O que é uma fenda?

Sumariamente é uma abertura numa região anatómica que deveria ser integra. Assim, uma fenda labial é uma abertura que torna o lábio uma estrutura descontínua e uma fenda palatina é uma abertura no céu da boca que permite a comunicação da cavidade bucal com a cavidade nasal, uma vez que o palato (céu da boca) é, simultaneamente o "tecto" da boca e o "soalho" do nariz.

Como e quando ocorre? 

A face forma-se a partir da união de vários “elementos” oro-faciais, o que acontece entre a 4ª e a 12ª semanas de gestação. Quando, por qualquer motivo, algo “perturba” este mecanismo de fusão, a fenda pode ocorrer.

Como se manifesta?

Existem muitas "variantes" de fenda lábio-palatina. Isto levou a que nós, médicos, também por motivos didáticos, as tentássemos classificar.

Embora este não seja um tema pacífico, pois existem múltiplas classificações, nós adotámos a Classificação de Spina, cirurgião brasileiro que se dedicou a  corrigir esta malformação e que se baseia em critérios anatomo-embriológicos.

Assim, temos como referência o buraco (ou foramen) incisivo, que, não é mais do que um orifício que existe no osso maxilar e é o que resulta da fusão dos três segmentos que vão formar o osso maxilar superior.

Dividimos as fendas em três grupos principais:

Grupo I – Fendas que ocorrem para a frente do buraco incisivo designadas por fendas labiais ou lábio-alveolares. Podem ser completas ou incompletas, uni, bilaterais ou medianas.

Grupo II – Fendas que ocorrem para a frente e para trás do buraco incisivo, designadas por fendas lábio-palatinas. Podem ser completas, incompletas (muito raras), uni, bilaterais ou medianas (Fig.5)

Grupo III – Fendas que ocorrem para trás do buraco incisivo, conhecidas como fendas palatinas. Envolvem apenas o palato e podem ser completas ou incompletas, conforme abranjam todo o céu da boca ou apenas a parte mais posterior(Fig.6)

Grupo IV - No qual se inserem situações de fendas faciais que, felizmente, são muito raras.

Tratando-se de malformações, em muitos casos, desfigurantes, provoca, desde logo, um efeito emocional profundo nos pais e compromete seriamente o bem estar físico e psicológico da criança: a sucção torna-se difícil e, por vezes, é necessário encontrar formas alternativas para a alimentar; o mecanismo da deglutição está alterado; o fluxo de ar, através da fenda, seca as mucosas, facilitando as infeções que se estendem ao ouvido e que, quando não tratadas atempadamente, levam a perdas de audição; a erupção dentária é anómala; a fala está seriamente comprometida; muitas vezes, são necessárias múltiplas intervenções cirúrgicas.

Por tudo isto, e pela complexidade que esta malformação pode apresentar, chegou-se à conclusão que seria necessário uma equipa, com profissionais de várias áreas, para tratar estes pacientes.

No nosso entender, vamos muito mais longe: esta equipa terá que perceber o doente como um todo, como uma pessoa e não apenas como uma criança com fenda. Tratamos o doente e não a doença. O conhecimento e compreensão de cada elemento da equipa tem de ultrapassar a sua própria área, isto é: tem que perceber o que os outros elementos fazem e porquê. Só entendendo a essência desta malformação e todas as suas implicações, se consegue um correto acompanhamento dos pacientes. Este é o conceito de equipa transdisciplinar, que trabalha de forma síncrona para o mesmo fim: a reabilitação total do paciente portador de fenda lábio-palatina.

Idealmente a equipa deverá incluir:

Cirurgião Pediátrico – presente em todo o processo. Normalmente é o primeiro a observar o bebé. Apto a corrigir situações cirúrgicas concomitantes, sem necessidade de duplicar ou triplicar atos anestésicos (se, p.ex.,  o bebé tiver uma hérnia esta será corrigida juntamente com o lábio ou palato).

