de acordo com a fisionomia e gosto do cliente, sempre existiu e continuará a existir”, refere Isabel Cantista.

A grande maioria dos clientes que encomendam na Ayres Bespoke Tailor são portugueses a viver no estrangeiro, de classe alta e média-alta e que não dispensam um bom bespoke – cujo nome deriva da técnica bespoke tailoring onde tudo é feito de forma manual - no seu guarda-roupa. O público-alvo – por norma o executivo e o noivo - pode diferir mas o atendimento é feito por marcação e efetuado ou em atelier ou ao domicílio.

Mas há exceções. Enquanto estamos no atelier ouvimos bater à porta. É um cliente que aparece sem marcação e pretende um fato para um casamento. "Bom gosto" é um dos termos usados pelo cliente para se referir ao trabalho de Ayres que ficou a conhecer através de um amigo. Desde a primeira abordagem até ao produto final são realizadas duas provas intermédias. Tudo é feito de forma rápida e eficaz porque, regra geral, os seus clientes não têm tempo a perder.

“Quando o cliente chega mostro-lhe os tecidos e faço o aconselhamento. Tiro as medidas, escolhemos o modelo de fato e depois realizo um molde com as medidas do cliente, coloco-o em cima do tecido e alinhavo tudo à mão para a primeira prova. A primeira prova demora, em média, cinco minutos sendo que faço os acertos necessários no casaco e nas calças e preparo tudo para a segunda prova, que é feita com golas e mangas. Apesar de ainda não estar terminado, esta é a prova antes do acabamento final para ver se está tudo ok para depois terminar”, explica sobre a anatomia de um dos cerca de 50 fatos que todos os anos saem do seu atelier diretamente para o guarda-roupa dos clientes e cujo tempo de produção varia entre as 40 e as 60 horas.

Então e os preços? As camisas rondam os 150 euros enquanto um blazer fixa-se nos 1500 euros. Um fato de duas peças começa nos dois mil euros mas facilmente pode atingir preços astronómicos e acessíveis apenas a um leque de clientes muito restrito. Em causa está o tecido escolhido pelo cliente. Scabal, Drapers, Harrisons of Edinburgh, Huddersfield ou Loro Piana são apenas algumas das amostras de tecidos expostas nas estantes do atelier e de onde o cliente pode escolher. “Tenho fatos de 10 mil euros, 15 mil euros. Mas é um fato que se vende uma vez por ano.”

Apesar de os preços serem impraticáveis para o português comum, um fato bespoke é, na ótica do alfaiate, um investimento a longo prazo face às cadeias de fast-fashion que estão espalhas pelo país e cujas peças moram no guarda-roupa da maioria dos portugueses. “A fast-fashion é como a fast-food: são fatos para comprar, usar cinco ou seis vezes e deitar fora. É um negócio espetacular mas é de ready-to-wear e que não podemos comparar à alfaiataria onde as peças duram 30 ou 40 anos. Além disso eu deixo sempre tecido dentro do fato para alargar no futuro. Se o cliente engordar 10 ou 15 quilos ainda há solução. Não se deita o fato fora”, frisa.

Por norma, o cliente procura o clássico, mas as mãos de Ayres não têm limites no que toca à criatividade. Blazers com forros excêntricos e camisas com padrões coloridos também são outras das peças – os chamados classic with a twist – que produz para alguns clientes e para si. Todos os projetos que desenvolve são feitos com a maior discrição e guardados a sete chaves. Não é de admirar que na sua carteira de clientes constem figuras ilustres que não dispensam os seus serviços especializados nas mais variadas ocasiões. “Há duas semanas tive uma encomenda astronómica para um executivo. Há pessoas que precisam de andar bem vestidas mas não têm disponibilidade para ir à loja. Este tipo de encomenda é para se ir fazendo ao longo do ano.”

Diariamente conta a ajuda da sua equipa composta por quatro elementos: um alfaiate, duas costureiras e outra pessoa que se dedica a fazer as camisas e os sapatos. Aqui tudo é feito segundo as regras da alta alfaiataria: 100% handmade. Apesar do revivalismo que se tem sentido no mercado, este é um ofício em vias de extinção e que nem sempre é respeitado por aqueles que o exercem.

“Hoje em dia estão a aparecer muitos alfaiates que não sabem o que é alfaiataria. Dizem que é alfaiataria, mas produzem em fábricas e o cliente final não tem a sensibilidade para perceber se foi feito à mão ou não. Há muita mentira no seio desta área e isso entristece qualquer verdadeiro alfaiate. Quando vivi em Londres trabalhava de domingo a domingo durante 10 horas permanentemente a coser à mão. Sacrifiquei-me muito para aprender e para evoluir mas sabia que um dia que os resultados seriam fenomenais e que estaria preparado para fazer um casaco de um milhão de dólares. E o que acontece é que chego a Portugal, olho à minha volta e vejo pessoas a dizer que são alfaiates sem saberem pegar numa agulha.”

No meio de tudo isto, ainda há um sonho por concretizar: o de ter o privilégio de vestir o espião mais famoso de todos os tempos, 007. “Não nenhum ator em concreto, mas um dos James Bond”.

Texto publicado originalmente a 23 de junho de 2017, a propósito do Dia do Alfaiate.

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