Durante largos anos arrastou-se um enorme e perigoso vazio legal sobre a definição do Ato Médico, sendo o nosso país um dos poucos países europeus onde não havia essa legislação específica.

Antes da criação do SNS, esta questão não suscitou grandes preocupações porque a rede de prestação de cuidados de saúde era reduzida e o número de sectores laborais de profissionais de saúde pouco desenvolvido.

À medida que esta situação se foi alterando com a implantação e consolidação do SNS, começaram a surgir apetências nalgumas franjas laborais para invadirem algumas tarefas médicas.

A crescente tomada de consciência das graves repercussões que uma situação deste tipo teria para a qualidade dos cuidados médicos e para a segurança dos doentes, determinou que fosse desencadeado um processo de negociação específica entre o Governo presidido pelo Engº António Guterres, cuja ministra da saúde era a Drª Maria de Belém Roseira e a Ordem dos Médicos então presidida pelo Dr. Germano de Sousa.

Embora a delicadeza da matéria envolvida nesse complexo processo negocial fosse notória, as partes negociais chegaram a acordo num texto clarificador e com a adequada sistematização dos conteúdos funcionais da prática médica.

Este diploma, enviado para a promulgação pelo então Presidente da República, Dr Jorge Sampaio, foi objeto, em Setembro de 1999, do seu veto político por razões nada convincentes.

Umas semanas antes desta decisão política, foram desenvolvidas intensas campanhas contra esse diploma por parte de algumas forças partidárias e círculos de interesses económicos, argumentando com supostos monopólios médicos na prestação dos cuidados de saúde.

Face à apatia e desinteresse de um novo bastonário sobre esta matéria crucial para a profissão médica, o então Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos realizou no mês de Maio de 2005 um referendo aos médicos da sua área geográfica sobre uma proposta de definição do Acto Médico, constituída por 4 artigos: definição do acto médico; competências para a prática do acto médico; prática de actos médicos nas unidades e estabelecimentos de saúde; prática de actos médicos legalmente punível.

Na definição do acto médico estava redigido que “ constitui acto médico a actividade de avaliação diagnóstica, prognóstica, de prescrição e de execução das medidas terapêuticas relativa à saúde das pessoas, grupos ou comunidades “(pontonº1).

No ponto nº 2, a redação referia que “constituem ainda actos médicos a realização de exames de perícia médico-legal e respectivos relatórios, bem como actos de declaração de estado de saúde, de doença ou de óbito de uma pessoa”

Dos então cerca de 11000 médicos dessa secção regional, votaram 3948, com 98,12 por cento dos votos favoráveis.

Nas negociações para a revisão da Carreira Médica desenvolvidas em 2008/2009, as duas organizações sindicais médicas (FNAM e SIM), que dispunham de uma delegação negocial conjunta, propuseram uma nova redação para o perfil profissional do médico que ficou consagrada no artigo 9º dos decretos – lei nº 176/2009 e 177/2009 e que no fundo era uma clara definição de ato médico.

Estes diplomas, que continuam em vigor, nos seus artigos nº 9 estipulam o seguinte:
1 – Considera-se médico o profissional legalmente habilitado ao exercício da medicina, capacitado para o diagnóstico, tratamento, prevenção ou recuperação de doenças ou outros problemas de saúde, e apto a prestar cuidados e a intervir sobre indivíduos, conjuntos de indivíduos ou grupos populacionais, doentes ou saudáveis, tendo em vista a proteção, melhoria ou manutenção do seu estado e nível de saúde.
2 – A integração na carreira médica determina o exercício das correspondentes funções.
3 – O médico exerce a sua atividade com plena responsabilidade profissional e autonomia técnico-científica, através do exercício correto das funções assumidas, coopera com outros profissionais cuja ação seja complementar à sua e coordena as equipas multidisciplinares de trabalho constituídas.

Em 2019, a Ordem dos Médicos, então presidida pelo Dr Miguel Guimarães, usando uma disposição legal ao seu alcance, fez publicar em DR o Regulamento nº 698/2019, de 5 de Setembro.

O seu artigo 4º estabeleceu que :
1 – O médico exerce a sua atividade com plena responsabilidade profissional e autonomia técnico-científica.
2 – O médico deve cooperar com outros profissionais cuja ação seja complementar à sua e coordenar as equipas clínicas multiprofissionais e multidisciplinares de trabalho, sem prejuízo da autonomia própria das demais profissões de saúde no âmbito das suas atividades.

E o seu artigo 6º estabeleceu que:
1 – O ato médico consiste na atividade diagnóstica, prognóstica, de vigilância, de investigação, de perícias médico-legais, de codificação clínica, de auditoria clínica, de prescrição e execução de medidas terapêuticas farmacológicas e não farmacológicas, de técnicas médicas, cirúrgicas e de reabilitação, de promoção da saúde e prevenção da doença em todas as suas dimensões, designadamente física, mental e social das pessoas, grupos populacionais ou comunidades, no respeito pelos valores deontológicos da profissão médica.
2 – Constituem ainda atos médicos as atividades técnico-científicas de investigação e formação, de ensino, assessoria, governação e gestão clínicas, de educação e organização para a promoção da saúde e prevenção da doença, quando praticadas por médicos.