Ortodontista/Médico Dentista – presente em todo o processo. É quem faz toda a documentação, orienta a higiene oral, vigia a dentição e tem um papel muito ativo quando se iniciarem os tratamentos ortodonticos.

Terapeuta de Fala – presente em todo o processo. O nome Terapia de Fala é extremamente redutor, em relação ao que estes profissionais fazem, não só na correção dos distúrbios da fala, mas também na sua interação com as outras áreas, nomeadamente com o Ortodontista e com o Otorrinolaringologista.

Psicólogo – presente em todo o processo. Fundamental no apoio aos pacientes e famílias.

Otorrinolaringologista –  A sua presença na equipa e o conhecimento desta patologia é fundamental, não só para o tratamento de situações inerentes à patologia e também na orientação sobre alguns atos que nestas crianças podem comprometer seriamente o seu bem estar (p.ex. nos doentes com fendas palatinas ocultas, a extração das amígdalas pode comprometer seriamente a fonação).

Geneticista – Importante para aconselhamento de casais com filhos portadores  ou com história familiar de fenda.

Nutricionista – presente em todo o processo. Ajuda imprescindível, por exemplo na altura do enxerto ósseo.

Pediatra – presente em todo o processo. Deverá ser um Pediatra com formação em desenvolvimento infantil e experiência em dismorfologia.

O acompanhamento destas crianças deve ser iniciado logo que  o diagnóstico é efetuado, o que, hoje em dia, e, desde que a malformação atinja o lábio, pode ser realizado antes do nascimento. Assim será muito conveniente podermos falar com estes futuros pais, explicando do que se trata, a evolução do tratamento, respondendo às suas múltiplas dúvidas e ajudando-os a encarar esta situação, com a qual não contavam e da qual, na grande maioria dos casos desconheciam a existência.

Nesta primeira abordagem procuramos desmistificar a situação, preparando estes pais para o que dentro de algumas semanas vão viver, reduzindo a sua natural grande ansiedade, e dando-lhes a certeza que, “deste lado”, terão uma equipa permanentemente disponível e que terá sempre, no mínimo, uma palavra de conforto quando eles necessitarem.

Vamos explicar-lhes que, para nós, há coisas fundamentais para o sucesso do tratamento destes bebés:

  • O aleitamento materno. Pode ser mais difícil do que numa outra criança, mas não é impossível. Se o bebé for amamentado, além de todas as vantagens sobejamente conhecidas desta prática, vai ter uma outra na altura da intervenção cirúrgica: o jejum pré-operatório do leite materno é de quatro horas, ao contrário do jejum necessário com o leite artificial que é de seis horas. Também após a cirurgia o bebé pode mamar no peito da mãe sem qualquer restrição.

Se a amamentação for de todo impossível, recomendamos a extração do leite e a sua administração através de biberão.

  • Higiene do meio oro-nasal. É fundamental e deve ser iniciada logo após a primeira mamada. Deve ser utilizada uma compressa esterilizada humedecida em soro fisiológico e, com ajuda do dedo da mãe ou com uma cotonete, remover todos os restos de leite da cavidade oral, evitando que estes contribuam para um crescimento bacteriano anormal e consequente fermentação destes resíduos, o que poderá provocar infeções indesejadas e aumentar as cólicas pela ingestão deste “leite fermentado”.

Também a higiene nasal, com soro fisiológico é imprescindível, principalmente quando a fenda é do grupo II, ou seja, lábio-palatina, de modo a prevenir o ressecamento das mucosas e a facilitação de infeções.

Se a higiene oro-nasal for efetuada de forma sistemática, o bebé vai habituar-se a ter a boca limpa, vai ser mais fácil, um dia mais tarde, a escovagem dos dentes, o que vai promover  uma grande redução da probabilidade de se estabelecerem cáries dentárias, pela menor presença de placa bacteriana.

  • Documentação periódica e sistemática. Em que consiste? No início, apenas em fotografias efetuadas de forma protocolada, antes e após qualquer tratamento mais invasivo (p.ex. intervenção cirúrgica). Vai-nos permitir ver a evolução e definir estratégias para os próximos tratamentos. Mais tarde, na documentação são incluídos estudos radiológicos e moldes da boca e dentes.

O primeiro ano de vida é determinante para estes bebés. Neste ano serão submetidos a uma ou duas intervenções cirúrgicas, consoante seja necessário encerrar o lábio ou o palato ou o lábio e o palato.

Comecemos pelo lábio. Ao seu encerramento dá-se o nome de queiloplastia, que consiste no restabelecimento da simetria labial, respeitando todas as dimensões do lábio, a reposição muscular e a correção da deformidade nasal que acompanha sempre a fenda labial, mesmo na sua forma mais discreta.

A queiloplastia é efetuada por volta dos três meses de idade, altura em que o risco anestésico baixa abruptamente.

O encerramento do palato (palatoplastia) é efetuado entre os nove e os doze meses. Neste procedimento, a nossa principal preocupação é proporcionar as condições necessárias para que este bebé venha a ter uma fala correta. A fala distingue-nos de todas as outras criaturas, permitindo-nos expressar os nossos pensamentos e emoções. A palatoplastia deverá ser realizada antes que a criança comece a articular as primeiras palavras e logo que seja possível uma correta identificação dos músculos que compõem o palato,  de modo a que se possa proceder à sua criteriosa correção.

Nas crianças em que o palato está comprometido, a trompa de Eustáquio, ou seja, um pequeno canal, que liga o ouvido médio à cavidade oral, e que serve para fazer passar secreções do ouvido para a boca (e não no sentido contrário), tem uma inserção anómala. Isto faz com que o mecanismo valvular deste sistema não funcione, o que leva a acumulação de secreções no ouvido, originando otites, conhecidas como otites serosas, que podem ser assintomáticas, e que levam sistematicamente à perda de audição. No ato da palatoplastia deverá ser, sempre que necessário, efetuada a profilaxia desta perda de audição, o que se consegue colocando uns pequenos tubos na membrana do tímpano.

Assim se consegue que as secreções deixem de se acumular no ouvido médio e, através destes tubos, sejam "canalizadas" para o exterior. A esta intervenção dá-se o nome de miringotomia com colocação de tubos transtimpânicos.

Qualquer intervenção cirúrgica deixa, como sequela, no mínimo uma cicatriz. Aqui trata-se de uma cicatriz num ser em crescimento. Costumamos dizer que o bebé cresce à volta da cicatriz, ou seja, é diferente a velocidade de crescimento do bebé e da cicatriz. Isto pode originar retrações, fibrose acentuada ou cicatrizes hipertróficas o que, além do problema estético, vai  condicionar a própria função. A massagem diária e sistematizada da cicatriz, juntamente com o uso de silicone tópico e eventualmente tratamentos com laser vão minimizar ou mesmo fazer desaparecer este problema.

Durante este primeiro ano estes bebés deverão ser observados conjuntamente por toda a equipa, antes e depois de cada intervenção cirúrgica. Nestas consultas deverão ser discutidos, com os pais todos os passos do tratamento, esclarecidas as dúvidas (como alimentá-lo, que tipo de tetinas usar, a eventual necessidade de ser observado por outra especialidade fora da equipa, do sucesso ou insucesso do tratamento anterior, etc), comprometendo os pais e fazendo com que eles sintam que fazem parte da nossa equipa, equipa esta que como referi, trabalha de forma síncrona para o mesmo fim e tem como objecivos fundamentais minimizar a deformidade estética, proporcionar uma fala correta, diminuir o número de intervenções cirúrgicas e promover uma total e correta inserção social.

Por António Bessa Monteiro, Cirurgião Pediátrico no Hospital Lusíadas Porto