Entretanto, o anterior governo decidiu desencadear uma ofensiva violenta contra um conjunto alargado de profissões que dispõem de ordens profissionais, numa iniciativa sem precedentes, procurando “domesticar” estas entidades, colocar em causa competências de regulação profissional e de garantia da qualidade do exercício das respetivas profissões, bem como colocar “comissários políticos” em órgãos dirigentes.

A nível dos médicos, esta atitude só tem paralelo com aquilo que, em Novembro de 1972, o regime ditatorial fez ao nomear um “curador” para dirigir a Secção Regional Sul da Ordem dos Médicos após a polícia ter tomado de assalto as suas instalações e destituído os seus dirigentes eleitos.

A Ordem dos Médicos foi uma das principais visadas nesta ofensiva politico-legal.

Na Lei nº 9/2024, de 19 de Janeiro, que altera o Estatuto da Ordem dos Médicos, no seu artigo 96º-A (atos médicos) refere que:
1 – São atos próprios dos médicos o exercício em exclusivo da atividade diagnóstica, prognóstica, de vigilância, de investigação, de perícias médico-legais, de codificação clínica, de auditoria clínica, de prescrição e execução de medidas terapêuticas farmacológicas e não farmacológicas, de técnicas médicas, cirúrgicas e de reabilitação, de promoção da saúde e prevenção da doença em todas as suas dimensões, designadamente física, mental e social das pessoas, grupos populacionais ou comunidades, no respeito pelos valores deontológicos e das leges artis da profissão médica.
2 – Constituem ainda atos médicos as atividades técnico-científicas de investigação e formação, de ensino, assessoria, de educação e organização para a promoção da saúde e prevenção da doença, quando praticadas por médicos.
3 – A identificação de uma doença ou do estado de uma doença pelo estudo dos seus sintomas e sinais e análise dos exames efetuados constitui um procedimento base em saúde que deve ser realizado por médico e visa a instituição da melhor terapêutica preventiva, cirúrgica, farmacológica, não farmacológica ou de reabilitação.
4 – O disposto nos números anteriores não prejudica o exercício dos atos neles previstos por pessoas não inscritas na Ordem, desde que legalmente autorizadas para o efeito.

Desde logo, esta redação torna clara a eliminação da função de coordenação das equipas multiprofissionais por parte dos médicos como o setor profissional mais diferenciado na área da saúde.

E esta eliminação não foi feita por mero acaso ou lapso.

É uma medida que tem o propósito inequívoco de limitar adicionalmente as competências dos médicos para abrir maior espaço para uma continuada alienação de áreas próprias do exercício da sua profissão e a sua entrega a outros profissionais que as executam a uma preço muito mais baixo e com enormes riscos para a saúde dos cidadãos.

Este tipo de medidas constituem uma réplica de políticas que têm vindo a ser aplicadas há largos anos em países como, por exemplo, Estados Unidos, Canadá e Grã-Bretanha com custos de saúde muito elevados para os respetivos cidadãos.

A classe médica e a sua Ordem, nas competências específicas que esta entidade possui na regulação da profissão, sempre tomaram a iniciativa de estabelecer quadros de elevada exigência na formação técnico-científica e na qualidade da prática profissional.

Mesmo no plano internacional, os médicos portugueses e as suas estruturas, têm constituído um exemplo amplamente reconhecido de rigor e de empenho na valorização contínua da sua profissão.

O comportamento político do Dr António Costa em relação aos médicos e ao próprio SNS foi uma página lamentável de que esta Lei é um grave exemplo.
No meio de tudo isto, não é compreensível o silêncio a que os órgãos dirigentes da Ordem dos Médicos se remeteram depois da publicação da citada Lei nº 9/2024, onde supostamente o anterior titular da Saúde não terá respeitado o acordado com esses órgãos.

Ao contrário do que afirmam alguns círculos de interesses económicos e políticos, a questão do Ato Médico não é nenhuma exigência de poder corporativo, mas tão somente um instrumento decisivo na garantia da qualidade do exercício da profissão médica em exclusivo benefício dos doentes.

Procurar “fatiar” os atos próprios dos médicos é uma medida desumana de delapidação da qualidade dos cuidados prestados pelo próprio SNS.

O Ato Médico é a “alma “ da nossa profissão.

Se não o defendermos e dinamizarmos, é a nossa própria existência como classe profissional que estará diretamente colocada em causa e a caminho de uma extinção forçada.Só há uma maneira de impor a correção deste atentado, que é levantarmo-nos energicamente em defesa da “alma” da nossa profissão.

Honremos o papel humanista de ser médico.